sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

 Em defesa de uma língua chamada Ofayé

Carlos Alberto dos Santos Dutra



Há alguns anos, a então secretária municipal de Educação de Brasilândia/MS, Profª Floriana Débora de Souza Ladeia alimentou um sonho e ousou dividi-lo com quem estava a sua volta. Ela gostaria de ver impressa nas placas de ruas, monumentos e prédios públicos palavras indicativas na língua nativa do município. Nada mais justo por se tratar de uma língua única no mundo, e que pertence aos primeiros habitantes desta região.

Chegou-se até a elaborar uma lista de vocábulos para um incipiente dicionário toponímico que serviria de parâmetro para a indicação dos logradouros onde figurariam o nome em Português e em Ofayé, afixado também em placas na entrada da cidade, em pontes indicando nome dos rios, matas, etc.

O sonho, entretanto, teve de ser adiado. A cultura, geralmente, a exemplo do restante do país, nunca dá maiores espaços para o saber popular. No mais das vezes não a vê como prioridade nas administrações públicas. O exemplo do Fundo de Investimentos Culturais-FIC (Lei 2084/05), em nível local, que se encontra engessado desde que foi parido, pode ser citado como exemplo disso.

Durante um encontro da Comissão Nacional da Verdade, realizado em 2014 na cidade de Dourados, que contou com a participação de etnias de todo o Estado, o evento inovou, sendo todo ele realizado na língua mãe dos povos participantes, com tradução simultânea e tudo. Os Ofaié deram seu testemunho lá.

Essa preocupação com a valorização da língua nativa dos povos originários em nível institucional por parte de prefeituras, entretanto, começou a ter visibilidade alguns anos antes. Foi quando começaram a surgir projetos de lei tornando cooficial a língua nativa falada pelos povos indígenas nos municípios onde habitavam e mantinham suas aldeias.

Em 2002, no estado do Amazonas, o município de São Gabriel da Cachoeira tornou-se o primeiro município brasileiro a cooficializar três línguas indígenas faladas no estado (tukano, baniwa e nheengatu). Iniciativa que foi, depois, levada adiante por outros povos que buscaram, através de lei específica, legalizar e legitimar suas línguas garantindo, assim, aspecto essencial na construção de suas histórias.

Sem dúvida, esta reivindicação de usar suas próprias línguas em contextos oficiais e públicos reafirma e confere valor linguístico perante o Estado alcançando novo padrão de relação política, no qual os grupos étnicos passam a ter o protagonismo e reconhecimento de sua autonomia.

Recentemente, em dezembro de 2019, o deputado Sul-mato-grossense Dagoberto Nogueira apresentou o Projeto de Lei nº 3074-A, onde propunha a cooficialização das línguas indígenas de todos os municípios brasileiros que possuem comunidades indígenas, como uma forma de dar visibilidade e, consequentemente, a garantia de direitos aos seus falantes.

O projeto obteve aprovação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, oportunidade em que reafirmou: A diversidade linguística e cultural é uma riqueza que precisa ser mais bem conhecida, documentada e preservada. Perder uma língua implica perder os conhecimentos incorporados àquela língua, inclusive conhecimentos culturais, ecológicos, elementos sobre a pré-história humana, informações sobre as estruturas e funções das línguas de modo geral.

Enquanto o Projeto de Lei aguarda o parecer, agora da Comissão da Cultura, onde até a presente data sequer obteve a indicação de relator, o povo Ofaié de Brasilândia alimenta seu pequeno sonho de ver sua língua presente no frontispício dos prédios e logradouros públicos. Hoje sabemos que o idioma Ofayé se encontra em risco de extinção, o que configura uma perda irreparável e que a história há de cobrar a todos nós.

Há quem possa dizer: --Mas o povo Ofaié possui apenas seis ou sete falantes da língua materna. Considere-se, entretanto, o significado que o reconhecimento da língua de um povo pode representar para a autoestima e respeito a uma comunidade duramente espoliada ao longo dos anos.

Recordemos o quanto de vergonha e humilhação os antepassados desses falantes, chamados Xavantes passaram ao longo dos anos. Recordemos as primeiras linhas escritas da história nestas terras, desde a Brazil Land Cattle and Packing Company, quando eles, ainda em número próximo de um milhar, circulavam livres por aqui. Recordemos a admoestação que eles eram obrigados a ouvir durante anos: --Fale língua de gente, bugre!

Os anos passaram e a condição imposta perdurou para todo o sempre. A ponto de até hoje os Ofaié dificilmente erguerem os olhos para seus interlocutores. O que nos fazia entender: Quanto mais baixo o olhar, maior sinal de pureza na sua linhagem. Quanto mais erguiam a cabeça, maior sinal de aculturação. Hipocrisia nossa colonial!

Sim. Muitos habitantes da aldeia Anodhi Ofaié ainda hoje falam esta língua do tronco Macro-Jê, o Ofayé. Muitas vezes, só não o fazem em público por vergonha e temor ao preconceito. Desta forma, com a interiorização desta proposta levada adiante pelo município, há uma esperança no ar. Ao verem sua língua estampada nos locais públicos, tal iniciativa poderá ter um efeito simbólico dando-lhes a oportunidade de poder valorizar e recuperar o orgulho de sua língua materna.

A escola de ensino bilíngue Ofaié E-Iniecheki, existente na aldeia Anodhi, neste caso, assume papel preponderante na recuperação e preservação da língua materna falada no interior da aldeia. Da mesma forma, as demais escolas localizadas na sede do município onde mais de uma dezena de indígenas Ofaié estuda: que elas também possam motivar indígenas e não indígenas a aprender usar a língua Ofayé no dia a dia.

Sem dúvida, trata-se de uma riqueza para o patrimônio cultural de nossa cidade. Iniciativa que pode brotar de mãos dadas da comunidade Ofaié com os poderes Legislativo e Executivo. Basta haver consciência daqueles dispostos a deitar o ouvido sobre o coração da terra-indígena que ainda pulsa...

 

Brasilândia/MS, 26 de fevereiro de 2021.

 

Fonte: Cf. Línguas indígenas ganham reconhecimento oficial de municípios. Vitor Abdala, Agência Brasil-RJ, 11.12.2014 e FERREIRA, R.V. Palavras Ofaié: um resgate da memória lexical, Campo Grande: Editora UFMS, 2017.

Quanto a Grafia: Ofaié (quando de se refere ao povo); Ofayé (quando se refere à língua).

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Pela Aprovação! A esperança tem voz.

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

Participei presencialmente dos momentos iniciais da primeira sessão da Câmara Municipal deste ano. Desde 2009, após concluir meu primeiro mandato junto a essa Casa de Leis, não havia participado de sessões ordinárias. Outrora magoado por não ter sido reeleito e consequentemente esquecido como cidadão e profissional do direito pelos demais edis que se seguiram, hoje, fiz valer o velho ditado: aguas passadas não movem moinho. E, atendendo o convite de uma amiga, cá estão eu.

Pela valorosa rádio FM Cidade, no dia seguinte, não sem curiosidade, pude apreciar com acurada atenção o desenrolar dos acontecimentos que se sucederam após ter-me retirado do recinto antes do final da sessão. E, assim, pude observar a desenvoltura de cada vereador que compõe a nova Casa de Leis de nossa cidade.

Ouvir o Hino de Brasilândia que se seguiu após o Hino Nacional Brasileiro, sempre causa um encantamento a este escrevinhador que teve a honra de compor cada um de seus versos traduzindo todo o amor e respeito que dedicamos a esta cidade através dos anos.

De ato contínuo, as palavras do poder eclesiástico proferidas, de alcance dialético, deixaram bem claro os dois papéis que os legisladores e autoridades públicas eleitas devem primar em seus mandatos e legislaturas: a sabedoria, inspiração divina que dota a todos de dons e virtudes para servir o bem comum, o que foi diligentemente observado e exortado pelo pastor Valmir...

E a responsabilidade, lembrada pelo padre Fábio, que alertou para o dever destas mesmas autoridades de debruçar o seu olhar sobre os mais pobres, e aqueles cujas vozes não são ouvidas. E, num momento muito oportuno, deu destaque para o alto índice de violência praticada neste Estado contra a mulher, e cuja luta o Legislativo pode também contribuir para dissipar essa ferida social que envergonha a todos.

A sessão seguiu o seu curso, cuja liturgia do cargo já é conhecida de todos. Após as palavras do chefe do Executivo, Dr. Antônio, que exaltou a necessidade de cultivar a harmonia entre os poderes, houve a aprovação da ata e a leitura de dois projetos de leis do Executivo, um projeto de resolução e onze requerimentos da parte do Legislativo. Após, seguiu-se as indicações verbais, e o grande expediente, momento esperado por todos, depois da longa exposição de motivos das proposições presentadas.

Da parte dos novatos coube a vereadora Márcia fazer a frente no uso da palavra na tribuna. A exceção do vereador Nivaldo que, na condição de 1º secretário, leu todos os documentos apresentados, e do presidente Quintino que presidiu a sessão, os demais neófitos declinaram da honra. Na próxima sessão com certeza estarão lá ocupando a tribuna também nas explicações pessoas, onde cada vereador pode ser menos formal e manifestar-se livremente.

Quanto ao mérito, foi uma sessão com grandes avanços, tanto em termos de projetos apresentados pelo Executivo como pelos requerimentos do Legislativo, entre eles o pertinente ao reajuste do IPTU que foi questionado pela maioria dos edis, solicitando ao Executivo que reveja o assunto.

Em síntese, o que vimos foram novos rostos, novo plenário, novos sonhos que nascem e renascem. A Casa cheia – nem tanto -, por causa da pandemia e o distanciamento social, mesmo assim, alegrou o presidente Quintino. Novo horário, novos tempos de esperança que abraçam novas e antigas causas, lutas e horizontes para os rumos de nossa cidade.

Um legislativo forte não se faz com vereadores surdos mudos, pois eles veem, olham e enxergam, sobretudo olhares jovens e que adentram o recinto por vez primeira, ainda que receosos. Mais que isso: eles ouvem e falam, dialogam, propõem e se posicionam, defendem seus pontos de vista. Debatem com a sociedade e nada fazem escondido neste tempo de transparência e de liberdade de expressão pelas redes sociais.

Foi essa a sensação ao ouvir a voz dos vereadores que se manifestaram, mesmo de suas mesas, apresentando seus pedidos. E lá estavam as vereadoras Patrícia, Selma, Jô, Márcia, Néia, e os vereadores Quintino, Nivaldo, Quincas, Edinho dizendo a que vieram e por que foram eleitos. 

Assim como os presentes puderam ver todos eles encaminhando suas proposições, reclamos da população, e que foram apresentadas ao Executivo, e órgãos estaduais e federais e empresas privadas; todos eles de suma importância e de interesse para os munícipes de Brasilândia. O que merece o aplauso de toda a municipalidade.

Sobre esta noite memorável carece ser dito ainda mais uma palavra de louvor e homenagem, sobretudo, às três novas vereadoras mulheres eleitas que se somam às outras duas reeleitas. Perdoem-me os vereadores homens, mas nesta noite, e no decorrer de quatro anos, vocês serão minoria: a voz e o brilho na tribuna (1) deverá ser delas, as colegas protagonistas do futuro legislativo desta Casa.

A live do Facebook que transmitiu a sessão ao vivo e a Rádio que reproduziu o áudio no dia seguinte, através do esmero do empresário Marcos Brasil, cumpriram sua missão. Aos vereadores cabe, agora, também eles cumprir o seu papel para com a sociedade. Que os vereadores, portanto, saibam honrar a confiança neles depositada e a admiração que despertam pelas palavras, pela conduta e o exemplo. E caminhar ao encontro, no sentido de somar (e não de encontro, no sentido de afrontar) à voz do povo, buscando tornar realidade aquilo que Brasilândia decidir - pela aprovação! - como o melhor para ela.

Brasilândia-MS, 03 de fevereiro de 2021.


(1) DUTRA, C.A.S. O brilho na Tribuna, Produção legislativa do vereador Carlito, 2005 a 2008, Brasilândia/MS, Edição do Autor, 2011,566 p. disponível em O Brilho na Tribuna, por Carlos Alberto dos Santos Dutra - Clube de Autores

Foto: Mesa Diretora da Câmara Municipal de Brasilândia: Vereador Nivaldo, 1º secretário; vereador Quintino, presidente; vereadora Néia, vice-presidente. Estando presente o chefe do Executivo, Dr. Antônio compondo a mesa da 1ª Sessão. Site da Câmara Municipal de Brasilândia-MS, http://www.cmbras.ms.gov.br.