sábado, 31 de maio de 2025

 

O menino, os tamancos e a saudade

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 




Um dia que já vai longe, existiu uma pessoinha, um menino ainda pequeno, inexperiente da vida. Graças ao empenho dos pais, muito bem iniciado nas diversas circunstâncias e realidade a sua volta e no seio familiar, teve a graça de contar com pessoas especiais no curso de sua trajetória. 

Lembro que por um tempo determinado, para a casa de seu tio ele foi levado e por lá permaneceu por quase um ano. Foi muito bem acolhido, laços de sangue os unia, mas o que mais ali o prendia era o amor e a maestria, e tanta sabedoria que lhe era ensinado. 

Lidar com a natureza, os animais e o labor da profissão de entregador de leite pelas ruas da cidade. Lida que seu tio construiu e consolidou como homem honrado e verdadeiro, um humilde e valoroso leiteiro que o nosso bom Deus àquela família havia enviado. 

Pois aquele homem e sua esposa foram verdadeiros pai e mãe para aquele tímido guri em meio a penca de filhos que tiveram. E a cada um deles o menino conheceu e por eles foi inspirado. Beber na fonte a amizade pura e simples, verdadeira e lapidada com o carinho que brotava daquele ninho, e que tudo ele guardava no seu jovem coração. 

Ali estava a razão de tanto afeto e cuidado desprendido: um par de tamancos que sua tia Nelci lhe entregara para vencer as geadas nas manhãs frias de inverno que aqueles campos cobria. 

Tio Guilherme, seu esposo, irmão mais velho de meu pai, Vilson, a exemplo deste, transformaram o menino num homem a partir daquele gesto simples e ao mesmo tempo de alcance tão profundo. 

São as lembranças do menino de sete anos de idade em suas andanças pelos campos que o faz ainda ouvir o som dos tamancos quebrando geada enquanto apartava as vacas e terneiros, madrugada a fora e coração a dentro. Sim são essas imagens que ele ainda guarda e as tem sempre presentes. 

Cada um dos doze primos daquela família, cada um com suas virtudes, qualidades e bondades, desde o mais velho Lizito até o caçula Paulinho, todos compunham o álbum que não consegue olvidar, e os sente sempre por perto com vontade de chorar. 

Tia Nelci, assim como minha mãe Laura, obsequiosa e celeste, neste universo ainda muito vivas permanecem presentes ao meu lado. Mesmo nestas horas, quando um rufar de asas angelicais nos chegam e nos pealam chicoteando adeus para além das lembranças. 

Os olhos do menino, dos irmãos e primos, agora se voltam para os apelos e reclames do coração em lágrimas. Pois foi num cair da tarde que a notícia da partida de um desses elos antigos que circundam o peito entristeceu aquela grande família que, um dia, o menino, hoje de cabelos brancos, conheceu. 

Pessoas simples e herdeiras de uma marca telúrica encravada no coração do tempo e pampa gaúcha alhures: tempo em que o respeito era a maior virtude e o amor dedicado aos pais, a maior das orações. 

Adeus Mariazinha, minha prima. Ainda a vejo, mulher trabalhadeira, desde muito cedo dedicada às tarefas da casa ajudando a criar e acudir quem necessitava, dom que Deus a brindou de graça embelezando o seu e o nosso mundo. 

Vencendo os desafios da vida no campo e na roça, com mãos firmes, mas também jeitosas, dando conta do riscado sobre o tecido, não descuidando o bordado, um luxo que poucos tinham, mas que a tornou valorosa, preservando o seu legado. 

Hoje, prima, descansaste da lida. Hoje és uma senhora encantada, uma estrela que brilha no céu e para além dele. Não a encontraremos na estrada, mesmo que procure o menino, para lhe abrir a porteira, ajudar a descer os tarros depois de mais esta jornada. 

Hoje viverá nas lembranças teu rosto de juventude, de trabalho e vida lançada ao vento. A lembrança da geada, os tamancos talhados na cortiça e as flores, o jardim que tu plantaste: filhos, amigos, amores... Colhas prima o que semeaste. 

Acenam os que ficam guardando no peito e na lembrança o quão zelosa e gentil tu fostes. Me integro a todos filhos, primos, sobrinhos, netos teus e de outros que criastes, no aceno, não sem lágrimas, o menino de pernas finas que um dia conheceste entre porteiras e abraços. 

Aceno pra ti o meu lenço branco de despedida. Mesmo que ainda insista esse peralta correr inocente, implorando a Deus a sua volta, ou por fim, que acolha essa senhora que há pouco nos deixou. Descanse em paz, prima Mariazinha, Maria Soares Dutra. 


De Brasilândia/MS para Cacequi/RS, 26 de maio de 2025.

Foto: https://www.planocritico.com/critica-a-arvore-dos-tamancos




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