quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

 

Um hotel e o sonho realizado de MariaJosé.

Carlos Alberto dos Santos Dutra










Tudo que circunda a nossa volta, as coisas, os prédios, as pessoas, tudo têm uma história, um começo e um fim. Quando chegamos numa cidade – e isso os pioneiros lembram muito bem – inevitavelmente nosso olhar repousa sobre as ruas, as casas, e as pessoas que ali vivem.

O ônibus da empresa Viação São Luiz, imponente para os costumes da época, lá estava estacionado no centro da cidade. Já era noite e para quem viajara o dia inteiro vindo de Bodoquena, depois de passar por Dourados, por estradas de terra, de pedras e muitos buracos, ver o ônibus estacionado em um lugar seguro era um alivio: enfim a civilização. Assim eu me senti a primeira vez que aqui cheguei e conheci aquela pousada.

E ela estava lá, a poucos metros, ao alcance da minha mão. Ao lado da minúscula rodoviária, praticamente uma parada de ônibus, que era atendida por um jovem senhor chamado Vila, encontrava-se aquele portal, um verdadeiro convite ao viajante que chegava.

Tratava-se do Bar e Hotel São José, hospedagem segura, verdadeira sentinela da cidade, no alto da avenida que lhe emprestava o nome, acolhendo e recebendo gente de outros nortes que ali buscavam abrigo e hospedagem ao passar pela cidade.

Em meio às instalações simples, porém aconchegantes, lá se encontrava o proprietário e sua esposa, regendo a orquestra do atendimento daquele estabelecimento. O belo quadro pintado na parede inteira, refletia o ambiente rústico e bucólico, lembrança da fazenda Bariri, memória que os proprietários depositaram no lugar que os recebeu e ali puderam construir sua história.

O anfitrião da casa, homem de visão e falante, o proprietário logo que ali chegou recebeu o epíteto Arara, provavelmente advindo da natureza gregária e comunicativa que o caracterizava, fazendo eco no ambiente que o circundava. Herança de povos de muitos lugares que para aqui acorriam, trouxe na mala, junto dos sonhos, trejeitos e linguagem própria de seus conterrâneos.

A seu lado, se encontrava dona Maria. Em silêncio, mão no queixo, levemente encostada no balcão, admirava a silhueta do esposo na porta da hospedagem gesticulando e recebendo os viajantes que desciam do ônibus praticamente na porta de seu estabelecimento. Logo ela sabia que teria de providenciar o alimento e a bebida; conferir a roupa de cama e acomodar os pertences daqueles que por ali resolvessem se hospedar.

Na verdade, ela era a grande mestra daquele lugar. Empunhando com arte o instrumento que afinava a canção de ali tudo ajeitar, tornava belo e aceitável a simplicidade que a rodeava. Os filhos e as dificuldades vividas não haviam lhe tirado o gosto doce das manhãs nem brilho do olhar. Desde menina, a filha de seu João Machado de Oliveira e dona Francisca Correia de Jesus, destacara-se entre os seis irmãos com quem dividiu a infância daquela família feliz.

Nascida no dia 28 de junho de 1936 em uma pequena cidade conhecida como Sales, no interior do estado de São Paulo, a jovem Maria Machado de Freitas revelou desde cedo ser uma mulher de fibra. Nascida na lida, guerreira, forte e ao mesmo tempo delicada, era extremamente zelosa para com os filhos, os netos e todos que a cercavam... relembram os familiares.

Antes de completar 18 anos, em meados de 1954, conheceu o grande amor de sua vida. Foi numa festa que aconteceu na fazenda Santa Helena. A partir daquele dia passaria a dedicar toda sua vida à construção de um lar. Três meses depois, após um rápido namoro, lá se encontrava sendo conduzida ao altar, quando se uniu em matrimônio com o jovem José Alves de Freitas, no dia 10 de setembro de 1954.

Assim começa a história da família Freitas. Um ano após o casamento nasce a primeira filha que, em homenagem, carregava no nome a marca daquele casal que lhe deu força e vida: Maria José. Nos anos seguintes Deus lhes brindara ainda com Marina, Valter, Adauto, Cícero, Marluce, Margarida, Maria Aparecida e Claudinei, o caçula.

O olhar de dona Maria se ilumina, enquanto acarinha seus rebentos. Nunca deixou de tirar os olhos de admiração para o esposo, numa demonstração de amor, afeto e respeito. Desde moço, José Alves de Freitas foi um homem humilde, porém trabalhador. Filho de seu Gerônimo Alves de Freitas e dona Olívia Maria de Jesus, era natural de Tanabi, região próxima a São José do Rio Preto, sendo lá que se tonou um homem feito.

Desde que nasceu, no dia 10 de setembro de 1926 viu a família trabalhar em fazendas, logo aprendendo a profissão de peão do campo, e onde passou a ganhar o sustento em cima do lombo de um cavalo, nos tentos do laço ao gado alçado, vencendo na vida por seus próprios méritos e esforço.

Uma brisa adentra a porta do hotel São José e dona Maria, passa a mão espalmada sobre a testa, como que saudando em condolências aquele companheiro, que no dia 7 de abril de 2015 faleceu, deixando um rastro de saudade, mas também motivo de orgulho, exemplo e inspiração para a esposa, os 9 filhos, os 23 netos, os 17 bisnetos e o mais novo tataraneto, sua maior herança.

Despediu-se do esposo e continuou labutando pela vida, administrando o patrimônio que o casal construiu desde que chegou a Brasilândia. Por um momento esquece as dores no corpo e viaja no tempo: parece que foi ontem. E recorda quando aquele amigo de seu esposo o convidou para trabalhar numa fazenda chamada Califórnia. E foi para lá que a família se tocou.

As portas daquela fazenda se abriram para o casal e seus filhos que, com muita fé e esperança começaram uma nova vida. Trabalharam muito, até conquistar o direito de ter um cantinho só deles, onde construíram uma casa que chamaram de sua, lugar onde construíram sua história, tiraram o sustento para a família, permanecendo neste lugar por 20 anos.

Ah, aqueles tempos na fazenda. Recorda dona Maria, ou dona , como também era conhecida. Atenta à lida com o gado, construção de cercas e currais realizados pelos peões, lá estava ela fazendo a comida para os campeiros, o arroz carreteiro, antes socado no pilão, que alimentava e agradava a todos, num clima de fraternidade e alegria. 

Depois, lá se encontrava ela novamente tratando da criação: galinhas, porcos, cães e bezerros alimentados no cocho. Ou então lavando a roupa da família e dos peões, puxando água do poço no sarilho; e quando o poço secava, tendo que buscar água no córrego mais próximo, tudo feito com resignação e paciência.

E o nascimento das crianças, recorda. Os filhos vinham ao mundo em casa. Não havia essa história de hospital, o parto era natural, sem anestesia ou acompanhamento médico. Mas com a graça de Deus todos nasceram fortes e saudáveis. Assim era a vida no campo, vida dura, vida difícil, mas sem perder a garra e a dignidade, agradece em silêncio aquela mãe.

Desta época, as lembranças que dona Maria têm de seu esposo José Arara é que ele foi um homem honesto e sempre trabalhador. As dificuldades que se acercavam eram tantas [que hoje poucos entenderiam]: até mesmo uma simples tarefa de fazer compras [vindo da fazenda até a cidade] se tornava algo difícil. Trazia no lombo do cavalo apenas o mantimento que alimentaria a família apenas uma semana.

A família recorda que naquele tempo, na fazenda, mesmo trabalhando de domingo a domingo na propriedade do patrão, o seu quintal era impecável, tirava os tocos, deixando tudo muito limpo e lisinho. Foi neste mesmo quintal que ele zelou e cuidou que, mais tarde, foi transformado e local de pouso de avião na fazenda, tamanho o seu capricho.   

O ruído da partida de motor em movimento faz dona Maria despertar. Era o ônibus que estava partindo, seguindo viagem. A rodoviária ao lado, aos poucos, cessa o movimento, e a dona do lar e dos negócios, ajudada pela filha, se recolhe em seus pensamentos. Olha na sua volta as paredes de seu hotel e recorda a concretização daquele sonho que o casal alimentou ainda lá na fazenda.

Foi quando decidiram deixar o campo e adquirir uma casa na sede do município de Brasilândia. Sonhavam em comprar uma casa grande, com um terreno bem espaçoso e fazer ali uma pensão, uma pousada. Foi quando um tradicional morador do lugar, chamado Wilson de Arruda, por coincidência, chefe do Cartório de Paz da cidade, viu o seu José Arara conversando com um mestre de obras para concretizar o seu sonho.

Ao saber o motivo da construção, o seu Wilson de Arruda, prontamente ofereceu seu estabelecimento, que já estava pronto e todo equipado, para que ali, seu Zé Arara pudesse instalar a sua tão sonhada pensão. Foi desta forma que, mesmo com poucos recursos, a alegria chegou àquele humilde lar, e o casal de agricultores passaram a ser os donos de seu próprio negócio. Quando o filho caçula nasceu em 1979, um novo negócio era inaugurado na cidade, um novo horizonte despontara: estava concretizado um sonho que permanece e perdura há 40 anos, até os dias de hoje.

Após cumprir sua missão aqui na terra, ao se despedir da família e dos amigos, no dia 15 de dezembro último, dona Maria Machado de Freitas deixa a marca de uma mulher vitoriosa, que em seus 85 anos de vida edificou em silêncio. Deu solidez às pilastras de seu castelo, que abrigou os sonhos do esposo, deu segurança e futuro aos filhos e engrandeceu o lugar por onde seus pés pisaram e seus braços soergueram. Nossas homenagens. Descanse em paz dona Maria Yô.


Brasilândia/MS, 22 de dezembro de 2021.


Foto 1: Jornal da Cidade, 2004. 

Foto 2 e demais informações enviadas por Cícero Alves de Freitas.











  
























terça-feira, 14 de dezembro de 2021

 

Dona Hermínia, a candura e fibra de uma mulher.

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

 







As imagens quase nunca enganam nossos corações. Desatentos, nossos olhos, muitas vezes, discriminam e afastam, ponderam e opinam, não percebendo a beleza e o que elas comunicam. Com o coração é diferente: os olhos penetram a alma e contemplam a aura de quem observamos, percorrendo sua trajetória, suas lutas, derrotas e vitórias.

No mundo dos homens, a maior parte delas só é valorizada quando o manto branco da idade recai sobre seus rostos, dando-lhes um ar de candura angelical. Com a passividade e o silêncio permitidos e aceito pelo senso comum que as envolve, elas passam os anos, assim, anônimas, e quase nem percebemos.

Mas, com aquela mulher não foi assim. Algo de muito nobre a revestia, mantendo-a sempre altiva e aguerrida, até o fim de seus dias. Sem perder o ar de simpatia e bondade que inspirava os filhos, noras e genros, netos e bisnetos, no alto de seus 92 anos, ela se manteve lúcida e sempre com um sorriso nos lábios, pondo ordem em tudo a sua volta.

Assim era Hermínia Martinez Hernandes Meirelles, desde o dia 30 de março de 1929 quando nasceu, mostrando ao mundo a face rosada de uma menina que logo despontava decididamente forte para uma bela mulher. Sob o frescor da juventude, lá a encontramos com a família e seus nove irmãos, morando em Catanduva/SP, aluna dedicada estudando em casa com professores contratados pelos pais.

Antes de completar 21 anos enamorou-se de Juan Manoel Servilla Meirelles com quem se casou na cidade paulista de São João do Pau D’alho. E lá estava o pai Adrian Martines Campoy e a mãe Sagraria Hernandes Vindes, cheios de felicidade, no dia 3 de novembro de 1951, vendo a filha subir o altar do matrimônio com o jovem Juan, de apenas 20 anos de idade.

E lá seguiu o casal inicialmente trabalhando na roça, nas terras que o pai Adrian adquiriu. Foi neste trabalho que a jovem Hermínia conheceu Juan, que era filho de arrendatários da fazenda. Depois mudaram para Corbélia, no Paraná e, por fim, vieram para o Mato Grosso.

Logo o céu os brindou com dez filhos: Manoel, Maria de Fátima, Adriano, João, Alcides, Ademar, José Natalino, Maria Natalina, Luzia e Vanderleia (1).

Família pioneira, trabalhadora e empreendedora naqueles tempos primeiros, praticamente fundou o povoado de Brasilândia quando aqui chegaram no ano de 1957. Num tempo onde não havia estradas, aportaram de navio, instalando-se em Panorama e de lá para Brasilândia.

Ao lado do esposo, inicialmente se instalaram na olaria do senhor Amadeo Rodrigues, depois, tornaram-se os pioneiro no beneficiamento da orizicultura que despontava, com a primeira máquina de arroz.

E lá encontramos a esposa regendo a orquestra do lar, garantindo o alimento e o vestuário de seus rebentos. Zelosa para cada um deles, em meio à rudeza do tempo, imprimia com olhar afeto e com as mãos toques de arte que encantava a todos: amava fazer crochê, preparar doce de leite, sendo que sua ocupação predileta era a costura, até mesmo porque naquele tempo eram as mães que confeccionavam a roupa de seus filhos e esposo.

Por ocasião do batismo de dois de seus filhos (José Natalino e Maria Natalina), lembra a filha, que a mãe recordava da cerimônia que aconteceu no dia da posse do primeiro prefeito de Brasilândia, José Francisco Marques Neto, e que o menino Alcides foi o primeiro menino que havia nascido no município recém-criado.

A filha recorda ainda que, naquela época, o prefeito doou um terreno para este primeiro brasilandense aqui nascido. Depois descobriu-se que um outro menino havia nascido antes e aí o terreno foi repassado para o primogênito aqui nascido. São tantas história, recorda a filha Natalina, desde o tempo em que seus avós vieram de Espanha e sua avó materna  ainda era uma menina e seu avô um homem feito. Vieram de navio, sendo que ao desembarcarem em Birigui/SP, foi lá que eles se conheceram. 

Os olhos percorrem as fotografias antigas da família e em cada uma delas, um ar de mocidade os envolve e que a tornou uma bela jovem, a ponto de cativar o amor do saudoso esposo, falecido em 23 de novembro de 2010, aos 79 anos de idade. Demonstrava, sim, ser uma mulher de fibra e onde seus predicados maternos a tornaram mãe de uma família progressista e empreendedora.

Desde a Brasilândia antiga, que dava seus primeiros passos rumo à emancipação e o progresso, ajudou a impulsionar seus negócios, seu comércio, suas lojas, empreendedores natos. A família Martinez Servilla contribuiu e marcou por demais o desenvolvimento desta cidade desde antes se tornar município.

E lá estava ela, dona Hermínia Martinez, vigilante timoneira, no leme do barco da casa, no carroção da estrada, nas idas e vindas ao mercado, na mantença da casa, no preparo do alimento, na costura e no bordado, sem perder de vista os acontecimentos sociais e políticos de sua cidade.

Ao lado do esposo, estirpe de povos de além-mar, trouxeram na bagagem a perseverança dos fortes, que atravessaram guerras e superaram o exílio, firmando-se como povo ordeiro e trabalhador, com os pés encravados no hoje, mas sempre com os olhos voltados para o amanhã.

A história desta mulher hoje perpassa os olhos e o coração de muitos, especialmente dos filhos que a saúdam em silêncio, como que reverenciando a envergadura e nobreza desta senhora de olhar cândido, mas de um coração de tônus inabalável.

Depois de uma longa caminhada, é aceitável que a família chore e sinta a dor da partida de tão importante e valorosa mulher. É compreensível também que ela seja lembrada com alegria, pois viveu e fez viver a sua volta, apontando caminhos, nunca desistindo da esperança, abraçando a causa da vida até o último momento. Descanse em paz dona Hermínia, uma mãe de Brasilândia.

Brasilândia/MS, 14 de dezembro de 2021.

 

Com informações e fotografias fornecidas por Maria Natalina Martines e Maria de Fátima Servilla.

(1) Luzia, Vanderleia e João faleceram ainda bebês. E Manoel, o primogênito faleceu aos 36 anos de idade.





















segunda-feira, 29 de novembro de 2021

 

Ailton: o menino de paz e sorriso nos deixou.

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

A rosa dos ventos do tempo não para. O frescor da brisa que nos separa do amanhã nem sempre nos faz esquecer o caminho que percorremos. Tantas alegrias, sonhos, trabalho, família, segurança, felicidade. É um caminho sem volta que todos temos que experimentar numa verdadeira travessia. É, entretanto, às vezes, os sonhos morrem primeiro e nos arrastam com eles.

Uma rápida olhada a nossa volta, percorrendo as ruas e estradas da nossa cidade, e observamos que algumas estruturas do tempo, aos poucos, vão desaparecendo, dando lugar a outras, mais suntuosas. Numa demonstração do quanto somos descuidados com as coisas que construímos e acreditamos, isso de certa forma nos aponta para o quanto somos transitórios como seres vivos por aqui.

Assim foram com os saudosos Cacretupi, AAB, Rotary Club, Laticínio, Farinheira, Escola Agrícola, prédios em ruínas no distrito industrial, e outros patrimônios que sucumbiram. Sem perder de vista, outros, como o DR Leilões que já experimenta o abandono. São imagens que vão esmaecendo com o tempo, na medida em que nossos olhos já cansados, já não mais se importam com o futuro e o amanhã de tudo isso. Passam a falar somente a linguagem do coração

Assim também são as pessoas. Independente de nossas vontades e esforço, elas partem. Mesmo que a amemos com toda a nossa alma. Uns mais jovens outros já amadurecidos e experientes pela ação dos anos. Mas todos, um dia se apartam de nós.  O que resta são bulhas e aromas de flores. Também marcas e cicatrizes. Ah, como eles deixam feridas no coração daqueles que um dia os embalaram, os alimentaram e os educaram. É nessas horas que buscamos no álbum da memória as lembranças que consolam e ameniza aquela dor inexplicável, como é o caso de nosso aluno sorriso, o Ailton.

Com apenas 13 anos de idade, lá estava ele, de microfone na mão, sorridente, falando de si, de seus gostos e satisfação de encontrar ali, com os colegas, marcando no tempo sua presença imprescindível para os propósitos de uma época de ouro, de sonhos, e onde a educação era a prioridade para os jovens oriundos do campo e que lá desejavam permanecer. Ah! Saudosa Escola Agrícola Julião Maia. A saudade de teus filhos se mistura nesta hora com a dor da despedida.

Ah! Nosso pequeno campeiro, nosso aluno querido vindo lá da fazenda Barra do Cedro para a nossa saudosa Escola Agrícola: por que partistes tão cedo? Não temos resposta para essa angústia que sufoca o coração da família e dos amigos que choram a perda daquele menino  manso e humilde. Sempre rodeado de amigos, tinha o carinho de cada um dos colegas, e a proteção de seus professores que sempre buscaram, no tempo em que foi ‘agricolino’, transformar aqueles dias num eterno jardim de felicidade. Adeus filho, aluno, pai, esposo e profissional dedicado. Adeus Ailton Correa. Descanse na paz meu aluno pelos campos do Senhor.

 

Brasilândia/MS, 27 de novembro de 2021.




terça-feira, 23 de novembro de 2021


Irmã Terezinha: pedagogia, música e borboletas azuis.

Carlos Alberto dos Santos Dutra






Existem vocações e habilidades que nascem e voam como as borboletas. E o mais belo de tudo é que, enquanto encantam nossos olhos com seu malabarismo serelepe sobre as flores, elas polinizam e geram vida.

 

Existem pessoas que são assim. Desde a tenra idade já demonstram que foram talhadas para transformar realidades por onde quer que passem. Todos sabem que é Deus que confere estes dons gratuitos que descem do alto e se instalam no coração dos que creem, cabendo aos contemplados despertá-los e dividi-los com o mundo.

 

Aquela menina tinha um pouco da felicidade e beleza de uma dessas borboletas, a aura radiante de uma borboleta azul. Desde que nascera no dia 2 de junho de 1949, aquela sergipana natural de Nossa Senhora das Dores, era como se tivesse recebido um ramalhete de graças da mãe do divino Criador do universo.

 

Alegria de seu pai, Manoel Messias Andrade e dona Maria Carlos Santos Andrade, sua mãe, eis que a menina cresceu vigorosa em meio a seus nove irmãos: José Messias Andrade; Iolanda; Manoel Messias Filho; João Evangelista Andrade Neto; Rivanda Andrade; Ivonete; José Augusto; Valdirene e Murilo.

 

Por se tratar da filha mulher mais velha, coube a ela ajudar a mãe criar o restante dos irmãos. Sempre muito responsável, entretanto, nunca descuidou de dedicar seu tempo aos sonhos e aos estudos, que concluiu até o ensino médio de forma brilhante ainda lá no seu estado natal.

 

Menina-moça, desde muito cedo se revelou criativa e inovadora destacando-se entre as demais de sua idade pelo gosto à música e o ensinar. Sempre amou dar aulas, fazer trabalhos manuais e produtos artesanais, cercando-se de pessoas sensíveis e dadas à prática da solidariedade, sobretudo àqueles mais simples e necessitados.

 

Uma demonstração de seu senso de responsabilidade e tino de organização já se revelara quando participou como secretária da Associação Maria Rosa Vieira de Melo, uma entidade benemérita de Rosário do Catete, cidade para onde seus pais mudaram.

 

Antes de completar 19 anos, eis que durante uma visita de seu tio José Carlos Santos a casa de seus pais, os olhos da bela moça que se transformara pousaram sobre um jovem tímido que o acompanhava. Tratava-se de Irineu Antônio Juzenas, com quem veio a se casar no ano seguinte, no dia 1º de março de 1969 em uma cerimônia simples, mas repleta de gratidão e orgulho para a família que foi até a capital do estado, Aracaju, para ver a sua menina de olhos azuis encantada receber a bênção nupcial.

 

Depois de mudar para a cidade de Novo Horizonte, próximo a São José do Rio Preto, no estado de São Paulo, o casal passou os primeiros anos colocando em prática o labor e os ensinamentos que seus pais fizeram aflorar, quando aquela borboletinha azul ganhou asas e tornou-se uma alegre e virtuosa mulher.

 

Inobstante, nunca deixou de lado a inspiração pedagógica, os acordes da música, o mundo dos livros e o artesanato que embelezava o dia a dia daquela que em breve seria abençoada com o supremo dom: o de ser mãe.

 

Temente a Deus desde criança e fiel aos princípios cristãos, o casal seguiu em frente, vivendo em harmonia e edificando um sólido e religioso lar. Construíram junto uma família que trouxe vida ao mundo através de seus rebentos: Tânia Mara; Sérgio Marcelo; Gláucia Marina; Irineu Antônio; Thiago Marcos; Lídia Márcia; Thaís Meire; Rafael, Raquel Mary e Abylene Monique. Dez filhos saudáveis que se transformaram em alegria e graça àquele casal de inspiração fraterna que logo começaria a colher os frutos de felicidade gerados pela dedicação e zelo construído.

 

O casal colocou os pés em Brasilândia/MS definitivamente no ano de 1989. Há 32 anos, portanto, a família Andrade Juzenas vem trilhando caminhos que ajudaram na construção desta cidade. Sim, foi aqui que seus propósitos de esperança e fé se consolidaram e frutificaram.

 

Para aquela que se tornou conhecida, apenas, como Irmã Terezinha, por méritos pessoais e a graça de Deus – e que continuou seus estudos e alcançou o nível superior em Pedagogia e pós-graduação em Psicopedagogia pela Faculdade UNIDERP, de Campo Grande --, todo esse legado profissional e social é, sem dúvida, digno de reconhecimento e homenagens.

 

Mal havia chegado ao município e, no ano de 1997 e seguintes, já se encontrava participando da Comissão Municipal de Alimentação, representando a Igreja Assembleia de Deus Belém, a que pertencia. Depois, foi convidada a trilhar e aprofundar um caminho bastante conhecido seu: ensinar crianças e adolescentes, encarando o desafio de ampliar o horizonte para a educação de jovens e adultos.

 

Tratava-se do Programa Brasil Alfabetizado que passou a coordenar a partir de 2003 realizando encontros e visitas às comunidades urbanas e rurais levando conhecimento e luz àqueles que se encontravam distantes do saber e da escrita formal. Apaixonada pelo que fazia, parecia uma menina cheia de garra e orgulho ver, ao longo de quatro anos, mais de 500 alunos receber o certificado do EJA (Educação de Jovens e Adultos), fruto do seu trabalho.

 

À frente da antiga Creche Santa Anastácia, antes de transformar-se em CEIF (Centro Educacional Infantil), a partir de 2007, abriu caminhos de esperança e conhecimento a uma centena de crianças. E lá a encontramos, feliz, nossa borboletinha azul gesticulando e animando aquela infância a entoar firmes e fortes o Hino de Brasilândia, marca indelével de dedicação desta senhora e amor no coração de quem por lá passou.

 

Membro atuante nas secretarias de Educação e de Assistência Social chegou a ser eleita durante uma Conferência Municipal da Cidade a condição de delegada para representar Brasilândia na capital do estado, Campo Grande. No âmbito da representação comunitária, é digno de registro sua passagem também pelo Conselho Municipal da Assistência Social e o Conselho Municipal do Idoso.

 

Impossível não mencionar também as ações realizadas no Centro de Convivência Izabel Senedeze Oliveira quando, a partir de 2007 assumiu a coordenação daquela instituição e colocou em prática o que possuía de mais humano em sua alma: promoveu a dignidade daqueles que ali se encontravam garantindo-lhes conforto, respeito e apoio. Conhecer e chamá-los pelo nome; saber e contar suas histórias; embelezá-los e cuidar de suas aparências, além de nutri-los com o alimento e o sonho de uma vida feliz: esse foi o pólen que das asas desta irmãzinha desprendeu.

 

Patrícia Acunha bem lembrou na época que Irmã Terezinha se sente gratificada pelo trabalho realizado ao longo dos anos e percebe o reflexo a partir dos elogios recebidos pelos próprios alunos e da comunidade. --Às vezes quando eu saio na rua e vou a algum comércio, eles [os comerciantes] me falam que veio algum alfabetizando que estuda no programa Brasil Alfabetizado que até antes assinava as notas através da digital [do polegar] e agora escrevem o próprio nome (...).

 

Destacada e hábil artesã, imperioso mencionar, igualmente, o pioneirismo do trabalho realizado junto à comunidade indígena Ofaié, quando nossa borboletinha azul, esquecendo-se que já era vovó, cismou em ser menina novamente, voando sobre campos e matas, atravessando estradas até a aldeia Anodi para levar técnicas artesanais, bordados e pinturas em tecidos, dividindo saberes com uma cultura diferente e que a acolhia num projeto que modificou vidas, gerou renda, preservou a cultura e resgatou-lhes a autoestima. Foi ali, sem dúvida, que ela desenvolveu um de seus mais belos trabalhos de reconstrução e humanidade dedicado àqueles seres humanos, nossos irmãos ressurgidos.

 

Tal qual uma jogadora de vôlei, digna do esporte que praticou na juventude, sempre se manifestou disposta e com uma persistência inabalável que está ao alcance somente daqueles que tem fé. Ao que ela mesma confessa: sempre senti satisfação em todas as funções que a mim foram confiadas. E sorri, confiante, ainda guardando aquele ar de menina, como se tudo fosse assim, natural... E divino ao mesmo tempo.

 

Ao lado das ações administrativas e sociais que desenvolveu, lá estava a mulher de oração com passos firmes e decididos fazendo visitas aos doentes, levando fé e esperança a quem mais precisava. Isso porque, ela mesma confessa que sua maior alegria é: quando uma pessoa aceita Jesus como seu Salvador, e sua maior tristeza: é quando alguém morre sem a Salvação.

 

E para não dizer que tudo na vida é sofrimento e penar, Irmã Terezinha aponta para o horizonte o brilho de seu saxofone com uma melodia celeste que faz ressoar o coro de sua comunidade de fé. Livre, encontra o voo da borboleta azul que carrega no peito os acordes da orquestra dos anjos enquanto louva. Comunica som, comunica vida, entoa salmos a quem quer que seja; recomenda-os a Deus como uma dedicada missionária.

 

As canções antigas de ninar que cantava -- lembra --, lhe fazem despertar para o agora. Era como se o céu não cessasse de lhe reservar mais e mais felicidade: E logo a bênção dos netos começam a chegar: Ana Heliza; Ana Paula; Ana Lígia; Gabriel Augusto; Victor Antônio; Emanuel Messias; Mateus Henrique; Geovana Pérola; Jhulia Vitoria; Helena; Pedro Henrique; Renam Augusto; Rafaela Fernanda; Felipe Eduardo; Mariah; Arthur Henrique; Benjamin e Victor Cristhiano. E os bisnetos: Orlando Gabriel e Eduarda.

  

Hoje, dona Maria Terezinha Andrade Juzenas está com 72 anos de idade e as lembranças que guarda são tantas que quase nem cabem dentro de seu coração. Mas a borboletinha azul insiste em voar, pois é sua missão despertar, não desanimar, e apontar para a maravilha divina que é viver e sonhar.

 

E lá se vão os desfiles da Brasilândia antiga; as formaturas de seus pimpolhos; as reuniões e festas de família; os cultos, assembleias e congressos de fé; a orquestra sinfônica de sua Igreja. Trajetória que só lhe reserva gratidão. Também pelas dores e injustiças superadas; o amor incondicional do esposo; o carinho dos filhos já crescidos; o respeito da comunidade e dos amigos. Obrigado Senhor por ter estado sempre ao meu lado. 


Brasilândia/MS, 23 de novembro de 2021.








Com informações gentilmente fornecidas de próprio punho pelo casal Maria Terezinha Andrade Juzenas e Irineu Antônio Juzenas em 20.Nov.2021. 






quarta-feira, 17 de novembro de 2021

 

Milton Ducatti: um olhar de saudade pelas estradas de Brasilândia

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

Bastou olhar para o seu semblante e ouvir suas primeiras palavras para ver que ele carregava nos ombros a bagagem que os anos foram acumulando, sem se importar muito com o peso e o seu volume. Desde moço fora acostumado a transportar em seu caminhão fardos sobre fardos de algodão, arroz, amendoim, café, entre outros cereais, que se perdiam nas alturas de seu veículo fazendo a carroceria empinar devido ao peso.

E nisso ele se tornou experiente. Assim foi com a vida e o cotidiano dos anos daquele nonagenário que naquela manhã de sábado dedicou-se a relembrar sua trajetória, até onde à memória lhe permitia o que lhe causou alegria e satisfação, sentindo-se novamente empreendedor, negociante, comprador, vendedor e transportador de outrora.

Em suas mãos, levemente trêmulas, segurava firme uma fotografia antiga onde ele, Milton Ducatti, chamado pelos amigos de Miltão, encontrava-se em frente de seu caminhão carregado de algodão, e dividia a imagem com seus companheiros, o Júlio Batista, o Cláudião, um outro rapaz que não lembra o nome, o Maritaca (Joaquim Pinto Nunes) e o Anísio de Almeida Borges, secretário de administração municipal na época.

Nascido no dia 12 de maio de 1931, na cidade de Monte Azul Paulista, na região de Bebedouro/SP, seu Milton Ducatti tinha como pais: Natalina Pilão Ducatti e Candinho Ducatti. Seus avós vieram da Itália no final do século XIX e seu pai começou trabalhando no Brasil como charreteiro transportando professores para a escola, e depois caminhoneiro transportando produção agrícola.

Ao lado dos sete irmãos – Matilde, Moacir, Judite, Nei, Nadir, Antônio e Anísio -, seu Milton Ducatti ajudou a mãe a criá-los, desde muito cedo manifestou fascínio pelos negócios e o transporte de cereais e mantimentos. Depois de deixar o sitio de 12 alqueires em Monte Azul e se mudar para outro sitio de 18 alqueires adquirido em Pompéia, a família passou ainda pela fazenda Sumatra, de Ariosto Junqueira, antes de radicar-se definitivamente em Dracena/SP.

Durante a entrevista que nos concedeu há cerca de um mês, pode-se perceber a facilidade com que ele lidava com os números, as cargas, o peso, os valores, as áreas, as distâncias, nomes de fazendas, de pessoas e de fatos acontecidos no passado. Ele os trouxe para o hoje com extrema clareza, como se estivesse lendo as páginas de um livro. Essa habilidade aplicou-a na atividade que passou a desenvolver quando adulto no mundo dos negócios chegando a financiar muitos pequenos sitiantes dando-lhes oportunidade de realizar o plantio de algodão, café e arroz na região. Com a família já erradicada em Dracena, sua atividade consistia na entregava a produção agrícola recolhida aqui no então Mato Grosso destinado ao comércio e cooperativas do estado paulista.

Ele lembra muito bem de uma das primeiras viagens que realizou com seu pai pelo então distrito de Xavantina transportando uma carga de arroz, quando se fazia acompanhar do caminhoneiro Vitório, lá pelas bandas da fazenda do então prefeito Julião de Lima Maia. Foi nestas viagens que aprendeu com o pai – verdadeiro desbravador do sertão --, que viu de perto as dificuldades do agricultor para produzir o cereal que transportava. Juntamente com seu sogro, que também abriu fazendas, plantou café (que não deu certo), plantou algodão (que rendeu pouco), por fim dedicou-se sobremaneira no transporte com seu caminhão. E à semelhança do pai, sentia orgulho em dizer que em seus negócios só pagava com dinheiro vivo.

Outra lembrança que guarda é a de ter adquirido seu primeiro caminhão, um Ford antigo 1946. Tratava-se dos famosos caminhões Ford G-700, alemães (de Colônia), e que tinham motor V-6 a diesel, de dois tempos, sendo que se tornou comum no Brasil, a partir de 1955 substituir a mecânica desses caminhões pelo V-8 à gasolina. Miltão lembra que estes caminhões surgiram na época da estrada de ferro da alta paulista quando os trilhos chegaram a Adamantina. Esses caminhões a diesel soltavam uma faísca de fogo na hora da partida e fazia um barulho inconfundível; a Paulista comprou uma penca deles, explica.

Recorda que este caminhão gastava uma semana para ir a Angélica para buscar mantimentos, sorri. Por estas bandas chegou a adquirir uma propriedade, mas acabou perdendo todo o seu investimento, pois ao confrontar a escritura no cartório foi-lhe informado que o documento era falso. Carregou muito arroz da lavoura de 60 alqueires dos pais do Irineu Gaiotte, seu Armando Gaiotte e dona Ilda, e também da fazenda do Wilson de Arruda na região do córrego Boa Esperança, em Brasilândia. E lá ia Milton Ducatti pelas estradas em meio ao cerrado, muitas vezes sem almoço, sem janta, longe de tudo e de todos, recorda.

Corria o ano 1975, e lá se encontrava hospedado por alguns meses o caminhoneiro Miltão no hotel do Joaquim Cândido da Silva que funcionava onde depois se instalou o Mercado Lisboa, do comerciante Domingos Cristóvão Lisboa. Foi nesta época que aquele homem que na juventude gostava de frequentar bailinhos e muito cedo se dedicou ao trabalho e que estudou somente até o 4º ano primário como era o costume das famílias de imigrantes tinham de valer-se da força de trabalho da família para conseguir o êxito econômico esperado, foi nesta época que ele se consolidou como brasilandense.

De fácil comunicação logo se tornou muito conhecido, nutrindo amizade com todos. Recorda que durante as viagens que realizava regularmente levou de carona muitas vezes o então estudante universitário professor José Cândido da Silva que frequentava a faculdade em Dracena. Os nomes e lugares ainda estão muito vivos na sua memória. Lembra do Donizeti Vituriano, falecido recentemente, quando ele ainda era moleque e trabalhava no sitio vizinho do Júlio Batista. Outra lembrança mostra que o secretário de finanças do município, Anísio de Almeida Borges possuía um boteco logo na entrada da estrada chamada de Tora Queimada que dava acesso à fazenda Pedra Bonita.

Sobre os laços de família, com a primeira esposa, Lourdes, teve os filhos José Milton, Jair, Lucas e Fátima. Depois de 24 anos de casado, separou-se e, já no município de Brasilândia conheceu Eva Alves de Freitas, permanecendo juntos desde 25 de maio de 1977, sendo que nesta bela união, juntos criaram os filhos Edmilson e Rodrigo permanecendo eternos namorados.

Seu Milton Ducatti trabalhou como caminhoneiro até os 84 anos de idade, quando vendeu o caminhão e aposentou-se. Na data de nossa entrevista contava com noventa anos de idade, vivia das memórias e sementes dos cereais que plantou e rolaram sob a lona e o rodado de seu caminhão que fez história pelas estradas de uma Brasilândia antiga e que já não existe mais. 

História de uma Brasilândia, contudo, que ainda é capaz de chorar a partida de um grande e generoso cidadão desta terra. Descanse em paz saudoso amigo guerreiro Milton Ducatti.

 

Foto: Milton Ducatti e seu caminhão, tendo ao lado Júlio Batista; o Claudião; um empregado (que trabalhou na máquina de arroz do seu Armando Gaiotti); o Maritaca (Joaquim Pinto Nunes) e o Anísio de Almeida Borges.

Fonte: A história completa de Milton Ducatti pode ser lida em DUTRA. C.A.S. História e Memória de Brasilândia/MS, Volume IV-Desenvolvimento, Capítulo 2-O mundo urbano e rural que nos rodeia, pág. 138-140. (No prelo).

terça-feira, 9 de novembro de 2021

 O impacto da Pandemia sobre a pobreza.

Carlos Alberto dos Santos Dutra


Falar sobre o impacto da pandemia sobre uma comunidade exige que delimitemos o espaço geográfico onde ele ocorreu. Se falarmos da África, por exemplo, com certeza o impacto será muito mais severo do que nos continentes do chamado 1º mundo.

Isso porque a pobreza tem cor, tem som e tem cheiro nos diferentes lugares da terra. E não furta ninguém de gritar quando os atinge deixando um rastro de dor naqueles que menos tem, por onde passa.

Nas comunidades pobres do Brasil a doença quando chega não discrimina ninguém, porém sua dor é mais perceptível quando avança em direção àqueles que – como se fossem invisíveis --, não percebemos a nossa volta:

É o cinturão de miséria das grandes cidades, a carência e distância dos povoados e aldeias, a solidão da margem dos rios, a insegurança de casas sobre palafitas ou o interior das matas e cerrados deste imenso país de contrastes.

Através de óculos de alcance ainda é possível perceber uma legião de homens, mulheres e crianças em situação de rua, à mercê da proteção do tráfico e violência como única forma de sobrevivência.

Um olhar mais adiante e lá estão as cadeias públicas e presídios abarrotados de jovens, a maioria deles pobres, negros e indígenas trancafiados por um sistema carcerário que não diferencia homens e mulheres não lhes garantindo condições mínimas de sobrevivência.

À exemplo do que ocorreu no restante do mundo, a pandemia causada pelo vírus Covid-19 foi implacável e a todos submeteu.  Porém, aos mais pobres, devido às carências estruturais históricas, seu impacto foi mais profundo e devastador.

No contato com este mal coletivo que as famílias mais pobres perceberam o quanto elas se encontravam desprotegidas e desamparadas, distantes do centro de onde tudo emana, e deram-se conta.

Somente a partir da divulgação dos primeiros óbitos, entre eles, o de seus familiares e amigos é que começaram a abrir os olhos para o problema que sempre os acompanhou: a exclusão social. E partiram em busca de socorro médico.

Em meio à polêmica midiática e dicotomia divulgada entre o descrédito na ciência e crédito em medicamentos ineficazes, patrocinado pelo próprio governo central, uma legião de cidadãos desassistidos, ainda assim, buscou o tratamento exigido.

Graças ao SUS as portas da dignidade estavam abertas para acolhê-los. Desde o menor posto de saúde do minúsculo município do país até o hospital do grande centro urbano, lá estava todo o aparato clínico para acolhê-los.

Eram enfermeiros, auxiliar de enfermagens, médicos, farmacêuticos, motoristas, serventes, fisioterapeutas, voluntários, atendentes que deram tudo de si para proteger e salvar vidas.

Se por um lado a pandemia retirou do convívio público e coletivo milhares de pessoas, em razão das medidas restritivas sanitárias, por outro lado, fortaleceu os laços familiares e de vida em grupos fazendo-os a repensar suas formas de viver.

A própria doença, o acompanhamento aos internados, o isolamento imposto e os gestos de solidariedade praticados, tudo contribuiu para que o valor da vida fosse repensado e o zelo e o afeto se tornassem o que mais importava nesses momentos.

A cada óbito contabilizado – foram mais de 600 mil mortos no país--, uma família desestruturou-se. Chorou, sofreu, rezou pelo seu ente querido que partiu. Mas acabaram se conformando, dado o forte sentimento de fé religiosa que move o povo brasileiro.

O impacto da pandemia sobre a pobreza, portanto, deixou marcas que os demais, mais abastados, jamais entenderão.  Isso porque em muitos casos esses perdiam tudo. Como se um vendaval lhe arrebatasse a casa, destruindo seus alicerces.

Foram tiradas vidas de quem só tinha ela como garantia para continuar vivendo. Foram mães-chefes de família que deixaram seus filhos na tenra idade, órfãos. Foram filhos que tiveram de enterrar tão cedo os pais, mesmo sem tender direito o que ocorria.

O impacto que a pandemia causou na sociedade, pode-se dizer, mostrou também que o Brasil e sua diversidade tem rosto de esperança e tem voz. Saíram de seus nichos e deram-se as mãos em busca de apoio dando-se a conhecer.

Sobretudo com o advento da vacina, onde a grande maioria, sobretudo os mais idosos, apostou na esperança e vieram receber a 1ª, a 2ª e a 3ª dose do imunizante, sorrindo, viesse de onde fosse.

Se por um lado a pandemia mostrou um divisor de águas entre pobres e ricos; entre os que acreditavam na ciência e os que eram contra ela; por outro lado o combate ao Covid-19 revelou o quanto houve avanço no campo da saúde.

O impacto da pandemia sobre a pobreza em termos numéricos, somente o IBGE pela realização de um novo censo previsto para 2022 certamente poderá contabilizar. Porém, as consequências do desemprego, a recessão e a fome que assola os mais pobres, salta aos olhos e é impossível não percebe-la quando andamos nos mercados e nas ruas. 

Também há de se considerar o quanto de poder de resiliência a população mais despossuída economicamente demonstrou nestes dois anos de sofrimento. E ainda assim foi capaz de superar as dificuldades e adaptar-se às novas realidades existenciais, por mais desafiadoras que fossem.

Em contrapartida, no outro lado da balança, a pandemia garantiu, por mão inversa, ao setor mais abastado da sociedade (os ricos, empresários, industriais, bancos, mídia e governantes) poder locupletar-se ainda mais, perpetuando a injustiça social, através do aumento abusivo de preço dos produtos e serviços, o que prolongou ainda mais a dor e o sofrimento dos mais pobres.

Por fim, cabe lembrar que o impacto da pandemia sobre a humanidade revelou o quanto a vida é tênue e a sobrevivência de cada ser humano depende do esforço criativo de todos. E deixou-nos uma severa lição: a urgência de colocarmos em prática instrumentos e sistemas de equidade que garantam a preservação da vida e a sobrevivência de nossa casa comum, o planeta.

 

Foto: Getty Images. Valor Invest, Globo, 2020. Cf. https://valorinveste.globo.com/mercados/internacional-e-commodities/noticia/2020/10/07/covid-19-pode-jogar-150-milhoes-de-pessoas-na-extrema-pobreza-ate-2021.ghtml

 

Brasilândia/MS, 9 de novembro de 2021.