quarta-feira, 29 de setembro de 2021

 

Dona Ana Pereira Gonçalves e as lembranças vivas de Brasilândia

Carlos Alberto dos Santos Dutra



Quem trafega pela rodovia BR-158, ao passar pelo Bar do Rio Verde, e não se detém por alguns instantes no estabelecimento do senhor José Gomes e dona Neuza, dificilmente irá saber a joia rara da memória local que ali se esconde.

Trata-se de uma senhorinha chamada Ana Pereira Gonçalves, uma baiana vinda lá das bandas do Riacho Santana que chegou a Brasilândia quando havia somente duas casas, ela recorda muito bem deste tempo, detalhe por detalhe.

Sobre sua idade, diz que nasceu em 1923; sua certidão de casamento, ainda lavrada à mão pelo cartório de Matina-BA acusa que ela nasceu no dia 26 de julho de 1926, e sua carteira de identidade, recente, aponta 26 de julho de 1933 como o ano do seu nascimento. Divergências a parte, ainda assim, tudo lhe confere possuir idade na faixa dos  88 anos a 98 anos.

Sua história e lembranças mais vivas começam no dia do seu casamento, realizado no dia 17 de agosto de 1951, quando a noiva Ana Pereira dos Santos, com 24 anos de idade, deixou a capelinha da Lagoa dos Bois e se dirigiu ao Cartório da Vila Matina para lavrar a sua certidão de casamento.

E lá se encontrava feliz a filha do seu Francisco Antônio dos Santos e dona Maria Pereira da Silva, e a comunidade do município de Riacho de Santana, lugarejo perto de Guanambi e Lapa do Bom Jesus, ela observa.

Ao seu lado, o noivo que a escolheu, o lavrador  Izaías Gonçalves da Cruz, com 25 anos de idade, nascido no dia 22 de dezembro de 1926, filho do seu Tibério Gonçalves da Cruz e dona Lionidia Maria de Jesus. Ele nascido na mesma região, cuja família era oriunda da antiga fazenda Casca que deu origem ao lugar.

Dona Ana lembra muito bem quando iniciou o namoro que nem existiu. Eu conheci ele. Ele veio para São Paulo, e eu nem pensava em casar. E quando vi, casei. Ele tinha casamento marcado em São Paulo e foi na Bahia buscar a família para o casamento. E não voltou. Chegou lá onde eu morava, se interessou de mim, e largou a coitada lá, sem casar e casou comigo. A minha ‘sorte’ era de ser dele. O que eu ia fazer? Eu tinha de casar. Ele achou que eu era melhor do que a outra, sorri.

Parecia predestinação. Ela recorda que um dia, aquele que viria e ser seu sogro, durante uma reunião de novena, falou para sua mãe: --Hei! Maria. Era para eu casar com você, mas eu não casei. Mas a sua filha vai casar com o meu Izaías. Seu Tibério, na época bebia e ficava bêbado, mas bêbado mesmo. E minha mãe, diz dona Ana, deu de ombros, nem ligou para o que ele disse. Anos mais tarde, assim tudo se sucedeu.

Depois de casados o casal veio da Bahia para o estado de São Paulo. Em plenos anos cinquenta, estabeleceram-se inicialmente em Sorocaba, que dona Ana chama de Sorocabana. Depois se mudaram para Araraquara, e, por fim, já nos anos sessenta chegaram a Brasilândia. Recorda que aqui não existia nada. Só tinha um cerradão, não tinha casa, só cerradão, de um lado e do outro, só tinha guabiroba, sorri.

Filha de uma educação muito severa, recorda que seu pai não permitiu que ela estudasse: o meu pai me trazia numa prisão; eu não saia. Ele era um velho que não deixava eu ir à escola, nem leitura meu pai deixou que eu tivesse. Ele dizia que ‘mulher não precisa de leitura’,  dizia que ‘leitura é um par de éguas’ . Minha mãe até que tentou: ---Home, põe a menina na escola, dizia, pelo menos para assinar o nome. --Que nada, mulher, leitura de mulher ‘é que num par de éguas’, amanhã depois está escrevendo carta pra namorado...

E continua: Não me ponhô na escola, nem para assinar o nome eu sei. Minha assinatura é o dedo, tudo que eu faço tem que ser o dedo. Vou dizer para o senhor: não tenho orgulho da pessoa ser rica, não tenho orgulho da pessoa ser bonita, ou outra coisa. Eu só tenho inveja da escrita, que os outros leem as coisas e eu não sei; isso eu tenho. Meu pai não deixou. Casei, fiquei arrumando filho; nem filho, nem marido me ensinou: fiquei burra! Engana-se aquela sábia.

Dona Ana teve nove filhos. Também criou outros três. Se lá na Bahia ajudava a família no plantio do algodão e a criação de gado no sitio que a família possuía, quando chegou à Sorocabana e Araraquara,  a lida na roça permaneceu a mesma, dedicando-se quase que exclusivamente trabalhando em roças de algodão e também no plantio da hortelã.

No começo eu até que ajudei mais, mas depois eu comecei a ganhar criança, e ai ele (meu marido) não deixou eu ir prá roça trabalhar, tinha que ficar em casa cuidando das crianças. --Não mulher, você vai ficar em casa, não precisa ir trabaiá. Aí ele trabalhava auxiliado por um cunhado e outros meninos que nós criava e que já eram maiores.

Em terras brasilandenses depois de residirem muito anos na cabeceira da ponte do Rio Verde, a família do seu Izaías e dona Ana residiu na região da Cabeceira Perdida onde compraram um sitio lá. Também adquiriu outros dois sítios próximos ao córrego Beleza, um no fundo e outro na sua cabeceira. Quando morava aqui no Rio Verde, dona Ana recorda da escolinha que ali existia. A escola não era aqui (próximo ao bar do Rio Verde), no começo era lá em cima. Era uma escolinha de barro, de barrote, quem a construiu foi o finado Doca (Otacílio Ribeiro).

Esta escolinha era alguns metros acima para onde ela depois foi transferida, já de alvenaria. Era de barrote e coberta de folha de coqueiro. O compadre Doca que fez para os filhos dos empregados, pois ele tocava muita roça ali e ele fez a escolinha para os alunos dos trabalhadores dele. Tinha uns morares ali e as crianças vinham estudar ali. A área, parece, era de um espanhol, de nome Antônio Daio.

Depois que o Patrocínio veio, ele fez aquela escola, que passou a funcionar após a desativação da antiga escola próxima ao sitio da Toca da Raposa, que fora construída pelo seu Doca. Foi o prefeito Patrocínio de Souza Marinho que construiu durante a sua gestão, em 1967. Vinte anos depois esta escolinha foi desativada, quando os alunos passaram a ser levados para a sede do município de Brasilândia. Dona Ana recorda que a primeira professora dali tinha o nome de Cida, observa.

Sobre a escola da Cabeceira Perdida ela recorda que o prédio de madeira foi construído no terreno do Jeremias, era ali que os meninos da Perdida estudavam. Depois, com o tempo, acabo, passaram ir para Brasilândia. Dava uma volta lá, ia ate o Cafezinho e de lá iam para Brasilândia. A minha filha Neuza foi uma delas que estudou em Brasilândia, e começou a estudar na Cabeceira Perdida. Ela era pequena ainda, tinha a idade de uns seis ou sete anos e estudou ali até a segunda série. A escola era mais prá frente onde morava a família do Zé Rodrigues. Depois acabo.

(...) Os olhos de dona Ana, sempre muito vivos, parecem estar lendo um livro e as lembranças lhe tomam de assalto. Aqui em Brasilândia não tinha nada só duas casas, um mercado, e uma farmacinha, era o que tinha, depois foi aumentando. Neste mundo rural, a solidariedade era o principal ingrediente para nutrir amizades. Eu cuidei do filho da dona Joana (mãe do José Cândido).  A comadre Luzia lavava a roupa para dona Joana  e eles vinham sempre na vereda aqui, e as crianças ficavam brincando com meus filhos: o Zé Cândido, os dois meus, e a Áurea, todos ficavam brincando, também com as crianças da minha vizinha. Eles sempre vinham aqui no Beleza do Rio Verde. Nesta época eu era dona daquela Toca da Raposa, lá era meu, eu morava lá, eram 20 alqueires.

Segundo dona Ana, a explicação para terem colocado o nome do sitio de Toca da Raposa era porque o lugar possuía muitas raposas ali. Quando entramos no sitio, onde é a Toca (Novo Porto João André) agora, ali não tinha nada de toca, o homem que era dono do sitio trabalhava no banco (Financial), o nome dele era Pedro, o primeiro gerente. Meu marido comprou aquela parte depois vendeu para o  tal de Leonel, que, depois, colocou o nome de Toca da Raposa.

Sobre seu Izaías, seu esposo, dona Ana lembra que ele morreu novo. A filha Neuza tinha pouco mais de cinco anos. A mãe ficou viúva nova. E não tornou a casar. Seu Izaías morreu depois de tentar apagar um fogo que alguém colocou no pasto. Ele e os demais companheiros foram apagar o fogo e, conseguiram diminuir a chamas e por fim debelar o incêndio.

--Só que os outros não beberam água depois, ela conta. O pai tomou água após apagar o fogo, e não pode. Ele chegou na casa do funcionário e bebeu água. Aí ‘estuporou’, deu derrame cerebral. Não pode beber água com o corpo quente. Ele bebeu numa moringa, aquelas moringas de barro, água fresca. O finado Zé Dias ainda reclamou. Mas ele insistiu: --Não seu Zé, não tem nada, eu molhei os pulsos, justificou. Posso beber sim. Molhou os dois pulsos e bebeu a água. Aí ‘estuporou’ tudo.

Ele chegou em casa já se enrolando (a fala) e passando mal. A filha Neuza conta que passaram limão e sal nas mãos dele, mas ele não melhorou. Ele ainda dirigiu até onde estava o motorista dele na Tora Queimada. --Você não pode dirigir home, retrucaram. O Orlando (vendedor de doce) foi quem socorreu. Zeferino pegou o carro e levou até o porto, passaram de bote e chegaram a Panorama. De lá seguiram de trem para Dracena, depois Ribeirão Preto. Mas não conseguiu salvar.  Ele faleceu no dia 13 de setembro de 1969. Nem o corpo do meu pai depois da morte veio para cá, lamenta a filha, hoje, passados cinquenta anos do ocorrido.

Entre as obras que seu Izaías deixou marcadas na história de Brasilândia está ter ajudado a construir o Cruzeiro, marco da fundação do município de Brasilândia. Ajudou também a edificar o cemitério local, vendo ali ser enterrado o primeiro brasilandense, o irmão de um compadre seu que ajudou também a construir o cemitério. O cemitério era feito de madeira, com um cercado de pau a pique. Era no mesmo lugar em que atualmente se encontra, somente mais pequenino, depois foi aumentando.

Naquela época (antes de 1965) não tinha prefeito dentro de Brasilândia, quem fazia as coisas eram os outros, os moradores, uns ajudando os outros, os moradores que tinham aqui, todos davam uma mão para fazer as coisas. Então meu marido, foi levantar o Cruzeiro, ele e o Bastião Constantino, o finado Zé Dias, entre outros. Quanto às missas, dona Ana recorda que elas aconteciam esporadicamente. Quando tinha missa acontecia no Grupo (Grupo Escolar Artur Höffig), ali eram realizadas. O padre que vinha aí não lembra o nome.

(...) Os olhos de dona Ana, agora se iluminam ao rever o quadro do retrato de casal, fotografia tirada pelo primeiro fotógrafo de Brasilândia, seu Abel Oliveira. Ao mencionar o fotógrafo recorda dos binoclinhos que ele vendia com as fotografias que tirava das pessoas. Instrumentos que aos poucos ela foi perdendo, pois um filho ou neto queria ver e aos poucos foram se perdendo.

A tarde declina e as lembranças ainda permanecem muito vivas. Recorda dos vizinhos que viviam a sua volta. Parece ouvir novamente as risadas e as brincadeiras das crianças. Lembra do vizinho Zé Leite e sua família, quando os filhos daquele alagoano brincavam com os seus e dona Ana havia sido madrinha de uma menina filha do casal (...).

As lembranças de dona Ana apresentam-se como um GPS que aponta o rumo certo para cada momento da história, focando sempre esses tempos primeiros, e os reflexos sociais da ocupação do espaço físico, quando Brasilândia ainda buscava sua emancipação (...).  Naquela época, ficava muito claro que os trabalhadores não eram donos de suas terras. Antigamente o povo ocupava, para ter um lugar para morar. Se fosse que nem hoje, observa Neuza, a filha de dona Ana, o povo morava já adquiria prá ficar. Construía uma casinha para ficar, era pra viver, porque se fosse hoje, o povo entrava,  loteava e agarrava para si, pois naquela época não existia documento, era uma reserva. O povo falava que era hipoteca, pois o proprietário de tudo era o Höffig (Boa Esperança, Comércio, Terras e Pecuária S/A. Coterp).

(...) Entre outras lembranças, ela ainda menciona o José Quintino falando que conheceu a mãe dele (hoje vereador e presidente da Câmara Municipal de Brasilândia). Segundo dona Ana, a mãe do Quintino passava a pé em frente da sua propriedade quando ia trabalhar. Lembra que conheceu também o avô do Quintino que era cego de um olho; ele morava aqui embaixo no varjão, eles compraram sítio lá pro lado do córrego Jardim. Eles vinham a pé, e passavam na minha casa. A minha casa era de tábua, na beira da Reta Vinte, ali encostada, eles passavam em casa para beber água e iam a pé para Brasilândia.  Ao ver a mãe contar essa história a filha Neuza observa que o nome de seu pai, um dos fundadores de Brasilândia, nunca foi lembrado por um vereador para colocar numa rua.

(...) Hoje dona Ana pode não manifestar com palavras a sua felicidade, mas seus olhos brilham de gratidão e contentamento pelo que a vida lhe proporcionou. Com voz firme e traços retos na personalidade, esboça um sorriso quando lhe falam dos rebentos que cada um de seus seis filhos que ainda vivem lhe proporcionou. Neuza, Maria Aparecida, Sebastião, Valdir, Florisvaldo e Valdecir. Ao alcance de sua mão agora se encontram o maior presente que eles lhe poderiam lhe dar: 23 netos, 32 bisnetos e um tataraneto que são sua alegria. Razões de sobra para se considerar uma mulher realizada e feliz. Parabéns dona Ana Pereira Gonçalves. Obrigado dona Ana Pereira Gonçalves.

 

Brasilândia/MS, 29de setembro de 2021,

A história e a íntegra da entrevista que dona Ana concedeu ao autor no dia 26 de setembro de 2021 se encontra no volume IV- Desenvolvimento, da coleção História e Memória de Brasilândia/MS.





Dona Ana e seu Izaías, fotografados por Abel de Oliveira, primeiro fotógrafo de Brasilândia/MS.

sábado, 25 de setembro de 2021

Dom Izidoro Kosinski: um pastoralista da terra no Céu
Carlos Alberto dos Santos Dutra








Hilário Paulus (CIMI-MS), Dom Izidoro (Bispo de Três Lagoas), Padre Lauri (Brasilândia), missionário Carlito (Cimi-Brasilândia), Dr. Jorge Ney (advogado-Cimi), Irmã Nair (CPT) em 1987 (Foto: Pe. Clístenes Natal Bósio).


O jornalista João Maria Vicente, ainda pelo HojeMS, no ano de 2008 escreveu um longo artigo contando o surgimento da pastoral social e da terra e os primeiros passos de Dom Izidoro Kosinski na Diocese de Três Lagoas.

Passados 9 anos daqueles escritos, por ocasião da morte deste Bispo Emérito de Três Lagoas, em 15 de setembro de 2017, a melhor homenagem que a ele podemos prestar é relembrar a trajetória deste servo sofredor que se dedicou à Cristo na figura do pobre e dos excluídos do ser e do ter.

Desde a sua chegada a Três Lagoas, o jovem bispo de apenas 49 anos de idade, deixou bem claro a que veio, logo voltando os olhos e os braços para a promoção social dos despojados da terra, campesinos e indígenas, barranqueiros e canavieiros, acampados e explorados do trabalho e dos direitos humanos.

Com sua chegada em 1981,  o rosto da Diocese de Três Lagoas assumiu novas feições, passando a se dedicar, a exemplo de Cristo, ao projeto de salvação dos mais pobres. Foi ele que criou a Comissão Pastoral da Terra, a CPT, órgão da CNBB, da Igreja Católica, em Três Lagoas.

Segundo o jornalista José Maria Vicente, já existia a CPT em Mato Grosso do Sul, mas, preocupado em dinamizar a pastoral na Diocese, Dom Izidoro avançou e criou aqui uma coordenação diocesana do órgão. Para tanto, convidou agentes de pastoral de outras regiões, como o Rio Grande do Sul, com Geni Fávaro e Luiz Ernesto Branbatti, o Chico Branbatti.

Com espírito de humildade e liderança, Dom Izidoro estava sempre animando a equipe de agentes de pastoral no trabalho de assistência aos ribeirinhos do rio Paraná e grupamentos de sem terra da região. Garantindo recursos oriundos da solidariedade cristã, frutos de seus contatos sobretudo de além mar. Em 1982 por ocasião da grande enchente do rio Paraná, a Diocese, através da CPT direciona seus trabalhos para defender as reivindicações dos flagelados e atingidos pela barragem de Porto Primavera, numa luta que perdurou durante 20 anos.

E lá estava Dom Izidoro, como verdadeiro pastor, motivando e assessorando a fundação de sindicatos de trabalhadores rurais na região do Bolsão. Mais alguns meses e lá o encontramos novamente buscando a colaboração do Instituto Administrativo Jesus Bom Pastor (IAJES) de Andradina-SP para fortalecer a frente de trabalho da Pastoral Social na Diocese. Acolhe então o casal João Carlos Oliveri e a assistente social Bel Prates Oliveri, logo em seguida chegando também a agente de pastoral Belkiss Kudlavicz, entre outros.

A partir de 1986, foi a vez do CIMI, a ser criado na Diocese com a coordenação localizada na Paróquia Cristo Bom Pastor de Brasilândia, tendo a frente o Padre Lauri Vital Bósio e o teólogo missionário, depois ordenado diácono, Carlos Alberto dos Santos Dutra, dedicando-se ao resgate etnohistórico da comunidade indígena Ofaié Xavante.

Na luta pelo território tradicional da comunidade Ofaié, o posicionamento profético de Dom Izidoro Kosinski em favor da defesa da vida e dos direitos à terra destes indígenas, foi decisivo para a sobrevivência e posterior reconhecimento oficial desta etnia, perseguida e massacrada ao longos dos anos e que, com o apoio da Igreja Católica, soergueu-se das cinzas.

O trabalho, tanto da Pastoral Social, CPT, CIMI. CEBI, CEBs, Direitos Humanos, entre outras pastorais durante dez anos recebeu o apoio de Dom Izidoro e de alguns padres e religiosas da Diocese de Três Lagoas, a ponto deste segmento ter sido incluído por vários anos como prioridade nos Planos Pastorais da Diocese. Isso fez com que a Diocese neste período alcançasse o reconhecimento no Estado de Mato Grosso do Sul e em âmbito nacional, pela sua atuação pastoral de vanguarda na defesa dos direitos humanos e dos povos indígenas e campesinos.

Mas como se diz: "para cada ação há uma reação", o trabalho de apoio aos deserdados da sorte, começou a incomodar os mais acomodados. Acolher sem-terra no pátio da Diocese, celebrar com os negros, visitar aldeias e pregar uma vida simples e desapegada do consumo, foi demais para uma sociedade ainda em evolução e encantada com os logros emergente do capital.

Em resposta à prática comprometida em favor dos mais pobres, levada com serenidade pelo Bispo, discípulo de São Vicente de Paulo, se inicia então uma reação conservadora contra os agentes de pastoral e contra Dom Izidoro, sendo acusado de comunista por colunistas da imprensa local e regional.

E lá encontramos o servo sofredor, agora, à semelhança do Crucificado, sendo injuriado e perseguido, agredido fisicamente e torturado por estranhos em sua própria casa, chegando quase à morte. Depois vieram as pressões internas, até do próprio clero, contra a linha de pastoral defendida por Dom Izidoro, fazendo-o, aos poucos esmorecer. Por fim, em 1992, encerrou o trabalho de todas as chamadas pastorais sociais ligadas à Diocese.

Não obstante, no curso de seus 85 anos de vida, Dom Izidoro Kosinski, pode-se dizer, tranquilamente ele cumpriu a sua missão fazendo valer o lema de sua ordenação episcopal: "Evangelizar os Pobres". Nascido no dia 1º de abril de 1932, natural da cidade de Araucária-PR, ele foi ordenado Bispo em 24 de julho de 1981 e sua posse na Diocese de Três Lagoas aconteceu no dia 9 de agosto daquele ano.

Na época de seu falecimento, em nota o Chanceler da Diocese de Três Lagoas, Diác. Roberto Rabelati informava que Dom Izidoro Kosinski conduziu a Diocese durante 27 anos e neste período deixou um importante legado de ensinamentos voltados para os mais humildes e necessitados. Pioneiro na criação do informativo Vida Diocesana que nasceu junto com a constituição da Diocese de Três Lagoas, buscou sempre manter a transparência nas tomadas de decisões da Igreja e aproximar as pessoas das ações pastorais.

Apesar dos obstáculos, Dom Izidoro sempre se manteve ao lado dos desfavorecidos e batalhou  pela garantia dos direitos dos trabalhadores e a posse da terra aos indígenas e aos campesinos. Viveu um tempo em que suas ações foram consequentes e ajudou a melhorar o mundo, tornando-o mais fraterno e solidário: estendeu as mãos aos caídos e estimulou a muitos a caminhar.

Que Deus infinitamente misericordioso receba com imenso carinho este Bom Pastor que dedicou sua vida generosamente aos irmãos e que partiu no dia 15 de setembro de 2017, terminando sua peregrinação nesse mundo e pode cruzar sereno os umbrais da esperança na glória definitiva. Dom Izidoro Kosinski, vive!









Dom Izidoro e Padre Lauri na barranca do rio Paraná junto ao acampamento dos índios Ofaié, de Brasilândia-MS, 1987










Diácono Carlito, Padre Lauri e Dom Izidoro: a Igreja completa, em 2007.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

 

O Legislativo municipal e a oportunidade de ler e escrever a própria história.

Carlos Alberto dos Santos Dutra

 


Estive na sessão da Câmara Municipal de Brasilândia no dia 20 de setembro último. Em meio às homenagens conferidas à ASSOBRAA pelo seu aniversário de fundação e à saudosa dona Perpétua Uchoa de Lima, cujo nome foi conferido a uma rua de nossa cidade, o discurso preparado por este escrevinhador cedeu lugar àquelas honrarias, mais importantes e de alto valor cívico e sentimental para os que se encontravam ali presentes.

Encontrava-me ali tão somente para agradecer pessoalmente aos nobres vereadores terem aprovado o Projeto de Lei nº 12/2021, que foi transformado na Lei nº 2.902/2021, em 14 de setembro de 2021, pelo prefeito municipal, Dr. Antônio de Pádua Thiago, que garantirá ao Poder Legislativo poder patrocinar a impressão do 2º volume da coleção História e Memória de Brasilândia, de autoria deste escrevinhador.

Há um pensamento atribuído a Voltaire, mas que na verdade pertence a Tagore que diz: um livro aberto é um cérebro que fala; fechado, é um amigo que espera; esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora. A vida de um escritor tem um pouco de cada uma dessas máximas que resumem o destino que damos às nossas obras.

Comecemos pelo livro destruído, esquecido e fechado. Mais do que chorar, perdoar ou esperar, o que se tem neste caso é uma porta que se fecha; um saber que ficou aprisionado e não teve asas para voar. Sim, porque, ao abrir um livro, mil ideias, e saberes se colocam à disposição de quem lê. Pois o mundo entra em nós pelos olhos.

Sob a ótica do leitor, através da leitura podemos fazer viagens que nunca pensamos: visitar países, conhecer costumes, e saber da diversidade do mundo que nos rodeia. E sob a ótica do escritor, mais que isso. Através dos livros, para quem escreve, um leque de possibilidades se abrem; tudo dependem do dom e do carisma de cada escritor.

Alguns têm facilidade para escrever romances de ficção, outros escrevem poesias, canções. Quanto ao estilo literário, por exemplo, eu tenho mais facilidade para escrever sobre a realidade em forma de crônicas. Habilidade que foi se aperfeiçoando a partir do momento em que o ofício de historiador passou a acompanhar meus passos. O ambiente de trabalho, o que circunda a nossa volta e as reações sociais é que nos motiva, tudo isso forma o conteúdo daquilo que se pretende escrever.

O viés social de meus escritos denuncia isso, pois desde muito cedo ele me acompanha. O ex-juíz de Brasilândia, Dr. Berlange, lá no ano de 1998, quando fez a apresentação do meu segundo livro Razão e Utopia, textos rebeldes já havia percebido isso. Assim ele escreveu:

O autor, Carlito Dutra, é uma presença forte e incômoda nesta região sul-mato-grossense que se imbrica com o noroeste paulista à orla barranqueira do rio Paraná. Permanente armado de dúvidas certeiras mantém seus sentidos conectados ao mundo. Embalado por um sonho quase juvenil, tem-se revelado mestre em medir e expor o tamanho da distância que há entre intenções e gestor, no discurso e na prática dos agentes políticos que ocupam funções institucionais de poder...

É isso que motivou este escrevinhador produzir tantos livros. E também pela riqueza de histórias e informações, fotografias e acontecimentos que foram se apresentando ao longo do caminho que fui trilhando. Em mais de 30 anos cruzando estradas por aqui, a rica realidade de Brasilândia foi como um despertar. E o pesquisador sempre atento.

É esse o espírito da obra que os senhores vereadores estão patrocinando e a razão de eu estar aqui hoje fazendo esse pronunciamento. Digo, pois, palavras de agradecimento ao parlamento brasilandense que entendeu a importância do trabalho realizado até aqui por este escritor, patrocinando sua recente obra. Trata-se na verdade do 2º volume de uma coleção de 5 volumes que se encontram em fase final de construção.

E fala da História e Memória de Brasilândia, sob o viés do Patrimônio, de nossa cidade. Desde a cultura até as instituições, talentos e êxitos locais que projetaram e ainda projetam a cidade no campo da música, da arte, da dança e do teatro. Discorre sobre as festas, prêmios, eventos e aniversários que, ao longo dos 50 anos de existência do município de Brasilândia a cidade comemorou.

É mais que uma volta ao passado. É reviver esses momentos conferindo-lhes significado e importância. É valorizar e homenagear as pessoas, e inscrevê-las na heráldica da gloria, de realizações que foram pontuadas de sentimento de vida, lutas e vitórias de um povo dócil e gentil. É esse legado que a Câmara Municipal de Brasilândia, ao garantir recursos para a publicação deste 2º volume deixa para a posteridade. Facultando à população poder ter acesso a esse conjunto de informações.

A iniciativa referendada por todos os nobres edis desta Casa de Leis, ao propor e aprovar o projeto de lei que garantiu essa façanha pioneira no campo da cultura e conhecimento literário merece toda a nossa homenagem e agradecimento. Honraria que, no mesmo grau, deve ser conferido ao prefeito municipal que sancionou a lei que possibilitou esse patrocínio. Do meu legado, Dr. Antônio de Pádua Thiago, com este gesto, se une aos ex-prefeitos Prof. José Cândido da Silva e Neuza Paulino Maia que igualmente patrocinaram obras deste pesquisador que vos fala.

Nada mais gratificante saber que sua obra mais recente estará em breve ao alcance de muitos brasilandenses por especial deferência desta Casa. Os senhores vereadores não patrocinaram simplesmente mais um livro para o acervo das bibliotecas; vossas excelências, ao oportunizar a divulgação desta obra, tornam-se também autores da própria história semeando conhecimento e cultura pelos campos e cerrados desta nossa cidade esperança. Obrigado. Muito obrigado a todos.

 

Brasilândia/MS, 20 de setembro de 2021.


Aos Vereadores Selma de Souza Alquaz Silva, Aurinéia de Almeida Halsback, Patrícia Costa Jardim, Maria Jovelina da Silva, Márcia Regina do Amaral Schio, José Quintino de Souza, Nivaldo Nunes, Joaquim Martos de Moraes e Edson Pereira Costa. 

Foto: Patrícia Acunha/PMB, 2021

Notícia: https://www.brasilandia.ms.gov.br/portal/noticias/0/3/2483/lei-autoriza-saldo-excedente-do-repasse-do-duodecimo-para-custear-impressao-de-livro


 

Dona Perpétua, as homenagens e a Câmara Municipal

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 








A pia está repleta de louça. Panelas, pratos, copos e garfos. É final de mais um almoço onde a família está reunida. Minutos antes, o chefe da casa encontrava-se na cabeceira da mesa e os filhos ao redor com os olhos fixos naquela porta, no desvão entre a cozinha e a sala de refeições. A casa simples, de madeira, transpirava um ar de nostalgia e felicidade, misturando-se ao aroma tépido que exalava do alimento prestes a ser servido.

E eis que ela surge com aqueles pratos saborosos nas mãos. Um, depois, outros, e por fim o prato principal: o sorriso daquela fada, de olhar meigo e cabisbaixo, levemente encabulada pela recepção da família que lhe saudava naquele momento. Ela era a rainha do lar. Todos comiam, todos sorriam e a felicidade morava ali, bem pertinho daqueles corações.

A espuma escorre pela borda do prato e levemente aquela mão, já com o peso da idade,  não segura com tanta firmeza a esponja enquanto lava a louça, que a cada dia fica menor. As conversas ao redor da mesa silenciam, a cabeceira da mesa se encontra vazia e os filhos, um a um vão deixando aquela casa encantada, constituem suas famílias, seguem seus rumos, deixando para trás somente a saudade.

Porém, mães fadas, rendeiras, lavadeiras, costureiras, cozinheiras, nutrizes, não lhes é permitido viver de lembranças e desaparecer. Sobretudo quando uma mãe recebe o nome de Perpétua. Vieram ao mundo para ficar. São perenes como a rocha que tudo suporta, até mesmo a ausência e a dor. E também se alegram com a chuva, o sorriso dos filhos e as homenagens.

Sim, homenagem é o que dona Perpétua (dona Peta) recebeu no dia de ontem (dia 20) na Câmara Municipal de Brasilândia. Por meio do Projeto de Lei nº 15/2021, de 20 de setembro de 2021, apresentado pela vereadora Aurineia de Almeida Halsback, a rua Projetada 04, do bairro Juvenal Serafim Uchoa, recebeu o nome de Perpétua Uchôa de Lima. Orgulho para uma das filhas do saudoso Antônio Serafim Uchôa, tronco antigo cearense que por aqui se aquerenciou no ano de 1967, família pioneira de nossa cidade.

Nascida em 6 de maio de 1937 na cidade Iguatu-CE, dona Perpétua era casada com Juvenal Uchoa de Almeida sendo que juntos tiveram doze filhos. Ainda moça, já morando em Brasilândia, trabalhou ao lado do esposo na fazenda Lajeado, de propriedade de seu Porfírio Alves de Souza mudando-se depois para a sede do município.

E lá encontramos aquela mulher de fibra e labuta, com amor incondicional aos filhos, zelando pela harmonia no lar. Olhar a sua volta e ver tudo em ordem e perfeito, já a tornava feliz. E sorria ao ver o esposo, sempre falante e carinhosamente chamado de Naná, regendo a orquestra da política local, cujo point era o portão daquela casa, seu imaginário castelo, localizado na rua Clovis Cordeiro 454.

E lá encontramos dona Perpétua as volta com a casa e os filhos, acostumando-se ver o seu lar transformar-se numa espécie de berço da democracia. Como uma grande família, ali não havia discriminação de filhos, amigos ou partidos, e todos os assuntos eram discutidos com o mesmo calor, por qualquer um que por ali resolvesse refrescar-se na sombra daquela eterna morada que viu a cidade crescer.

A homenagem prestada pela Câmara Municipal de Brasilândia à senhora Perpétua Uchôa de Lima, falecida na véspera de Natal do ano de 2012, aos 75 anos de idade, emocionou a todos e encheu de lágrimas os olhos dos familiares e amigos que se encontravam presentes naquela sessão. Em especial as filhas Francisca e Irene que levaram para casa naquela noite, mais do que o coração apertado: levavam a certeza de terem participado da mais alta homenagem que a municipalidade podia ter dado a esta pioneira e valorosa mulher brasilandense. Parabéns família Uchoa de Lima.

 

Brasilândia/MS, 21 de setembro de 2021.

Dia da Árvore.














A vereadora Neia e as filhas de dona Perpétua Francisca e Irene. (Foto: Facebook/Aurineia.halsback)

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

 A ASSOBRAA completou maioridade

Carlos Alberto dos Santos Dutra

 






Hoje é um dia especial para o meio ambiente e para comunidade local. Dia de se prestar homenagem a um grupo de valorosos pioneiros da coleta seletiva e colaboradores.


Foi no dia 20 de setembro de 2003 quando tudo começou. Época que florescia em Brasilândia uma conquista por demais exitosa no espaço urbano da convivência social com alcance ambiental e econômico exemplar.


No mesmo ano em que nasceu o Instituo Cisalpina, nascia também a Associação Brasilandense de Agentes Ambientais, a nossa querida ASSOBRAA, que fez brotar forte suas raízes a partir da luta dos despossuídos que faziam dos restos e sobras da sociedade moderna sua fonte de sobrevivência e renda.


Fruto de uma proposta audaciosa do professor Deolir Felipe Schio, popular Caco, e um grupo de visionários comprometidos com bem estar da urbe, a latente associação logo conquistou corações e mentes da sociedade, inundando as ruas com um hino que virou símbolo e passou a conclamar todos os moradores para a prática da coleta seletiva do lixo, elevada, agora, ao status de material reciclável. Um marco na cultura local.


E lá estavam os catadores de papel pelas ruas e lixão da cidade, agora organizados, sob o caminhão da ASSOBRAA, recolhendo as sobras, e semeando lições de cidadania e conservação ambiental, modo de vida saudável e sustentabilidade. Não sem divulgar em campanhas, panfletagens e eventos, a conscientização dos moradores junto à população em geral e escolas, o que conferiu à entidade a conquista de prêmios regionais e nacional em reconhecimento pelo trabalho pioneiro de empreendedorismo por ela inaugurado.


Movimento que envolveu lideranças locais, parceiros e municipalidade solidarizando-se com a iniciativa e luta dos agentes ambientais que foram conquistando vitórias. Até que um dia o 
fogo consumiu a sede da entidade e exigiu redobrado esforço para soerguer das cinzas a esperança daqueles que nada possuíam para um novo despertar.

Passados 18 anos, a ASSOBRA configura um marco no ambientalismo não governamental de Brasilândia, sendo parceira da Administração municipal, dela recebendo benefícios e incentivos. Também de empresas da região, firmando-se na prestação de  relevante serviço e bem estar a esta comunidade.


E lá estavam os pioneiros reunidos na Comissão Pró-formação que traçou as primeiras linhas do estatuto da entidade: Deolir Felipe Schio, Edson Hiroji Okamoto, Francisco Dias Neto, Jacqueline Lubaski, Marcos Eduardo Costa Brasil, Carlos Alberto dos Santos Dutra, Mário Sérgio Ferrari, Mário Nelson da Silva, Miguel Estevam da Silva e Sandro Souza Barbosa.


Ao longo da história, digno de homenagens e agradecimento cabe lembrar o poder público, desde a saudosa prefeita Marilza do Amaral que cedeu o barracão da Av. São José, primeira sede da entidade, por muitos anos, até o prefeito atual Dr. Antônio Thiago que tem se mostrado parceiro, garantindo apoio técnico e subsídios à entidade permitindo-lhe levar adiante seus ideais e compromissos.


A comunidade de Brasilândia tem muito a agradecer a estes valorosos Agentes Ambientais que hoje transformaram a sementinha de ontem num empreendimento de alta resolutividade que projeta o município no cenário do empreendedorismo regional. Agradecimento que se soma também às empresas que apostaram nessa ideia, desde a Destilaria Debrasa de ontem ao Grupo Arthur Höfig e empresa Fibria/Suzano de hoje.


Um mais um é sempre mais que dois noticiou a imprensa há 18 anos, quando da fundação da entidade.  Ideal que demonstrava, na época, o entusiasmo quase juvenil que embalou aqueles jovens motivadores de esperança e aqueles primeiros colaboradores agentes que deram brilho aos primeiros passos da entidade. Aos agentes pioneiros e os que vieram depois, até os dias atuais, recebam todos nossas homenagens e felicitações. Parabéns ASSOBRAA!

Brasilândia/MS, 20 de setembro de 2021.

 

Cf. a história completa a ASSOBRAA em História e Memória de Brasilândia/MS, volume II - Patrimônio, pág. 282 a 295.

 

 


 





Foto 1- Os pioneiros Agentes da ASSOBRAA: Sebastião, Edilaine, Marinalva, José e Deolir, Jornal da Cidade, 2008 / Colorizado por My Heritage, 2020.

Foto 2- Foto histórica da primeira Diretoria da ASSOBRAA, Jornal Independente Notícias, 2003.



sexta-feira, 17 de setembro de 2021

 

Marco Antônio: o pólen, a esperança e o adeus.

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

Todos os dias eles partem. Também os que estão próximo. Alguns, nem ficamos sabendo. E quando isso acontece, um aperto no coração nos consome.

Para os amigos e conhecidos resta o consolo e a resignação. E lembrar o que aquela pessoa representou para cada um ao longo do tempo.

No caso deste nosso irmão que ontem partiu, as lembranças, de minha parte, são poucas, mas não menos significativas, e por isso merecem ser divididas. Uma singela homenagem que presto ao amigo motivada por uma época em que nossos caminhos se cruzaram.

Num dia que já vai longe, o lote em frente a minha casa se encontrava diferente. Se antes o mato era o senhor daquele terreno, naquele dia ele se apresentava de outra forma. Havia movimentação no seu interior.

E lá estava a bulha de uma enxada, deitando o colonião e erva daninha que haviam tomado conta daquela área. Propriedade que se tornara desafio até para os agentes de endemias no combate ao mosquito da dengue poder adentrá-lo.

O portão estava entreaberto e este escrevinhador se pôs a observar do que se tratava. E lá estava ele, um homem de aparência jovem, em atitude dinâmica que roçava com vigor a vegetação, limpando expressiva parte do terreno que aos poucos se transformava.

--Que bom --, pensei. E voltei para os afazeres da minha casa.

No dia seguinte, novamente observei que o mesmo senhor, continuava sua obra de limpeza. Só que no pedaço onde havia limpado, vi ali serem fixados caibros e estacas de madeira, dando a entender que logo, naquele lugar, um barraco seria erguido.

Dito e feito. Dias depois lá estava o barraco pronto, de lona e palhas de coqueiro, tendo a sua volta, rodeado quase a totalidade do lote completamente limpo. 

--Mais um sem-teto que encontrou na caridade alheia conforto para seu exílio --, pensei.

Os dias se passaram e, depois de meses, eis que olho para aquele lote e percebo ramos verdes que quase alcançavam o muro ao seu redor. Eram pés de mandiocas, viçosos que, ao balançar do vento, agitavam suas folhas revelando beleza e frescor.

Vou até o local e encontro aquele mesmo senhor, envolvido na sua faina diária. Logo que me vê pede para eu me aproximar. Ele me conta um pouco da sua história e me mostra com brilho nos olhos e satisfação a sua modesta plantação.

Não mora no barraco, como eu havia pensado. Ali guardava enxada, rastelo, foice, carriola, e insumos para o preparo das mudas que ele mesmo plantava no lugar. Além da mandioca, cultivava também verduras, tomates, abóboras e até milho.

Aquele homem singular, percebi, era uma prova viva da resiliência. Parecia não se importar com a doença que era portador e que aos poucos lhe corroía a saúde e roubava-lhe as forças.

Certo dia, lá encontro ele, com um sorriso no rosto no portão de minha casa entregando-me um saco de mandioca produzida no terreno que cultivou.

Estava ali um exemplo de generosidade, de um ser humano alegre transbordando humanidade. Superando as dores do corpo, gerando vida e felicidade aos outros, enquanto se agarra à esperança que o persegue, graças ao auxílio dos remédios.

Nas conversas que travamos, queixava-se das dificuldades que enfrentava, pois o tratamento de qualquer doença terminal sempre é um desafio, sobretudo para os mais pobres que só contam com o apoio da família.

As forças desse guerreiro, pelo visto, aos poucos foram sumindo. Até que um dia, o terreno em frente de minha casa silenciou. 

Ruídos no portão desta propriedade se ouve, e o escrevinhador viu retirarem de lá os pertences daquele jovem por alguns de seus familiares, de certo. E tudo silenciou.

Depois disso nunca mais o vi e tampouco soube de seu destino. 

Hoje fiquei sabendo que seu nome era Marco Antônio da Silva, nascido no dia 15 de setembro de 1970, na cidade de Nova Canaã Paulista. 

Filho de dona Zulmira e seu José, popular (in memoriam), este espetacular cidadão e pessoa, um dia após completar seus 51 anos de vida, se despediu da família e dos amigos.

Para aqueles que o viram, nos últimos anos, frequentando sala de espera de postos de saúde e hospitais, por vezes implorando atendimento  e fornecimento de medicamento para aliviar suas dores, saibam o quanto de vida e esperança ele semeou por aí.

Saibam também o quanto este homem de olhar doce e um coração jovem buscou plantar no seio da família e dos amigos: um pólen de arco-íris na plantação que ao longo de seus dias cultivou e viu florir.

Descanse em paz lutador Marco Antônio sob a sombra de uma frondosa árvore, na sua nova morada: a Nova Canaã Celeste, chamada Eternidade.

 

Brasilândia/MS, 17 de setembro de 2021.


Foto: Facebook/Fernanda Manari, 16/09/2021.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

 

Que meus cabelos façam alguém sorrir.

Carlos Alberto dos Santos Dutra



A perda de cabelo para pacientes em tratamento de quimioterapia contra o câncer pode ser uma realidade. Sem dúvida, sobretudo para as mulheres, isso não deixa de ser um trauma a mais, afetando a sua autoestima.

O quadro fica ainda mais severo quando se trata de crianças e jovens, faixa etária da vida quando a aparência e o convívio social é por demais exigente e influenciado por um senso comum que, no mais das vezes, prima pelo padrão estético e beleza física das pessoas.

Para ajudar a amenizar essa situação, existem instituições que recebem doações de cabelo, que são depois encaminhadas à associações que se dedicam a confeccionar perucas e doá-las. Acima de 20 centímetros já é possível doar.

Segundo informações recolhidas na Internet, o cabelo que vai ser doado não importa se ele tem química ou é tingido. O que importa é o gesto.

Segundo a rede de salões de beleza Torriton Beauty & Hair, que é parceira de diversas entidades que recebem doações de cabelo, a orientação inicial é que se informe ao cabeleireiro que o objetivo do corte é a doação dos fios, devendo mantê-los presos com um elástico, com o cuidado para que não soltem depois de cortados.

Aqui em Brasilândia/MS, temos a Associação de Voluntários de Combate ao Câncer-AVCC que, desde 1999, portanto há 22 anos, presta abnegado trabalho de apoio aos pacientes portadores de câncer, auxiliando-os e os conduzindo ao hospital especializado e casa de repouso instalada próximo ao Hospital Amaral Carvalho, de Jaú, para tratamento.

Essa entidade, aqui na Cidade Esperança, também recolhe cabelo para a confecção de perucas. E diversas pessoas, nos últimos anos, têm feito generosas doações, o que a entidade, agradece. Doações, na maior parte das vezes, anônimas, porém, carregadas de sentimento altruísta e de benevolência.

Por se tratar de um gesto que pode ser fonte de inspiração para outras pessoas aderirem a essa corrente do bem e de colaboração, aumentando a oferta de generosidade, achei por bem tornar público essa minha doação.

E por dois motivos:

Primeiro, por se tratar de uma porção de cabelo que foi cultivado por um homem, durante dois anos e as madeixas bem que lhe causaram admiração e até beleza. 

E segundo, por ser um gesto de carinho ao próximo, que traz satisfação pessoal a quem doa. Além de mudar o visual, você dá um destino nobre de parte de você que trará alegria a alguém.

São motivos suficientes para divulgar esse gesto de desapego e generosidade. Mais do que o valor econômico que a venda do cabelo possa representar, nossa doação tem o intuito de amenizar um pouco a dor de alguém, que é nosso irmão, neste processo de tratamento. E também nos tornar felizes.

Brasilândia/MS, 16 de setembro de 2021.




A parte do cabelo doado alcançou a medida de 48 cm.


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Fazenda Annoni há 36 anos: a violência e o sonho de liberdade

Carlos Alberto dos Santos Dutra


Corria o ano de 1986 e o jovem estudante de teologia que esteve lá no calor dos acontecimentos, recorda o tempo em que sonhar era possível e empunhar bandeiras era uma realidade urgente e necessária. Escrevia o filho da PUC-RS, na época, ao combativo jornal Enfoque, de Dourados/MS, sob os auspícios da militante jornalista Damarci Olivi as linhas pretéritas que seguem, mas que ainda se apresentam muito vivas no coração da história:

A prática da violência contra o homem do campo nos dias de hoje chegou a níveis insustentáveis. Como se não bastasse às milícias particulares e as entidades (PUR, UDR, TFP), militarmente equipadas para a repressão pública, agora é a vez do aparato policial do Estado, que intensificam violentas e desenfreadas ações.

As imagens que via global foram assistidas por milhões de brasileiros, de trabalhadores rurais sendo agredidos e barbaramente espancados por soldados e suas baionetas caladas sensibilizaram e estarreceram grande parte da opinião pública.

Cenas que em muito lembraram os auges tempos da ditadura militar neste país: homens, mulheres, inclusive algumas grávidas, e crianças sendo vergonhosamente perseguidas e pisoteadas. Indignação maior ainda quando das declarações do ministro Paulo Brossard (conferindo plenos poderes às Polícias Estaduais na repressão às ocupações) e do ministro Dante de Oliveira (acusando o Partido dos Trabalhadores de inconsequente mentor daquela situação).

A Coordenadoria Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, na época, enviou telex ao ministro da Reforma Agrária e da Justiça dizendo o seguinte: Excelentíssimo Sr. Dante de Oliveira. Não fujas a responsabilidade, senhor ministro. Não minta a opinião pública informando que nada podes fazer em favor dos trabalhadores rurais sem-terra da Fazenda Annoni. O senhor está se esquecendo de que um processo de Reforma Agrária decente, verdadeiro, vai além do assentamento dos trabalhadores sem-terra, vai até a assistência técnica, recursos, insumos e infraestrutura.

Portanto, o senhor também é culpado pela agressão da polícia militar do Rio Grande do Sul contra os acampados da Fazenda Annoni. Agressão bárbara que deixou 50 feridos, três dos quais estão hospitalizados. Se o senhor não sabe, lembramos que as metas do Plano Nacional de Reforma Agrária para o Rio Grande do Sul, para 1986 prevê o assentamento de 3.800 famílias. Até agora nenhuma foi assentada. Portanto é hora de deixar a demagogia de lado e se por a trabalhar pela Reforma Agrária. São Paulo, 30 de setembro de 1986.

Outro telex foi enviado ao Dr. Paulo Brossard de Souza Pinto, ministro da Justiça, dizendo o seguinte: A Coordenadoria Nacional do MTRST responsabiliza-o de pressionar e incitar o governo do Estado do Rio Grande do Sul a ordenar a Polícia Militara agredir covardemente os Sem Terra acampados na Fazenda Annoni. Portanto, o responsabilizamos pelo ferimento em mais de 50 conterrâneos seus, três dos quais estão hospitalizado em Passo Fundo-RS devido a barbárie da agressão policial.

O telex continua: Queremos lembrá-lo que a Lei garante a qualquer cidadão o direito de ir e vir. O senhor, incrível, - como ministro da Justiça - foi o primeiro a violar esse princípio constitucional ao exigir do governo gaúcho que a Polícia cercasse o acampamento. O senhor cometeu (agiu) por presunção de que se vá cometer algum crime. O crime só é crime depois de configurado como tal. Se o senhor que tanto preza a Lei, por que não bota na cadeia a gente da sua classe, latifundiários e fazendeiros, que este ano já matou mais de 200 trabalhadores rurais em todo o país?

Por que tanta impunidade que envergonha o Brasil no exterior? O senhor ministro ignora que até o Papa já pediu o fim da violência no campo brasileiro? Por que o senhor, tão exigente quanto ao cumprimento da lei, não exige do governo um salário mínimo capaz de atender as necessidades de uma família quanto a educação, saúde, transporte, habitação, alimentação e lazer, conforme determina a Constituição brasileira?

Perguntamos por que o senhor, como ministro da Justiça, não faz cumprir a Lei n° 4.504, de 30.11.84 (Estatuto da Terra), que assegura a todos os brasileiros o acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social? Perguntamos por que o senhor, como ministro da Justiça, não aplica a Lei Delegada n° 4 contra os fazendeiros que escondem o gado?

O senhor não sabe que é dever do Estado zelar pelo abastecimento da população? Senhor Paulo Brossard, gostaríamos de dizer também que seu comportamento em relação aos sem-terra da Fazenda Annoni não nos surpreende, afinal, os acontecimentos em Leme (SP), são recentes. Sobre o Leme, o senhor mentiu culpando quem não teve culpa para acobertar o verdadeiro culpado: o Estado.

E ao mentir, ministro, o senhor cometeu crime de injúria, calúnia e difamação, imputando culpa em quem não teve culpa para esconder o culpado do bárbaro assassinato de dois inocentes trabalhadores. Estamos nos dirigindo ao senhor não para pedir uma solução aos acampados da Fazenda Annoni. Nós queremos é lhe pedir para que deixe de ser ministro das leis injustas, ministro dos fazendeiros, ministro do boi gordo, ministro do capital. Queremos, enfim, que deixe de ser ministro. Agindo assim, estarás dando a sua maior contribuição para o desenvolvimento de uma sociedade democrática em nosso país. São Paulo, 30 de setembro de 1986.

A situação dos acampados, até aquele momento (novembro de 1986), continuava tensa. A ação da polícia na área imprimia verdadeira ação militar de
guerra, com helicópteros sobrevoando em rasante no acampamento, revistas que chegam ser humilhantes aos que entravam ou saíam do acampamento, e isolamento com ostensivas barreiras.

São nacos de carne ferida e de histórias que não mais são encontradas nas páginas virtuais dos sites de agora, só possíveis de ser recuperadas nas caixas dos arquivos e da memória de outrora que os sem-terra ainda guardam dentro de si ou transmitem a seus filhos e netos, dando-lhes ânimo para continuar na luta.

Brasilândia/MS, 03 de setembro de 2021.


Publicado originalmente sob o título Annoni: a violência institucionalizada, no jornal Enfoque, Dourados/MS, 8 a 14 de novembro de 1986. Também em DUTRA, C.A.S. Razão e Utopia, textos rebeldes, Andradina/SP, LC Artes Gráficas, 1998, p. 50.
Foto: Facebook/Deputado Marcon, 29.Out.2015