quarta-feira, 11 de abril de 2018

Arikã Cleuza Maria Oliveira Kãi-hã Ofaié


Nos ombros de minha mãe a esperança Ofaié.
Carlos Alberto dos Santos Dutra


Em meio aos arbustos do cerrado um pequeno vulto de cabelos muito negros se destacava. Nos ombros de sua mãe sentia-se segura e protegida. Sabia que logo iria crescer e haveria de estar caminhando em fila “indiana”, seguindo as pegadas de seus pais e avós. Kiníe ainda não entendia direito aquelas andanças. Ver sua mãe Kãi-hâ, batizada de Cleuza Maria Oliveira, recolhendo guaviras rasteiras pelos campos, apesar do sol escaldante, sempre lhe pareceu normal e ficava feliz com esses momentos quando todos estavam reunidos, ainda que espalhados no descampado, entre assovios e pequenos gritos tribais de saudação e alegria.

Mas naquele dia o fardo lhe parecia mais pesado para os ombros de sua mãe. Há tempo ela vinha levando a vida sozinha, depois da partida do companheiro para os campos de Agachô. A filha nem lembra direito do rosto do pai, só lhe vem a imagem dos braços fortes e ternos de sua mãe. Mulher corajosa que, mesmo em meio às dificuldades, sempre arrumava um jeito de sorrir e acariciar-lhe a cabeça fazendo pequenos sinais circulares com os dedos ao redor de seu rosto, o que a confortava e apressava o sono.

Ah, esse é um tempo que já vai longe, lá pelas bandas da serra da Bodoquena. Tempos difíceis e que ficaram para trás. Para trás também ficaram as lembranças das coletas de guavira, marolo e mel silvestre pelas margens do córrego Sete, Bom Jardim e Boa Esperança em Brasilândia. Tempo em que o sorriso e a presença dos parentes alimentava a certeza de estarem vivendo no compasso de um dia de cada vez.

Roda o tempo da história e hoje, uma lágrima corre no rosto da aldeia Anodhi, e Kiníe, que já é mãe e brindou dona Cleuza com lindas netas de feições semelhantes àquelas da arê: é ela, agora, que carrega nos ombros o amor das filhas queridas. Para cada passo, uma gota de suor; para cada dia, uma lágrima de sentimento ao ver a mãe lentamente distanciar-se na campa e na lembrança.

Primeiro foi a are Maria, Ta-gué, na língua materna, mãe de Cleuza e Ataíde, rebentos que soçobraram das andanças e massacres. Depois que dona Maria partiu um vazio sentiu-se no coração da aldeia, quando a tribo ainda era de maioria Ofaié. Depois, os patrícios de outras etnias e não indígenas, descontroladamente, foram se achegando e o canto Ofaié foi sendo entoado cada vez mais baixinho, audível apenas para os poucos ouvidos que restaram do povo do mel.

Hoje o canto Ofaié é quase um sopro, um suspiro que brota no coração de filhas que perderam suas mães, de irmãos que perderam irmãs, de netos que perderam avós. E dona Cleuza agora é uma delas. Irmã do ex-cacique Ataíde Francisco, Xehitâ-ha, ela nunca arredou o pé das margens do Rio Paraná. Com a inundação do antigo aldeamento, ela não acompanhou os Ofaié em direção a aldeia Anodhi; casou-se com um não indígena e foi beneficiada com uma área de terra num reassentamento criado pela CESP que relocou os ribeirinhos que viviam na margem dos rios Verde e Paraná, constituindo uma nova família vivendo, porém, não muito distante da aldeia Ofaié. 

Kiníe e suas filhas ainda era elo que a unia à aldeia Anodhi. Nos últimos dias, seguidamente encontrava-se na aldeia, onde passava o dia conversando com as netas, relembrando o passado. Cleuza, que era de uma geração antiga, de hábitos silenciosos e som das palavras muito baixos, leva consigo os velhos troncos da língua Ofaié, uma das últimas falantes da língua materna. Após a morte do companheiro, em razão de dívidas assumidas, com a saúde abalada, teve de entregar o sitio aos credores, passando a viver quase no esquecimento num bairro popular na cidade até seus últimos dias.

A comunidade Ofaié que há apenas quinze dias enterrou a professora Marilda de Souza Xartã, se reúne novamente no cemitério da aldeia Anodhi, agora para se despedir da indígena Cleuza Maria Oliveira, nascida em 12 de fevereiro de 1971 e que faleceu no dia 13 de abril de 2015, no hospital municipal de Brasilândia, com 44 anos de idade. 

Particularmente a partida desta amiga querida atinge por demais este escrevinhador, pois essa jovem foi uma das primeiras que conheci lá na região da Bodoquena, quando os Ofaié viviam no exílio, ela e seu irmão Ataíde, que foram meus professores. Foi no contato que com sua família ao redor de um fogo de chão que eles me ensinaram os primeiros passos no indigenismo, a trinta anos atrás. Foi dos braços e do seio de dona Cleuza que minha filha Laura foi acalentada e bebeu a fonte da vida. Quando minha esposa Vilma não pode amamentar a sua primogênita foi a esta mãe indígena que lhe garantiu a continuidade da vida e da esperança. Vida que se despede de nós e nada podemos fazer. 

Arikã nossa guerreira. Passado 6 anos de tua passagem por aqui e ainda levas nos ombros as dores e também as esperanças de seu povo. Arikã, mãe silenciosa dos Ofaié. 

Publicado originalmente em 13 de abril de 2015. Republicado em 13 de abril de 2021.






















Fotos: Carlos Alberto dos Santos Dutra, 1989 e 1991

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