sábado, 28 de março de 2015

Marilda Xartã Ofaié: a mestra dos doutores vive.
Carlos Alberto dos Santos Dutra.
Ela era silenciosa, a exemplo das mulheres daquele povo de hábitos tímidos e feições sóbrias. Olhar cabisbaixo e entristecido carregava nos ombros as perseguições do passado, as andanças do presente e a incerteza do futuro. Assim era Marilda de Souza, indígena Ofaié, Xartã, na sua língua mãe. Além de indígena de um povo ressurgido, havia também carregado no ventre sementes de vida: Josimar Siongroi e Gilmar Apucará, rebentos que o vento levou. Outros vingaram e só lhe trouxeram alegrias, duas belas jovens, Léa e Elizangela, sendo uma professora, sorri orgulhosa aquela senhora outrora chamada de Margarida.

Mas essa última flor do Lácio ainda podia ser medida a sua importância pelo que representava para aquele povo, pois era uma das poucas falantes da língua ofayé, tendo-a ensinado a todos que por ali passaram. E olha que não foram poucos os acadêmicos, mestres e doutores que deitaram o ouvido sobre seus lábios para ouvir as palavras guturais de uma língua a beira da extinção. E lá estava ela soletrando uma a uma letras estranhas cujo som o vernáculo pátrio nem ainda as possuía.

Dedicada e aplicada nos estudos, acompanhou e orientou projetos de toda ordem para universidades de norte a sul do país. Dezenas de monografias, dissertações e teses acadêmicas, de mestres e doutores, e pós-doutores, hoje levam o seu nome e a marca de sua passagem aqui na terra banhada em sangue pela conquista. Uma brilhante falante da língua, sábia pedagoga e íntegra mulher.

O nome de Marilda Ofaié está inscrito não somente no coração de pesquisadores que do alto da cátedra do saber estiveram na humildade da aldeia Anodhi em Brasilândia buscando subsídios para seus estudos e títulos. O nome de Marilda, hoje integra o saber universal com uma voz que salta dos apontamentos e dicionários pacientemente redigidos por uma dezena de pessoas interessadas na preservação da língua do povo Ofaié.

E lá estão eles, lembro o nome de alguns, como Marlene Carolina de Souza, pela UNESP; Lúcia Helena Tozzi da Silva, pela FIRB; Fábio Lopes da Silva, pela USP; Manoel Ferreira Lima Filho, pela UCG; Merimárcia Guedes, pela UNESP; Ana Cláudia Ceccato, pela UNESP; Cristiane Mirtes Borgonha, pela UFSC; Giovane José da Silva, pela UFG; Marlon Leal Rodrigues, pela UNICAMP; Rogério Vicente Ferreira, pela UFMS; Maria das Dores de Oliveira, pela UFAL, Eduardo Rivail Ribeiro, de além mar, entre outros pesquisadores e acadêmicos que estiveram entre eles e familiarizaram-se com a doçura e meiguice de suas crianças e a dedicação de nossa querida mestra Marilda Xartã Ofaié, entre eles modestamente esse escrevinhador.

Marilda ou Margarida de Souza, como consta em sua certidão de nascimento indígena nasceu em 15 de abril de 1967 e faleceu na madrugada do dia 28 de março de 2015, aos 48 anos de idade incompletos. Faleceu jovem, essa nossa professora, de uma doença que os médicos não explicam e nem sabem de onde possa ter vindo essa virose que lentamente a levou. Depois dos massacres e perseguições, veio a tuberculose e a falta de assistência que os fazia partir cedo. Hoje, as políticas públicas integracionistas, o consumo patrocinado e a chamada modernidade que gera descrença na tradição e costumes antigos dos povos, só afastam os indígenas do coração das aldeias, transformando-as em alojamentos e morada de velhos e uma mera referência.

Concorrem também as novas doenças que avançam e percorrem caminhos cada vez mais sofisticados, onde as rezas e plantas medicinais não alcançam e nem podem responder. E eles vão morrendo pelo caminho, sem respostas, sem palavras, deixando apenas a voz nos instrumentos que o mundo lhes reservou distante da terra, para onde ela vai ser enterrada daqui há pouco. No caso de Marilda, o Museu da Pessoa (da UNESCO) eternizou sua voz, seu lamento e seus sonhos. Que ele possa ser vivido em outra terra, em outro rio, em outro mar...


Descanse em paz doutora honoris causa Marilda Xartã Ofaié


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