Dona Ana Pereira Gonçalves e as lembranças vivas de Brasilândia
Carlos Alberto dos Santos Dutra
Quem trafega pela rodovia BR-158, ao passar pelo Bar do Rio Verde, e não se detém por alguns instantes no estabelecimento do senhor José Gomes e dona Neuza, dificilmente irá saber a joia rara da memória local que ali se esconde.
Trata-se de uma senhorinha chamada Ana Pereira Gonçalves, uma baiana vinda lá das bandas do Riacho Santana que chegou a Brasilândia quando havia somente duas casas, ela recorda muito bem deste tempo, detalhe por detalhe.
Sobre sua idade, diz que nasceu em 1923; sua certidão de casamento, ainda lavrada à mão pelo cartório de Matina-BA acusa que ela nasceu no dia 26 de julho de 1926, e sua carteira de identidade, recente, aponta 26 de julho de 1933 como o ano do seu nascimento. Divergências a parte, ainda assim, tudo lhe confere possuir idade na faixa dos 88 anos a 98 anos.
Sua história e lembranças mais vivas começam no dia do seu casamento, realizado no dia 17 de agosto de 1951, quando a noiva Ana Pereira dos Santos, com 24 anos de idade, deixou a capelinha da Lagoa dos Bois e se dirigiu ao Cartório da Vila Matina para lavrar a sua certidão de casamento.
E lá se encontrava feliz a filha do seu Francisco Antônio dos Santos e dona Maria Pereira da Silva, e a comunidade do município de Riacho de Santana, lugarejo perto de Guanambi e Lapa do Bom Jesus, ela observa.
Ao seu lado, o noivo que a escolheu, o lavrador Izaías Gonçalves da Cruz, com 25 anos de idade, nascido no dia 22 de dezembro de 1926, filho do seu Tibério Gonçalves da Cruz e dona Lionidia Maria de Jesus. Ele nascido na mesma região, cuja família era oriunda da antiga fazenda Casca que deu origem ao lugar.
Dona Ana lembra muito bem quando iniciou o namoro que nem existiu. Eu conheci ele. Ele veio para São Paulo, e eu nem pensava em casar. E quando vi, casei. Ele tinha casamento marcado em São Paulo e foi na Bahia buscar a família para o casamento. E não voltou. Chegou lá onde eu morava, se interessou de mim, e largou a coitada lá, sem casar e casou comigo. A minha ‘sorte’ era de ser dele. O que eu ia fazer? Eu tinha de casar. Ele achou que eu era melhor do que a outra, sorri.
Parecia predestinação. Ela recorda que um dia, aquele que viria e ser seu sogro, durante uma reunião de novena, falou para sua mãe: --Hei! Maria. Era para eu casar com você, mas eu não casei. Mas a sua filha vai casar com o meu Izaías. Seu Tibério, na época bebia e ficava bêbado, mas bêbado mesmo. E minha mãe, diz dona Ana, deu de ombros, nem ligou para o que ele disse. Anos mais tarde, assim tudo se sucedeu.
Depois de casados o casal veio da Bahia para o estado de São Paulo. Em plenos anos cinquenta, estabeleceram-se inicialmente em Sorocaba, que dona Ana chama de Sorocabana. Depois se mudaram para Araraquara, e, por fim, já nos anos sessenta chegaram a Brasilândia. Recorda que aqui não existia nada. Só tinha um cerradão, não tinha casa, só cerradão, de um lado e do outro, só tinha guabiroba, sorri.
Filha de uma educação muito severa, recorda que seu pai não permitiu que ela estudasse: o meu pai me trazia numa prisão; eu não saia. Ele era um velho que não deixava eu ir à escola, nem leitura meu pai deixou que eu tivesse. Ele dizia que ‘mulher não precisa de leitura’, dizia que ‘leitura é um par de éguas’ . Minha mãe até que tentou: ---Home, põe a menina na escola, dizia, pelo menos para assinar o nome. --Que nada, mulher, leitura de mulher ‘é que num par de éguas’, amanhã depois está escrevendo carta pra namorado...
E continua: Não me ponhô na escola, nem para assinar o nome eu sei. Minha assinatura é o dedo, tudo que eu faço tem que ser o dedo. Vou dizer para o senhor: não tenho orgulho da pessoa ser rica, não tenho orgulho da pessoa ser bonita, ou outra coisa. Eu só tenho inveja da escrita, que os outros leem as coisas e eu não sei; isso eu tenho. Meu pai não deixou. Casei, fiquei arrumando filho; nem filho, nem marido me ensinou: fiquei burra! Engana-se aquela sábia.
Dona Ana teve nove filhos. Também criou outros três. Se lá na Bahia ajudava a família no plantio do algodão e a criação de gado no sitio que a família possuía, quando chegou à Sorocabana e Araraquara, a lida na roça permaneceu a mesma, dedicando-se quase que exclusivamente trabalhando em roças de algodão e também no plantio da hortelã.
No começo eu até que ajudei mais, mas depois eu comecei a ganhar criança, e ai ele (meu marido) não deixou eu ir prá roça trabalhar, tinha que ficar em casa cuidando das crianças. --Não mulher, você vai ficar em casa, não precisa ir trabaiá. Aí ele trabalhava auxiliado por um cunhado e outros meninos que nós criava e que já eram maiores.
Em terras brasilandenses depois de residirem muito anos na cabeceira da ponte do Rio Verde, a família do seu Izaías e dona Ana residiu na região da Cabeceira Perdida onde compraram um sitio lá. Também adquiriu outros dois sítios próximos ao córrego Beleza, um no fundo e outro na sua cabeceira. Quando morava aqui no Rio Verde, dona Ana recorda da escolinha que ali existia. A escola não era aqui (próximo ao bar do Rio Verde), no começo era lá em cima. Era uma escolinha de barro, de barrote, quem a construiu foi o finado Doca (Otacílio Ribeiro).
Esta escolinha era alguns metros acima para onde ela depois foi transferida, já de alvenaria. Era de barrote e coberta de folha de coqueiro. O compadre Doca que fez para os filhos dos empregados, pois ele tocava muita roça ali e ele fez a escolinha para os alunos dos trabalhadores dele. Tinha uns morares ali e as crianças vinham estudar ali. A área, parece, era de um espanhol, de nome Antônio Daio.
Depois que o Patrocínio veio, ele fez aquela escola, que passou a funcionar após a desativação da antiga escola próxima ao sitio da Toca da Raposa, que fora construída pelo seu Doca. Foi o prefeito Patrocínio de Souza Marinho que construiu durante a sua gestão, em 1967. Vinte anos depois esta escolinha foi desativada, quando os alunos passaram a ser levados para a sede do município de Brasilândia. Dona Ana recorda que a primeira professora dali tinha o nome de Cida, observa.
Sobre a escola da Cabeceira Perdida ela recorda que o prédio de madeira foi construído no terreno do Jeremias, era ali que os meninos da Perdida estudavam. Depois, com o tempo, acabo, passaram ir para Brasilândia. Dava uma volta lá, ia ate o Cafezinho e de lá iam para Brasilândia. A minha filha Neuza foi uma delas que estudou em Brasilândia, e começou a estudar na Cabeceira Perdida. Ela era pequena ainda, tinha a idade de uns seis ou sete anos e estudou ali até a segunda série. A escola era mais prá frente onde morava a família do Zé Rodrigues. Depois acabo.
(...) Os olhos de dona Ana, sempre muito vivos, parecem estar lendo um livro e as lembranças lhe tomam de assalto. Aqui em Brasilândia não tinha nada só duas casas, um mercado, e uma farmacinha, era o que tinha, depois foi aumentando. Neste mundo rural, a solidariedade era o principal ingrediente para nutrir amizades. Eu cuidei do filho da dona Joana (mãe do José Cândido). A comadre Luzia lavava a roupa para dona Joana e eles vinham sempre na vereda aqui, e as crianças ficavam brincando com meus filhos: o Zé Cândido, os dois meus, e a Áurea, todos ficavam brincando, também com as crianças da minha vizinha. Eles sempre vinham aqui no Beleza do Rio Verde. Nesta época eu era dona daquela Toca da Raposa, lá era meu, eu morava lá, eram 20 alqueires.
Segundo dona Ana, a explicação para terem colocado o nome do sitio de Toca da Raposa era porque o lugar possuía muitas raposas ali. Quando entramos no sitio, onde é a Toca (Novo Porto João André) agora, ali não tinha nada de toca, o homem que era dono do sitio trabalhava no banco (Financial), o nome dele era Pedro, o primeiro gerente. Meu marido comprou aquela parte depois vendeu para o tal de Leonel, que, depois, colocou o nome de Toca da Raposa.
Sobre seu Izaías, seu esposo, dona Ana lembra que ele morreu novo. A filha Neuza tinha pouco mais de cinco anos. A mãe ficou viúva nova. E não tornou a casar. Seu Izaías morreu depois de tentar apagar um fogo que alguém colocou no pasto. Ele e os demais companheiros foram apagar o fogo e, conseguiram diminuir a chamas e por fim debelar o incêndio.
--Só que os outros não beberam água depois, ela conta. O pai tomou água após apagar o fogo, e não pode. Ele chegou na casa do funcionário e bebeu água. Aí ‘estuporou’, deu derrame cerebral. Não pode beber água com o corpo quente. Ele bebeu numa moringa, aquelas moringas de barro, água fresca. O finado Zé Dias ainda reclamou. Mas ele insistiu: --Não seu Zé, não tem nada, eu molhei os pulsos, justificou. Posso beber sim. Molhou os dois pulsos e bebeu a água. Aí ‘estuporou’ tudo.
Ele chegou em casa já se enrolando (a fala) e passando mal. A filha Neuza conta que passaram limão e sal nas mãos dele, mas ele não melhorou. Ele ainda dirigiu até onde estava o motorista dele na Tora Queimada. --Você não pode dirigir home, retrucaram. O Orlando (vendedor de doce) foi quem socorreu. Zeferino pegou o carro e levou até o porto, passaram de bote e chegaram a Panorama. De lá seguiram de trem para Dracena, depois Ribeirão Preto. Mas não conseguiu salvar. Ele faleceu no dia 13 de setembro de 1969. Nem o corpo do meu pai depois da morte veio para cá, lamenta a filha, hoje, passados cinquenta anos do ocorrido.
Entre as obras que seu Izaías deixou marcadas na história de Brasilândia está ter ajudado a construir o Cruzeiro, marco da fundação do município de Brasilândia. Ajudou também a edificar o cemitério local, vendo ali ser enterrado o primeiro brasilandense, o irmão de um compadre seu que ajudou também a construir o cemitério. O cemitério era feito de madeira, com um cercado de pau a pique. Era no mesmo lugar em que atualmente se encontra, somente mais pequenino, depois foi aumentando.
Naquela época (antes de 1965) não tinha prefeito dentro de Brasilândia, quem fazia as coisas eram os outros, os moradores, uns ajudando os outros, os moradores que tinham aqui, todos davam uma mão para fazer as coisas. Então meu marido, foi levantar o Cruzeiro, ele e o Bastião Constantino, o finado Zé Dias, entre outros. Quanto às missas, dona Ana recorda que elas aconteciam esporadicamente. Quando tinha missa acontecia no Grupo (Grupo Escolar Artur Höffig), ali eram realizadas. O padre que vinha aí não lembra o nome.
(...) Os olhos de dona Ana, agora se iluminam ao rever o quadro do retrato de casal, fotografia tirada pelo primeiro fotógrafo de Brasilândia, seu Abel Oliveira. Ao mencionar o fotógrafo recorda dos binoclinhos que ele vendia com as fotografias que tirava das pessoas. Instrumentos que aos poucos ela foi perdendo, pois um filho ou neto queria ver e aos poucos foram se perdendo.
A tarde declina e as lembranças ainda permanecem muito vivas. Recorda
dos vizinhos que viviam a sua volta. Parece ouvir novamente as risadas e as
brincadeiras das crianças. Lembra do vizinho Zé Leite e sua família, quando os filhos daquele alagoano brincavam
com os seus e dona Ana havia sido
madrinha de uma menina filha do casal (...).
As lembranças de dona Ana apresentam-se como um GPS que aponta o rumo certo para cada momento da história, focando sempre esses tempos primeiros, e os reflexos sociais da ocupação do espaço físico, quando Brasilândia ainda buscava sua emancipação (...). Naquela época, ficava muito claro que os trabalhadores não eram donos de suas terras. Antigamente o povo ocupava, para ter um lugar para morar. Se fosse que nem hoje, observa Neuza, a filha de dona Ana, o povo morava já adquiria prá ficar. Construía uma casinha para ficar, era pra viver, porque se fosse hoje, o povo entrava, loteava e agarrava para si, pois naquela época não existia documento, era uma reserva. O povo falava que era hipoteca, pois o proprietário de tudo era o Höffig (Boa Esperança, Comércio, Terras e Pecuária S/A. Coterp).
(...) Entre outras lembranças, ela ainda menciona o José Quintino falando que conheceu a mãe dele (hoje vereador e presidente da Câmara Municipal de Brasilândia). Segundo dona Ana, a mãe do Quintino passava a pé em frente da sua propriedade quando ia trabalhar. Lembra que conheceu também o avô do Quintino que era cego de um olho; ele morava aqui embaixo no varjão, eles compraram sítio lá pro lado do córrego Jardim. Eles vinham a pé, e passavam na minha casa. A minha casa era de tábua, na beira da Reta Vinte, ali encostada, eles passavam em casa para beber água e iam a pé para Brasilândia. Ao ver a mãe contar essa história a filha Neuza observa que o nome de seu pai, um dos fundadores de Brasilândia, nunca foi lembrado por um vereador para colocar numa rua.
(...) Hoje dona Ana pode não manifestar com palavras a sua felicidade, mas seus olhos brilham de gratidão e contentamento pelo que a vida lhe proporcionou. Com voz firme e traços retos na personalidade, esboça um sorriso quando lhe falam dos rebentos que cada um de seus seis filhos que ainda vivem lhe proporcionou. Neuza, Maria Aparecida, Sebastião, Valdir, Florisvaldo e Valdecir. Ao alcance de sua mão agora se encontram o maior presente que eles lhe poderiam lhe dar: 23 netos, 32 bisnetos e um tataraneto que são sua alegria. Razões de sobra para se considerar uma mulher realizada e feliz. Parabéns dona Ana Pereira Gonçalves. Obrigado dona Ana Pereira Gonçalves.
Brasilândia/MS, 29de setembro de 2021,
A história e a íntegra da entrevista que dona Ana concedeu ao autor no dia 26 de setembro de 2021 se encontra no volume IV- Desenvolvimento, da coleção História e Memória de Brasilândia/MS.
Dona Ana e seu Izaías, fotografados por Abel de Oliveira, primeiro fotógrafo de Brasilândia/MS.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirParabéns, amigo. Pelo importante trabalho prestado à comunidade de Brasilândia/MS.
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