sábado, 28 de outubro de 2017

A Língua Ofayé e o reencontro com a esperança

A língua Ofayé o reencontro e a esperança.
Carlos Alberto dos Santos DutraO sentimento é maior que a razão. Mas atenho-me a foto, tendo dela participado para impregná-la no tempo. Lá estavam dois embaixadores daquele povo-esperança. De um lado, o velho cacique Ofaié, Xehitâ-ha, batizado pela cultura portuguesa de Ataíde Francisco Rodrigues, e ao seu lado, um estudioso da língua Ofayé, Prof. Eduardo Rivail Ribeiro, que também se identifica com o povo Kariri e recebeu dos patrícios Karajá o nome de Kawina.

Depois de uma longa separação, o informante indígena Ofaié se reencontra com o amigo professor, mestre e doutor
de respeitável estudo e bibliografia etnolinguistica garimpada pelos recônditos meandros de campos e cerrados brasileiros, não sem antes superar os desafios da pesquisa e as exigências da cátedra do além mar.

E lá estavam aqueles dois intelectuais orgânicos com os pés muito firmes no chão, em meio aos escombros de uma nação, sobreviventes, vislumbrando horizontes possíveis para aquele povo ressurgido, cuja língua do tronco macro-Jê é falada hoje por apenas nove pessoas. Quem os observa é Hanto-grê que se encontra ao lado. E agachado, de mão dada a ela, Ancheirai, o outro pesquisador que acompanhou o ilustre professor até a Aldeia Enodi (anödji).

É impressionante como as ideias e os sentimentos unem as pessoas não importando sua origem ou raça. Pouco importa a cor de nossa pele ou a tinta de nossos cabelos. O que permanece é o olhar e o coração: “Eu sei quem é o senhor”, disse Ataíde, logo que avistou o visitante. Já faziam mais de 10 anos que eles não se viam, e olha que eles fisicamente mudaram com o tempo, mas uma coisa permaneceu e os identificava: o lugar social.

Para ser cientista social, pesquisador, professor ou servidor de órgão oficial ou ONG indigenista é preciso ter vocação. Para além do imanente e transcendente. É preciso ser transparente, zeloso sacerdote para lidar com a alteridade. Nessa condição somos atemporais, o relógio é o sol, e o estômago é que nos alerta para a primariedade da vida e a sobrevivência. Há de se ter paciência e sensibilidade para perceber o detalhe, odetalhe importante como observa Peter Burke (1).

Obsequioso e gentil lá está o anfitrião que tem o apelido de Kren-graí, de 56 anos, mostrando ao professor suas anotações e pesquisas. Numa pequena prateleira improvisada de tábua e tijolos, reúne materiais – livros surrados, revistas e jornais velhos --, a maioria deles recolhidos pelas bordas da civilização. “Esse livro achei no lixo”, confessa sem cerimônia, sorrindo, enquanto mostra a obra de Gabriel Garcia Marques, como se guardasse o último tesouro da terra.

Pelas paredes de seu quarto, desbotadas figuras do mundo contemporâneo, de luta e símbolos de resistência – como a foto de Ingrid Bitancurt, ex-refém da FARC recém-saída do cativeiro e a estampa do Padre Marcelo Rossi animando uma multidão de fiéis num concerto para a Paz. Mosteiro de portas abertas a luz adentra aquele claustro e o mundo que o cerca revelando o homem plural e de aspirações holísticas que se encontra a nossa frente.

No esplendor de suas potencialidades intelectuais, é uma pérola, uma joia rara que, depois de lutar contra o genocídio imposto sobre os Ofaié, depois de ajudá-los empunhar a bandeira do reconhecimento étnico frente à FUNAI e soerguer esse minúsculo povo das cinzas, hoje enfrenta a hanseníase, a discriminação e a indiferença. Vive isolado numa casinha, entre plantas e a literatura, num canto da aldeia Enodi, mas se revigora e alegra ao receber visitas que o despertam para a vida.

Quando sóbrio, dá gosto conversar com esse verdadeiro depositário do cabedal histórico do povo Ofaié. Ainda que seja jovem, o aspecto é de um idoso, tamanho o peso de suas desventuras pelas trilhas do abandono. Quantas vezes pela manhã saiu feliz de uma casa, onde havia ganhado alimento e roupas novas, para logo a noite ser encontrado escondido, 
somente de calção, tremendo de frio, depois de ter sido roubado, espancado e jogado no breu de uma rua qualquer, pelos descaminhos da solidariedade etílica que todos os dias ceifa a vida de dezenas de desvalidos, mesmo na pequena Brasilândia, cá num pontinho do Mato Grosso do Sul.

O rosto do grande líder se ilumina ao sintonizar as palavras do linguista com a frequência das intenções que pulsam no lado esquerdo do peito. Gesticula, sorri, faz planos. E ambos numa cumplicidade contagiante aspiram dias melhores para aquele povo. Desejam continuar, permanecer ali por mais tempo, realinhando rumos, como que trazendo o amanhã de projetos e felicidade futura para perto do tererê e a sombra que os acolhe no agã-chanagui daquela tarde que morre.

Hanto-grê, de olhos muito pequenos, chora a saudade de João Carlos Can-hê. Na casa ao lado, Neuza Teng-hô e Luciana Chamiri espreitam o amanhã de seus filhos que acabam de chegar da Escola Ofaié E-Iniecheki que funciona na aldeia. Da mesma sorte, o cacique José Kói e o professor Silvano Hang-tar-héc, partilham desta esperança. A Profª Marilda Char-tâ, segue redesenhando suas cartilhas sempre apoiando os pesquisadores que por lá aparecem, na espectativa de dar eco as palavras de Darcy Ribeiro: "A língua Ofaié está salva(2). Seu esposo guarani-kaiowá, Roni Va-verá, em silêncio, na sua cadeira de rodas, tudo observa. Diz ao professor de longe que “lembra de tudo”. Sorri e continua falando.

Enquanto o carro se afasta levando Kawina e Ancheirai, levam eles também na mochila satisfação e uma sensação de saudade. No rasto, para os olhos de Xehitâ-ha e o restante da aldeia Enodi (nödji), fica por lá, quem sabe, a sensação de esperança.

(1) RIBEIRO, Renato Janine. Peter Burke. Entrevista a Renato Janine Ribeiro. Seção Textos. nº 20, pp. 112-8, dez/93-fev-1994.
(2) RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo, Companhia das Letras, 1997., p. 171.



Para saber mais sobre os Ofaié, acesse: 

A intolerância religiosa e os tambores da fé

A intolerância religiosa e os tambores da fé
Carlos Alberto dos Santos Dutra

A recente decisão da Justiça Federal no Rio de Janeiro que definiu que cultos afro-brasileiros, como umbanda e candomblé, não são religião, e que suas “manifestações religiosas não contêm traços necessários de uma religião”, mexeu com a fé e o sentimento de muita gente.

A notícia trazida por Tiago Chagas informa que a definição aconteceu em resposta a uma ação do Ministério Público Federal (MPF) que pedia a retirada de vídeos de cultos evangélicos que foram considerados intolerantes e discriminatórios contra as práticas religiosas de matriz africana do YouTube.

O juiz responsável, Eugênio Rosa de Araújo, ainda que em primeira instância da 17ª Vara Federal do Rio, entendeu que, para uma crença ser considerada religião, é preciso seguir um texto base – como a Bíblia Sagrada, Torá, ou o Alcorão, por exemplo – e ter uma estrutura hierárquica, além de um deus a ser venerado.

A ação do MPF visava a retirada dos vídeos por considerar que o material continha apologia, incitação, disseminação de discursos de ódio, preconceito, intolerância e discriminação contra os praticantes de umbanda, candomblé e outras religiões afro-brasileiras. “Para se ter uma ideia dos conteúdos, em um dos vídeos, um pastor diz aos presentes que eles podem fechar os terreiros de macumba do bairro”, disse o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jaime Mitropoulos.

Diante da sentença prolatada, impossível ao cidadão não posicionar-se e desvelar o equívoco em que se pautou o douto juiz federal. Para tanto, recorro aos apontamentos da velha Teologia concluída ainda em 1985 lá na PUC em Porto Alegre, quando travava com o especialista em Teologia Ecumênica, meu professor Dr. Moacyr Flores, profícuas e acaloradas discussões.

Pois bem. Esqueceu o ínclito magistrado que uma das atividades mais universais da humanidade, sendo praticada por todas as culturas, desde o início dos tempos, é a religião. E que não há uma definição de religião universalmente aceita, muito mesmo no arcabouço jurídico pátrio.

Alguns aspectos da religião, entretanto, é pacífico para a maioria dos estudiosos. Eles seriam cinco: a Fé, o Culto, a Comunidade, o Credo, e o Código. O primeiro, a Fé, é a parte interna da religião, o sentimento que leva as pessoas a acreditarem, manifestando temor e reverência a um deus supremo. O segundo elemento é o Culto, ou seja, é tudo o que a devoção envolve e que representam a expressão da fé: construções, imagens, altares, rituais, canções sagradas, reuniões, gestuais, louvores.

O terceiro elemento constitutivo da religião seria a Comunidade, ou seja, o aspecto social da religião onde a mesma se insere. São os devotos de uma igreja, templos, casa ou ambiente específico, denominação, corpo eclesial, entre outros. O quarto aspecto da religião é o Credo, que envolve todas as crenças e ideias mantidas pela religião: inclui as escrituras, livros sagrados, entidades espirituais, anjos, demônios, conceitos concernentes ao conteúdo da fé. Por fim o quinto elemento da religião, que seria o Código, ou seja aquilo que envolve o modo como as pessoas se comportam devido à sua crença religiosa: inclui éticas, tabus, ideias sobre valores, pecado, santidade, geralmente contido num livro sagrado ou de norma cogente.

Estava lá, tudo apontadinho no velho e surrado caderno "panamá". E foi assim que por muito tempo entendi que esses cinco elementos é que melhor definiam se uma determinada manifestação religiosa pode ou não ser considerada religião. Também ensinei isso aos meus alunos na disciplina de ensino religioso que tornei-a holística e ministrei por algum tempo. Revendo esses apontamentos em face da notícia que nos chega do Rio, entretanto, percebo que, no caso da Umbanda e Candomblé, essa manifestação do rito afro-brasileiro se enquadra nos cinco quesitos exigidos para ser considerados religiões. Portanto, errou o juiz carioca no argumento de sua sentença.

Bem elucidou o procurador Mitropoulos ao lembrar “a noção de que as religiões de matizes africanas estão ancoradas nos princípios da oralidade, temporalidade, senioridade, na ancestralidade, não necessitando de um texto básico para defini-las”. Aliás, no cômputo geral da classificação das religiões, enquanto o judaísmo, o islamismo e o cristianismo são classificados como religiões proféticas, as manifestações religiosas afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé, são classificadas como religiões espiritualistas. Visão esta plenamente aceitável e corrente na literatura especializada.

Cai por terra, assim o fundamento que embasa a decisão do magistrado carioca, de discriminar as religiões afro-brasileiras dando ganho de causa àqueles que, de posse de tal decisão, só alimentarão a intolerância religiosa que aos poucos vai tomando de assalto a epiderme social deste Brasil plural étnico e religioso. Assiste razão, pois a “perplexidade” do senso comum instaurada, “pois ao invés de conceder a tutela jurisdicional pretendida, optou-se pela definição do que seria religião, negando os diversos diplomas internacionais que tratam da matéria, a Constituição Federal, bem como a Lei 12.288/10”.

Isso sem mencionar a dura luta que o povo imigrante de além mar enfrentou, revestindo-se esse ato praticado pela esfera federal do Brasil, vergonhosa “negação da história e dos fatos sociais acerca da existência das religiões e das perseguições que elas sofreram ao longo da história”. De acordo com o site Justiça em Foco, e G1 Globo, o MPF recorreu da decisão em primeira instância da Justiça Federal para continuar tentando remover os vídeos da plataforma de Streaming do Google.