Em defesa de uma língua chamada Ofayé
Carlos Alberto dos Santos Dutra
Chegou-se até a elaborar uma lista de vocábulos para um incipiente dicionário toponímico que serviria de parâmetro para a indicação dos logradouros onde figurariam o nome em Português e em Ofayé, afixado também em placas na entrada da cidade, em pontes indicando nome dos rios, matas, etc.
O sonho, entretanto, teve de ser adiado. A cultura, geralmente, a exemplo do restante do país, nunca dá maiores espaços para o saber popular. No mais das vezes não a vê como prioridade nas administrações públicas. O exemplo do Fundo de Investimentos Culturais-FIC (Lei 2084/05), em nível local, que se encontra engessado desde que foi parido, pode ser citado como exemplo disso.
Durante um encontro da Comissão Nacional da Verdade, realizado em 2014 na cidade de Dourados, que contou com a participação de etnias de todo o Estado, o evento inovou, sendo todo ele realizado na língua mãe dos povos participantes, com tradução simultânea e tudo. Os Ofaié deram seu testemunho lá.
Essa preocupação com a valorização da língua nativa dos povos originários em nível institucional por parte de prefeituras, entretanto, começou a ter visibilidade alguns anos antes. Foi quando começaram a surgir projetos de lei tornando cooficial a língua nativa falada pelos povos indígenas nos municípios onde habitavam e mantinham suas aldeias.
Em 2002, no estado do Amazonas, o município de São Gabriel da Cachoeira tornou-se o primeiro município brasileiro a cooficializar três línguas indígenas faladas no estado (tukano, baniwa e nheengatu). Iniciativa que foi, depois, levada adiante por outros povos que buscaram, através de lei específica, legalizar e legitimar suas línguas garantindo, assim, aspecto essencial na construção de suas histórias.
Sem dúvida, esta reivindicação de usar suas próprias línguas em contextos oficiais e públicos reafirma e confere valor linguístico perante o Estado alcançando novo padrão de relação política, no qual os grupos étnicos passam a ter o protagonismo e reconhecimento de sua autonomia.
Recentemente, em dezembro de 2019, o deputado Sul-mato-grossense Dagoberto Nogueira apresentou o Projeto de Lei nº 3074-A, onde propunha a cooficialização das línguas indígenas de todos os municípios brasileiros que possuem comunidades indígenas, como uma forma de dar visibilidade e, consequentemente, a garantia de direitos aos seus falantes.
O projeto obteve aprovação da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, oportunidade em que reafirmou: A diversidade linguística e cultural é uma riqueza que precisa ser mais bem conhecida, documentada e preservada. Perder uma língua implica perder os conhecimentos incorporados àquela língua, inclusive conhecimentos culturais, ecológicos, elementos sobre a pré-história humana, informações sobre as estruturas e funções das línguas de modo geral.
Enquanto o Projeto de Lei aguarda o parecer, agora da Comissão da Cultura, onde até a presente data sequer obteve a indicação de relator, o povo Ofaié de Brasilândia alimenta seu pequeno sonho de ver sua língua presente no frontispício dos prédios e logradouros públicos. Hoje sabemos que o idioma Ofayé se encontra em risco de extinção, o que configura uma perda irreparável e que a história há de cobrar a todos nós.
Há quem possa dizer: --Mas o povo Ofaié possui apenas seis ou sete falantes da língua materna. Considere-se, entretanto, o significado que o reconhecimento da língua de um povo pode representar para a autoestima e respeito a uma comunidade duramente espoliada ao longo dos anos.
Recordemos o quanto de vergonha e humilhação os antepassados desses falantes, chamados Xavantes passaram ao longo dos anos. Recordemos as primeiras linhas escritas da história nestas terras, desde a Brazil Land Cattle and Packing Company, quando eles, ainda em número próximo de um milhar, circulavam livres por aqui. Recordemos a admoestação que eles eram obrigados a ouvir durante anos: --Fale língua de gente, bugre!
Os anos passaram e a condição imposta perdurou para todo o sempre. A ponto de até hoje os Ofaié dificilmente erguerem os olhos para seus interlocutores. O que nos fazia entender: Quanto mais baixo o olhar, maior sinal de pureza na sua linhagem. Quanto mais erguiam a cabeça, maior sinal de aculturação. Hipocrisia nossa colonial!
Sim. Muitos habitantes da aldeia Anodhi Ofaié ainda hoje falam esta língua do tronco Macro-Jê, o Ofayé. Muitas vezes, só não o fazem em público por vergonha e temor ao preconceito. Desta forma, com a interiorização desta proposta levada adiante pelo município, há uma esperança no ar. Ao verem sua língua estampada nos locais públicos, tal iniciativa poderá ter um efeito simbólico dando-lhes a oportunidade de poder valorizar e recuperar o orgulho de sua língua materna.
A escola de ensino bilíngue Ofaié E-Iniecheki, existente na aldeia Anodhi, neste caso, assume papel preponderante na recuperação e preservação da língua materna falada no interior da aldeia. Da mesma forma, as demais escolas localizadas na sede do município onde mais de uma dezena de indígenas Ofaié estuda: que elas também possam motivar indígenas e não indígenas a aprender usar a língua Ofayé no dia a dia.
Sem dúvida, trata-se de uma riqueza para o patrimônio cultural de nossa cidade. Iniciativa que pode brotar de mãos dadas da comunidade Ofaié com os poderes Legislativo e Executivo. Basta haver consciência daqueles dispostos a deitar o ouvido sobre o coração da terra-indígena que ainda pulsa...
Brasilândia/MS, 26 de fevereiro de 2021.
Fonte: Cf. Línguas indígenas ganham reconhecimento oficial de municípios. Vitor Abdala, Agência Brasil-RJ, 11.12.2014 e FERREIRA, R.V. Palavras Ofaié: um resgate da memória lexical, Campo Grande: Editora UFMS, 2017.
Quanto a Grafia: Ofaié (quando de se refere ao povo); Ofayé (quando se refere à língua).
Seria maravilhoso que as lindas nativas sobrevissem... mesmo que em registros frios... É demais de triste ver suas desaparicôes.
ResponderExcluirSim, Estela Márcia. E o mais grave é ver um poder público que pouco olha para este elemento da cultura não-material que se dilui aos poucos fugindo do alcance de uma academia que impotente assiste a sucumbência de relíquias linguísticas incomensuráveis. Mas persistir é preciso.
ResponderExcluir