sexta-feira, 27 de abril de 2018

Carta Aberta aos Cacequienses


Homenagem a dona Laura.

Estas linhas escrevo, na noite em que minha mãe, dona Laura dos Santos Dutra é homenageada. Noite de festa, noite de alegria, noite de agradecimento.
Peço as mais sinceras desculpas por não estar presente a um evento tão importante e carregado de significado para todos nós, em especial aos familiares e amigos da patronesse desta 9ª edição da Feira do Livro de Cacequi, a escritora Laura dos Santos Dutra, numa festa que já se tornou tradição cultural para o povo de Cacequi, e que para seus idealizadores e promotores é motivo de orgulho e satisfação.
Quero inicialmente parabenizar a administração municipal de Cacequi, na pessoa da secretária de Educação, senhora Patrícia Vargas, que, mais próxima de nós, coube a ela abrir as portas desta feira anual para nossa família. Num gesto de largueza de horizontes, tal qual a planura da pampa gaúcha, troteando, despacito pela trilha dos valores literários, soube ela garimpar pelas margens dos rios, essa pedra mais preciosa: a escritora dona Laura, e trazê-la para mais perto da luz...
Parabéns ao prefeito Francisco Matias, ao vereador Alex Wancura, aos servidores municipais, lideranças comunitárias, civis, militares e religiosas. Parabéns talentos artísticos e literários expositores desta terra amada chamada Cacequi.
Pois bem. Agora são as palavras de dona Laura que hoje saltam do papel para nossas vidas, quando, depois de oito filhos criados, e uma vida de realizações, dedicou-se a escrever e dar asas a imaginação àquela menina que viu seus sonhos crescer e florir ao longo da linha do trem.
Ah, dona Laura, são tantas e tantas histórias que só tu sabes contar: histórias de vida, sorrisos e lágrimas, sucessos e fracassos... Mas preferiste deitar a pena sobre o campo da ficção, com pitadas de realidade. E olha que seus manuscritos todos foram redigidos a lápis.
História de um amor comum, seu primeiro livro. --De comum não tem nada!, escreveu a amiga Claudete Franckini, lá de Pelotas, dizendo que ali tinha, sim, uma vida extraordinária, a vida de uma vencedora. De fato, Laura escreve com o coração. Cheia de sonhos e de vida cativou lá no infinito, o direito de ser mãe, e dentre as mães, a mais bonita.
Moça de todo alegria amadureceu por amor, carregando no ventre sonhos: oito filhos queridos. Sementes de todo singelas e a todos, sem reservas, com seu canto e seu encanto acalentou. Conheceu o mundo através dos livros e os repartiu entre os seus. Nunca cansou de iluminar vidas, rasgando o céu de estrelas, de palavras, idéias e valores. Sua letra e sua garra, desmedida e atrevida, pelas ruas de Cacequi e uma legião de amigas, é um sopro que arrebata nossa alma. No gesto do corpo, transmite contextos para além da imaginação. Mãos de fada zelosa, toda prosa, nos brinda com essa história cheia de significados, lembranças e ficção, e nos surpreende nos recônditos da emoção.
Oito anos após, surge Os estranhos amores de Lili, onde ela se permitiu aventurar-se no terreno sombrio e incógnito da alma humana. Dona Laura conta a história de uma moça cheia de vida e os percalços na busca da felicidade. Vida e morte, paixão e violência, solidez e incertezas convivem em ambientes que vão desde o poético e bucólico da paisagem rural até o carregado e ameaçador dos grandes centros urbanos. Tudo para demonstrar que a vida, à semelhança de um barco à deriva em alto mar, está sempre a nos jogar de um lado para outro ao sabor das ondas...
Esta segunda obra de Dona Laura, em suma, tem tudo para sair do círculo literário dedicado somente aos amigos e conquistar espaço maior na galeria dos autores, esses eternos talentos da boa idade que sempre nos surpreendem quando brindam as novas gerações com tamanho vigor e esperança, por mais que sejam estranhos os amores de nossas vidas.
E agora, diante de nós, encontramos A fonte da felicidade que nos chega para arrebatar a alma, onde a autora, que completou 85 anos de idade, mergulha na sua própria história para recontá-la sob a ótica do amor e da felicidade. A figura humana dos personagens descritos pausadamente pela escritora cativa o leitor a cada parágrafo, fazendo retroceder num tempo onde tudo podia ser belo e se encontrava ao alcance da mão, dependendo do esforço e da sorte de cada um. O enredo, num tom de segredo, desliza a nossa frente através dos acontecimentos do dia a dia, ao mesmo tempo em que impressiona, pois não se tem ideia do que irá acontecer na linha seguinte da história. Tudo isso contorna a moldura deste romance com as cores do mistério e a textura da ficção.
Uma história original, distante do mundo atual onde a velocidade e o descartável controlam a vida das famílias e suas relações. Dona Laura, nesta viagem no tempo resgata através de sua fonte imaginária os gestos e o carinho desprendidos; cada um dos passos trilhados pelos personagens e o quanto existiu de amor e dedicação à família que plantou no curso da vida que viveu e fez viver. Recolhe de sua fonte milagrosa e dos braços de seus filhos e filhas ramalhetes de felicidade. E tudo o que representou para a sustentação do liame que lhe garantiu uma existência feliz e apaixonada, ainda que possa ter sido uma experiência ao mesmo tempo beligerante e desafiadora.
Pois bem, meus amigos. É dos respingos dessa felicidade que dona Laura nos brinda, misturada com saudade e vontade de abraçar, que o filho se inspira para correr ao seu encontro. E revestido de uma nostálgica gana telúrica, de aperto na alma, como que sussurrando ao passado, querendo àquele tempo voltar, deposita nos braços da comunidade cacequiense seu mais belo tesouro, para que receba de vossas mãos esta honrosa homenagem.
Obrigado dona Laura. Obrigado seu Vilson, onde quer que o senhor esteja. Obrigado manos e obrigado comunidade cacequiense pela bela homenagem que fazem em vida a essa senhora. Sinta-se, mãe querida, por nós todos, e por Papai do Céu, ternamente abraçada. Um beijo no coração.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Dia do índio, ó cara pálida!


Hoje é Dia da Nação Ofayé
Prof. Carlos Alberto dos Santos Dutra.

Festejar o Dia do Índio na atualidade pode parecer uma contradição, um paradoxo, algo surreal. Isto porque se pegarmos as três palavras que compõem a frase festejar o dia do índio já percebemos o grande engano que cometemos. Primeiro porque índio é quem vivia na Índia (assim pensavam os descobridores), e a palavra é fruto de um equívoco histórico. Mais correto seria chamar os povos autóctones que aqui foram encontrados pelos colonizadores, de indígenas (do latim indu+gene, de dentro ou que nasce de dentro, nativo do lugar). Hoje as populações indígenas reivindicam serem chamadas pelo nome próprio de suas etnias: Ofayé, Guató, Kaiowá, Yanomami e assim por diante, ou genericamente, Povos Indígenas. 

A segunda contradição é dedicar um dia apenas no calendário para uma cultura tão diversificada e rica como a indígena, e que é tão pouco lembrada e valorizada, sendo que todo o dia é dia de índio, como dizia a canção de Jorge Ben cantada por Baby Consuelo, a Baby Brasil. Festejar o 19 de abril equivale dizer que estamos ensinando nas escolas, de forma fragmentada, que a cultura indígena se resume somente ao dia 19 de abril. Uma rápida olhada a nossa volta, consultando os livros didáticos de nossas escolas e vamos observar detalhado a figura de um estudante vestido de índio com uma pena na cabeça e uma tanga de pano ou saco de cizal na cintura. 

Com isso estamos, em nome da globalização neoliberal, ceifando o futuro indígena, desrespeitando sua cultura e sua religião, impondo valores, colocando-os como reserva de mão de obra e que, quando não se integram ao modo capitalista de produção que lhe propomos, os acusamos de ser preguiçosos ou que já não são mais índios por que usam aparelhos celulares ou moram na cidade.

E terceiro, a propósito da festa, podemos perguntar: festejar o que? Se ainda não resta muita saída para o índio dentro da nossa cultura e nossa modernidade. Onde nossos princípios, que chamamos de avanços são totalmente contrário à ideologia de vida indígena. Vejamos alguns exemplos:
No mundo dos índios não existe espaço para o desmatamento desnecessário, plantação de monoculturas em larga escala, destruição e poluição dos rios. A terra para o povo indígena não é uma mercadoria, não é um produto de compra e venda: é fonte de subsistência, que deve ser explorada para garantir o pão de cada dia, não para a acumulação. Para o índio, todos sabemos, a terra, que é chamada de território, faz parte de sua história, regada de sangue e eivada de cruzes por nós semeada. Terra de seus antepassados...
No Dia do Índio, se você passar por uma escola vai ver grande parte dos alunos pintados e fantasiados de índios em atividades de comemoração a este dia, mas na mente desses alunos a cultura indígena raras vezes está contextualizada com a realidade. O índio para muitos ainda é o índio da novela da TV.
Então meus amigos. Hoje não é Dia do Índio. Hoje é o Dia da Nação Ofayé, da Nação Guarani, Dia dos Povos Indígenas. Hoje é o Dia da Aldeia Anodi, aqui de Brasilândia/MS. Dia em que os moradores desta aldeia multicultural festejam seus mortos, suas lutas, suas vitórias. Dia de aprender, através de seus erros e derrotas, novos caminhos. Dia de revitalizar a língua, ouvir histórias e recontá-las com sabor de amanhã. É dia de congraçamento, de agradecimento e homenagem àqueles velhos troncos, dos antigos caçadores e coletores da margem direita do rio Paraná. Dia também de reconhecer o esforço daqueles que, ao longo da caminhada, estenderam a mão ao índio, garantindo-lhes o ânimo necessário para continuar na luta, retirando as pedras do caminho, alargando seus horizontes.
Sim. Hoje é o Dia da Aldeia Anodi, do povo Ofayé e do povo Guarani-Kaiowá que ali também vive. Povo diverso que desde o século passado foi vizinho do povo Ofayé, frequentando as margens opostas dos rios Ivinhema, Brilhante e Pardo, não sem tensões, pois eram povos diferentes de hábitos, costume e língua. Mas até na diversidade a solidariedade vence. E cá estão eles, passado os anos, parceiros do sofrimento e desterro, desde a serra da Bodoquena nas faldas do Pantanal, onde os laços familiares se estreitaram entre os Ofayé e os Guarani-Kaiowá, enfrentando as mesmas dificuldades. Duas etnias que, apesar da imposição oficial, convivem em paz, respeitando-se mutuamente, pois a terra, é preciso dizer em alto e bom som: pertence ao Povo Ofayé!
Os não índios e suas escolas e professores desavisados podem continuar festejando o Dia do Índio de maneira folclórica e superficial em suas cidades, e cujos reflexos também fazem se sentir aqui na escola rural da aldeia. Mas, como seria bom se o Dia do Índio fosse festejado dando oportunidade a esse sujeito de pele parda, de ser protagonista de sua história e poder mostrar sua verdadeira identidade, seu jeito diferente de ser... e ser respeitado. Bom seria que seus direitos fossem garantidos, sobretudo na escola, com professores indígenas do ensino fundamental ao ensino médio e universidade.
Porque são tantos os acadêmicos, mestres e doutores que pisam a aldeia Anodi em busca de histórias, artesanato e sabedoria. --Ora, se buscam, é sinal que temos para dar. E se temos o conteúdo para suas teses e dissertações: --Por que não somos valorizados? --Por que nossa escola Ofayé E Iniecheki garante estudo ao índio somente até o 4º ano do ensino fundamental?
Sim, festejar o Dia do Índio é buscar respostas para tantas perguntas. Sobretudo àquelas dirigidas às autoridades. E aqui lembro do ex-cacique Ataíde Francisco Rodrigues, o Xehitâ-ha Ofayé, falecido em 2016, que sempre aproveitava estas oportunidades, quando estava diante do jornal e da TV, para reivindicar os direitos que sua comunidade carecia. Um grande líder.
Ao lado de Ataíde Xeritha-ha, aqui vai nossas homenagens aos saudosos Alfredo Ekurei-fyg; ao casal João Pereira He-í e arê Francisca He-gueí; a Eugênia ; o João; o Eduardinho Cri-i; o Arlindo Oti-chô; o Marcos; o Felipe Totê; o Sebastião; a Regina; o Gilmar Yacui-nin Apucará; a Aparecida Hanto-grê; a Malvina e seu Manoel; a dona Maria Ta-gué; a Cleuza Kái-rã; a Marilda Xartã; o Acácio; o Zé Nantes Fuic-xare-fuê; a Maria Helena; a Lurdes, o Tomé Chião e a Dirce Ranhão; o Josimar Sion-groi; o Silbene Ka-náu, e tantos outros, que neste dia, sim, cabe lembrá-los e honrá-los com nossas homenagens.
Parabéns Povo Ofayé, parabéns indígenas Guarani-Kaiowá. E também parabéns aos parceiros: Fibria, Prefeitura, Funai, Sesai, Universidade, Igrejas e pessoas de boa vontade. E também ao CIMI que durante 20 anos esteve ao lado desta comunidade, desde a Bodoquena até Brasilândia. Parabéns aos troncos sobreviventes do povo Ofayé e Guarani Kaiowá, representados hoje pela artesã dona Neuza Teng-rô, dona Joana Okuin-rê e seu Roni Va-verá.
Ao lado dos professores Silvano Hang-tar-hec, neto da are Francisca, e Elizângela, filha da professora Marilda, mestra dos doutores da língua Ofayé, a Aldeia Anodi festeja este dia com olhos de esperança, mas com os pés muito bem cravados no solo que o antepassado deste povo viu nascer e crescer.
Dia de olhar para o que já foi conquistado, e dia de olhar para estas crianças, e pensar no futuro: --O que estará reservado para elas? Dia, sobretudo, de envidar esforços, para garantir que os dias sejam melhores para elas. E demonstrar que o esforço e a luta dos mais antigos valeu a pena. Dia de demonstrar aos mais novos, Cacique Marcelo, que sentimos orgulho de ser indígena. Dia também para nós ó cara pálida, de fortalecer os laços de solidariedade e respeito aos patrícios Povos Indígenas desta terra. Obrigado. Arikã.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

João e a dança da Vida




Feliz Aniversário Mano João..



O pincel das cores dança sobre a tela da vida
E das mãos do Pintor Mor
Eis que desprende uma aquarela do cosmo
Obra prima capaz de mover os ventos e os mares
Cobrir de encantos os vales
Que enchem de beleza e graça
Os braços - João - de sua mãe

Sonhos, sorrisos de agradecimento
De pais, irmãos, amores, rebentos...

Ah, meu Deus, como o tempo voa
Mas as imagens ficam
A emoção permanece.
É visível nos traços, no olhar e na saudade...

A imagem revela laços que os unem por algo maior.
A ceia e a alegria do encontro
E ele está ali, nosso mano João, como que contemplando o momento mágico.
Carregado de vida e sentimento.
No dia de seu aniversário, é o irmão João, que nos permite admirar este instante:
Que felicidade maior estar ao lado da mãe e irmãos que amamos?
Que felicidade maior poder contar com o carinho e o toque daqueles que nos são caros?
Que felicidade maior saber que podemos contar sempre com um esse prestativo mediador?
Esse irmão que às vezes se oculta nas cores, se retrai nos planos.
Mas nos ângulos da vida, transfigura-se em pilastra que a tudo suporta.
Prenhe de temperança e acolhida, que arrastam jardins de bem-querer.


Sempre solícito no auxilio, na acolhida e bem aventurança
Semeia esperança aos que estão à sua volta, animando-lhes a alma
Com leveza e perfume.

E lá vem ele sorridente, dando um salto da foto para os braços do coração da família:


Pois não é mais possível escondê-lo nos acontecimentos do cotidiano.
Não é mais possível ocultar suas obras e feitos no curso da vida que ele faz viver.
Quando tudo brilha a sua volta
Não é mais possível deixar de proclamar o seu nome, como o irmão amado.


À semelhança daquele discípulo de envergadura e misericórdia celeste
Tu encheste as nossas vidas de bênçãos.
Muito obrigado João.

Feliz Aniversário.


 São os votos de todos que te amam.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Arikã Cleuza Maria Oliveira Kãi-hã Ofaié


Nos ombros de minha mãe a esperança Ofaié.
Carlos Alberto dos Santos Dutra


Em meio aos arbustos do cerrado um pequeno vulto de cabelos muito negros se destacava. Nos ombros de sua mãe sentia-se segura e protegida. Sabia que logo iria crescer e haveria de estar caminhando em fila “indiana”, seguindo as pegadas de seus pais e avós. Kiníe ainda não entendia direito aquelas andanças. Ver sua mãe Kãi-hâ, batizada de Cleuza Maria Oliveira, recolhendo guaviras rasteiras pelos campos, apesar do sol escaldante, sempre lhe pareceu normal e ficava feliz com esses momentos quando todos estavam reunidos, ainda que espalhados no descampado, entre assovios e pequenos gritos tribais de saudação e alegria.

Mas naquele dia o fardo lhe parecia mais pesado para os ombros de sua mãe. Há tempo ela vinha levando a vida sozinha, depois da partida do companheiro para os campos de Agachô. A filha nem lembra direito do rosto do pai, só lhe vem a imagem dos braços fortes e ternos de sua mãe. Mulher corajosa que, mesmo em meio às dificuldades, sempre arrumava um jeito de sorrir e acariciar-lhe a cabeça fazendo pequenos sinais circulares com os dedos ao redor de seu rosto, o que a confortava e apressava o sono.

Ah, esse é um tempo que já vai longe, lá pelas bandas da serra da Bodoquena. Tempos difíceis e que ficaram para trás. Para trás também ficaram as lembranças das coletas de guavira, marolo e mel silvestre pelas margens do córrego Sete, Bom Jardim e Boa Esperança em Brasilândia. Tempo em que o sorriso e a presença dos parentes alimentava a certeza de estarem vivendo no compasso de um dia de cada vez.

Roda o tempo da história e hoje, uma lágrima corre no rosto da aldeia Anodhi, e Kiníe, que já é mãe e brindou dona Cleuza com lindas netas de feições semelhantes àquelas da arê: é ela, agora, que carrega nos ombros o amor das filhas queridas. Para cada passo, uma gota de suor; para cada dia, uma lágrima de sentimento ao ver a mãe lentamente distanciar-se na campa e na lembrança.

Primeiro foi a are Maria, Ta-gué, na língua materna, mãe de Cleuza e Ataíde, rebentos que soçobraram das andanças e massacres. Depois que dona Maria partiu um vazio sentiu-se no coração da aldeia, quando a tribo ainda era de maioria Ofaié. Depois, os patrícios de outras etnias e não indígenas, descontroladamente, foram se achegando e o canto Ofaié foi sendo entoado cada vez mais baixinho, audível apenas para os poucos ouvidos que restaram do povo do mel.

Hoje o canto Ofaié é quase um sopro, um suspiro que brota no coração de filhas que perderam suas mães, de irmãos que perderam irmãs, de netos que perderam avós. E dona Cleuza agora é uma delas. Irmã do ex-cacique Ataíde Francisco, Xehitâ-ha, ela nunca arredou o pé das margens do Rio Paraná. Com a inundação do antigo aldeamento, ela não acompanhou os Ofaié em direção a aldeia Anodhi; casou-se com um não indígena e foi beneficiada com uma área de terra num reassentamento criado pela CESP que relocou os ribeirinhos que viviam na margem dos rios Verde e Paraná, constituindo uma nova família vivendo, porém, não muito distante da aldeia Ofaié. 

Kiníe e suas filhas ainda era elo que a unia à aldeia Anodhi. Nos últimos dias, seguidamente encontrava-se na aldeia, onde passava o dia conversando com as netas, relembrando o passado. Cleuza, que era de uma geração antiga, de hábitos silenciosos e som das palavras muito baixos, leva consigo os velhos troncos da língua Ofaié, uma das últimas falantes da língua materna. Após a morte do companheiro, em razão de dívidas assumidas, com a saúde abalada, teve de entregar o sitio aos credores, passando a viver quase no esquecimento num bairro popular na cidade até seus últimos dias.

A comunidade Ofaié que há apenas quinze dias enterrou a professora Marilda de Souza Xartã, se reúne novamente no cemitério da aldeia Anodhi, agora para se despedir da indígena Cleuza Maria Oliveira, nascida em 12 de fevereiro de 1971 e que faleceu no dia 13 de abril de 2015, no hospital municipal de Brasilândia, com 44 anos de idade. 

Particularmente a partida desta amiga querida atinge por demais este escrevinhador, pois essa jovem foi uma das primeiras que conheci lá na região da Bodoquena, quando os Ofaié viviam no exílio, ela e seu irmão Ataíde, que foram meus professores. Foi no contato que com sua família ao redor de um fogo de chão que eles me ensinaram os primeiros passos no indigenismo, a trinta anos atrás. Foi dos braços e do seio de dona Cleuza que minha filha Laura foi acalentada e bebeu a fonte da vida. Quando minha esposa Vilma não pode amamentar a sua primogênita foi a esta mãe indígena que lhe garantiu a continuidade da vida e da esperança. Vida que se despede de nós e nada podemos fazer. 

Arikã nossa guerreira. Passado 6 anos de tua passagem por aqui e ainda levas nos ombros as dores e também as esperanças de seu povo. Arikã, mãe silenciosa dos Ofaié. 

Publicado originalmente em 13 de abril de 2015. Republicado em 13 de abril de 2021.






















Fotos: Carlos Alberto dos Santos Dutra, 1989 e 1991