sábado, 5 de maio de 2018

Para as artesãs da alma, Silvia e Heloísa.


O artesanato Ofaié e a admiração da Comissão Geográfica.
Carlos Alberto dos Santos Dutra.



Aldeias indígenas geralmente são ambientes silenciosos, a exceção nos finais de semana quando seus habitantes recebem visitas de amigos, de grupos religiosos, de comerciantes em busca de produtos, e pesquisadores, transformando o ambiente mais agitado para os olhos brilhantes e curiosos das crianças que passeiam livremente em toda a extensão da aldeia.

Com os Ofaié e Kaiowá que vivem na Aldeia Anodi, no município de Brasilândia, plantada na margem direita do Rio Paraná, essa realidade não é diferente, situação decorrente da proximidade com a cidade que dista apenas 10 km da aldeia, trajeto facilitado pela presença da estrada MS 040 bastante frequentada por veículos particulares e dezenas de caminhões transportando cana de açúcar e eucalipto das plantações que circundam o território Ofaié.

Mas, naquela semana havia uma brisa nostálgica no ar. A comunidade ainda recordava a despedida de duas artesãs que por lá estiveram, e eis que se apresentam agora duas novas visitantes, igualmente professoras e dispostas a caminhar junto daquele grupo de mulheres indígenas interessadas em progredir no aperfeiçoamento de seu artesanato, aprendendo também novas técnicas e horizontes para a geração de renda da diminuta comunidade.

Eram as professoras Heloísa Pires Lima (1) e Silvia Sasaoka (2) que chegavam para dar continuidade ao trabalho da Oficina de Tingimento Vegetal iniciado pela designe professora Hisako Kawakami, e iniciar um trabalho de Recuperação da Memória Cultural da tribo a partir do contato com mães e crianças indígenas, trabalho que se estendeu durante a semana, sendo concluído no domingo dia 28 de junho de 2015.

As atividades aconteceram como de costume, na Escola Ofaié E-Iniecheki, localizada no centro da Aldeia Anodi, local onde, aos poucos, muito cedo, uma a uma, as mulheres foram chegando. As que moravam mais longe chegavam de bicicleta, a maior parte delas com os filhos na garupa; outras, com os filhos pela mão, também iam chegando em silêncio. Na impossibilidade de Teng-hô, uma das últimas falantes do idioma nativo, participantes do projeto, se locomover, o consultor do projeto foi buscá-la de carro na sua residência. Somente depois que todas as artesãs haviam chegado é que o trabalho foi iniciado.

Enquanto um grupo inteirava-se dos tecidos tingidos ainda na primeira fase do projeto, a artista plástica professora Silvia Sasaoka dedicava-se à coleta de plantas na mata acompanhada pelo indígena  Kaiowá Moisés, sábio conhecedor da flora do cerrado. Pacientemente lá estava ele apontando com o dedo e nomeando cada uma das espécies, ofício que aprendeu nas lides em fazendas da região, dizia com orgulho. Depois, as amostras de galhos e folhas que foram coletadas e fotografadas, elas foram catalogadas com o nome popular e o nome em Ofaié, tarefa esta que foi acompanhada de perto e anotada uma a uma pelo último escriba da comunidade, o ex-cacique Xehitâ-ha.

Enquanto a professora encontrava-se pelo interior do cerrado coletando espécies que se adaptavam a extração de corante para o tingimento de tecido, a antropóloga Heloisa Lima entregava-se ao trabalho com as crianças numa aventura lúdica. Foi animador vê-la sentada no chão da escola, numa roda de conversa, rodeada de curumins, entoando canções, fazendo perguntas e aguçando a memória daqueles pequeninos para o nome dos rios, das plantas e os sinais toponímicos que ainda se encontravam presentes na cultura material e imaterial daquele povo gentil.

Foi uma viagem pelos campos de Agachô e o despertar de um sonho, vendo e ouvindo as crianças falando todas ao mesmo tempo como é o costume da aldeia, atitude vista como natural também entre os adultos, porém, que causa estranheza aos visitantes desavisados. Todas buscando responder as perguntas, forçando pela memória e revelando a partir da lembrança, nas conversas com os pais e avós, o que restou da tradição, as alegrias e as tristezas de cada uma de suas famílias. Depois, foi a hora de colocar tudo no papel: verdadeira maravilha ver os desenhos surgindo, nas cores e formas mais diversas, atualizando o passado e fortalecendo o presente da visão de cada criança, construindo assim um universo repleto de novos e velhos significados.

Na hora do almoço, preparado pela merendeira da escola, a jovem Andréia, foi uma alegria só, com a participação muito viva das crianças. Vivacidade percebida nos seus olhos, enquanto permaneciam em silêncio no ritual em torno da mesa comum a todas elas. Depois da refeição foram brincar no parquinho instalado próximo à escola, onde as crianças, como qualquer outra se deixavam levar pela vida, despreocupadamente, no compasso da aldeia. Enquanto as professoras passavam as últimas lições da aula do dia, as mães ainda permaneciam aplicadas na sala de artesanato em suas tarefas produzindo bordados em panos de tonalidades de cores diversas extraídas das árvores, coisa nunca vista na aldeia. E a tarde foi morrendo.

No retorno à cidade ao findar aquele domingo, já no aeroporto de Três Lagoas, as professoras levavam na bagagem a alegria daquelas crianças e o olhar de esperança daquelas mulheres que, aos poucos adentravam um terreno, antes habitado somente pelos sonhos, e que hoje, experimentavam a oportunidade que lhes estava sendo dada pela Fibria em parceria com a Prefeitura Municipal de Brasilândia e aquelas duas professoras, de voltar a ter orgulho de ser indígena Ofaié e produzir o artesanato mais bonito que a Costa Leste já viu.

Motivação que recorda aquela admiração registrada em 1905 que encantou a Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo durante a exploração do Rio do Peixe, quando classificou o artesanato (arcos e flechas) Ofaié como os mais belos que a Comissão tinha visto; onde as bolsas de cordel com malhas pequenas mereciam admiração entre os belos trabalhos de crochê de nossas gentis senhoras (3). O avião levanta voo e a antropóloga fecha o livro sobre a história deste povo que ganhou do indigenista local, e, por um breve momento revive as palavras do chefe dessa Comissão, Dr. Jorge Tibiriçá Piratininga, quando escreveu que das quatro tribos visitadas por ele nesta expedição, os indígenas Ofaié eram os tipos mais belos, mais inteligentes e mais trabalhadores de todos que ele conheceu.











































(1) Heloisa Pires Lima nasceu em Porto Alegre. Aos nove anos, mudou-se para São Paulo, onde reside até hoje. Estudou Psicologia na PUC e Ciências Sociais na USP, onde também concluiu mestrado em Antropologia (2000), e doutorado em Antropologia Social (2005). Tem priorizado em sua produção acadêmica questões teóricas acerca das fronteiras entre História e Antropologia, na especificidade do tema das representações culturais, com ênfase em relatos de viagem e arte. Heloisa é também educadora, coordena para uma editora do Rio de Janeiro uma coleção de títulos infanto-juvenis protagonizados por personagens afrodescendentes. Em 1998, publicou Histórias da Preta, recebendo reconhecimento crítico, como os prêmios José Cabassa e Adolfo Aizen (1999/UBE), além de ter sido selecionada para o Brazilian Book magazine, 1999, divulgado no Bologna Book Fair. Em 2004, coordenou a coleção O Pescador de Histórias, pela Peirópolis, (PNBE 2005). Já em 2005, publicou A semente que veio da África, pela Salamandra (PNBE 2005). Numa nova abordagem editorial, convidou Georges Gneka, da Costa do Marfim, e Mário Lemos; de Moçambique, e todos trouxeram histórias sobre um mesmo tema. Em 2006, Ano do Brasil na França, participou da Journée Littéraire Foyalaise realizada na Martinica e em Guadalupe.http://www.olimpiadadehistoria.com.br/vw/1I8b1SK4wNQ_MDA_c3dc9_/Heloisa%20Pires%20Lima%20biografia.pdf

(2) Silvia Sasaoka, descendente de japoneses, estudou Artes Plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado e na Faculdade de Belas Artes de São Paulo, educadora e produtora cultural; morou por 11 anos na comunidade Yuba em Mirandópolis-SP, e nessa trajetória levou-a a desenvolver projetos que combinam a consciência ambiental, a produção coletiva e a visão de mercado, proporcionando experiências que unem a simplicidade do trabalho artesanal com a contemporaneidade da vida urbana. No Japão pesquisou o artesanato tradicional local e seu papel no cenário contemporâneo do design. Em 2001, coordenou o Design Solidário Brasil + Holanda. A experiência foi replicada em inúmeros projetos, tornando-se expertise para a gestão de projetos orientados a comunidades. Além disso, coordenou diversos projetos envolvendo comunidades, escolas internacionais e empresas, como: Design Academy of Eindhoven, Droog Design, Instituto Europeo di Design São Paulo, FAU Design (USP), Faculdade de Belas Artes de São Paulo, Universidade de Cincinnati e Tok&Stok, entre outros. http://www.tudoamao.com/about-us/history-and-values/?lang=pt 

(3) Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo. Exploração do Rio do Peixe, 1913, p. 10. In DUTRA, C.A.S. O território Ofaié pelos caminhos da história. Campo Grande: Life Editora, 2011, p. 71.



Publicado originalmente em 21 de julho de 2015