quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

 Qual é o doce mais doce, Chico Doceiro?

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 







Qual é o doce mais doce que o doce de batata doce? Este é um adágio popular conhecido no Brasil inteiro. Mas aqui em Brasilândia/MS uma outra frase pode ser comparada a ela. O tema foi eternizado nos ouvidos de quem conheceu o mantra de seu Chico Doceiro: --Comadre, quem vai querer bolo de milho? Como bem lembrou o prefeito Dr. Antônio na sua live semanal, referindo-se ao amigo.

Falar sobre seu Francisco Martins de Arruda, popular Chico Doceiro, logo após a sua despedida não é tarefa fácil, sobretudo para a família que ainda vive sob forte comoção. Recordar o quanto ele significou para esta comunidade, entretanto, pode ser um gesto de gratidão e homenagem.

A trajetória de um homem só pode ser dimensionada por aqueles que estiveram ao seu lado e acompanharam de perto seus passos ao longo dos anos. Muitíssimo popular, esse brasilandense de coração deixou marcas profundas de simpatia naqueles que conheceram seu temperamento franco, alegre e brincalhão.

Nascido no dia 20 de agosto de 1939 na cidade de Novo Horizonte/SP, seu Chico era filho de Pedro Martins de Arruda e dona Petronilha Nunes de Oliveira. Pertencia a uma família numerosa cujos pais sustentaram 14 filhos. Ele e seus irmãos: Eugênia, Umbelina, Maria, Izabel, Augusta, Helena, Olivia, Luzia, Joviano, Antônio, José, Anézio, e Waldomiro.

Órfão de pai a partir dos sete anos de idade, ajudou a mãe a sustentar a casa e manter a família e os irmãos.

Passou a infância na cidade de General Salgado/SP ajudando a família a tocar roça, agricultores que eram. Estudou até a 4ª série, tendo passado seus primeiros anos até a mocidade trabalhando na lavoura ao lado dos irmãos.

Durante sua juventude, entre os gostos que cultivou estava o de andar a cavalo, prática que o acompanhou durante anos, sonho que apartou de si somente depois de adulto.

Quando completou 25 anos de idade, numa de suas andanças pelo Oeste paulista, na cidade de Fernandópolis, conheceu aquela que viria a se tornar sua esposa. Casou com dona Maria Júlia Cardoso no ano de 1964 na cidade de Aparecida D’Oeste/SP, mudando-se para Três Lagoas, anos depois.

Seu Chico se estabeleceu em Brasilândia no ano de 1977 quando se firmou na profissão de motorista e vendedor, popularizando-se como distribuidor de doces por muitos anos. Atividade que lhe conferiu o apelido Chico Doceiro. Ao lado da esposa viu crescer seus três filhos: Francisco Carlos (Carlinhos), Mara Silvia e Francismeiri (Fran).

Homem que nunca enjeitou trabalho, também laborou num sitio próximo a Debrasa em 1984 e também no sitio Esperança Dois, no Reassentamento Santana, em 2004, propriedades que cultivou e administrou com zelo.

Das alegrias que tinha, a maior delas era quando seu time do coração – o Corinthians --, ganhava alguma partida, pouco se importando com as derrotas sofridas.

Nos finais de semana, sua preferência era um bom churrasco de carne bovina ou suína – naqueles tempos áureos. Nos demais dias, contentava-se com  feijão, arroz e frango, prato que não abria mão por preço algum, quando preparado por sua esposa.

Era nessas ocasiões, quando se reunia com a família e os amigos que seu Chico parava para pensar na vida e no longo trecho de estrada que havia trilhado pela Brasilândia e região. 

E lá ia Chico Doceiro com seu caminhãozinho F-4 mil amarelo de frete, transportando mudanças, levando e trazendo estudantes, famílias, galhos de árvores, tijolos, sonhos e esperança, sem nunca deixar de sorrir ou escapar uma palavra engraçada de otimismo, descontraindo o ambiente.

Alegria só comparada a satisfação de olhar para trás e ver os filhos criados e os netos com saúde: Ellen Mara, Eloisa, Ricardo, Mônica, Rafael, Dayane e Beatriz Vitória. E os bisnetos: Jorge Otávio e Alicia. Satisfação que o fazia, de quando em vez, cantarolar uma canção de ninar para essas crianças quando ainda eram pequenas.

Como a lembrança que a filha Fran Arruda guardou no coração até os dias de hoje: Boi, boi, boi. Boi da cara preta... Ouvindo aquela voz gutural do pai e vendo-o debruçado sobre o berço do neto Rafael: Uma imagem que nunca vou esquecer...

Seu Francisco Martins de Arruda faleceu no dia 12 de fevereiro de 2022 na cidade de Costa Rica/MS. Trazido para Brasilândia, seu corpo recebeu as honras fúnebres e foi sepultado no dia seguinte, um domingo, dia do Senhor que o abençoou, rodeado de familiares e amigos que lhe ofertaram as melhores lembranças e justas homenagens. Descanse em paz Chico Doceiro.


Brasilândia/MS, 16 de fevereiro de 2022.




segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Joel Laurindo de Jesus e um sonho realizado

 

Joel Laurindo de Jesus e um sonho realizado.

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 






O clarim ecoa longe no pátio do quartel. E o sonho de uma criança voa alto: um dia vestir aquela roupa brilhante cor de anil e sair por aí. Ele nem sabe bem o porquê, mas aquilo lhe enche o coração de emoção.

Esse sentimento, ao que parece, acalentou aquele jovem, filho de dona Amância Laurinda de Jesus por muitos anos. E lá estava o seu menino Joel, todo sorriso de olhos fixos na farda e no coração de sua mãe, mulher corajosa e destemida que soube muito bem criar seus quatro filhos educando-os todos na fé, com amor, respeito e dedicação.

Desde o dia que nascera, lá na distante Sergipe/AL, naquela manhã de 16 de outubro de 1941, o aluno  cresceu dedicado e obediente, tendo, porém, de trabalhar muito cedo, na cidade onde passou a infância, estudando até a 3ª série do ensino fundamental: uma vitória para aqueles tempos difíceis.

Seu sonho, entretanto, se realizou mesmo quando chegou aos 18 anos e foi servir no quartel onde trilhou a disciplina e alargou os horizontes de amor à pátria e a defesa do cidadão comum.

Mas a alegria e contentamento pleno só alcançou quando ingressou na Polícia Militar, seu sonho maior. Foi no ano de 1960 quando aqui chegou e, integrou a força pública preventiva, sua maior realização. Regozijo só comparado a quatro anos depois, quando se uniu em matrimônio com a jovem que conhecera quando seus pés tocaram nesta cidade de Brasilândia.

Foi para esta moça que seus olhos se voltaram e que o ajudaram a entender melhor o mundo, sob o olhar e habilidade feminina, vencendo a dureza do trabalho e os riscos candentes de vida e morte, numa atividade que o fazia viver constantemente sob alerta. 

Esposa, graça que Deus colocou no seu caminho, Clarice Caetano de Jesus, mulher virtuosa que lhe deu carinho e de presente, dois filhos: Joelma, hoje com 49 anos de idade e Gilberto Laurindo de Jesus, falecido em 2020, com 49 anos de idade.

Seu casamento faz parte da história de Brasilândia por ter sido realizado na época da emancipação político administrativa do município, tendo sido registrado pelo 1º fotógrafo de Brasilândia, Abel de Oliveira

Outro fato marcante daquela cerimônia de casamento foi ela ter contado com a participação do 1º prefeito de Brasilândia, José Francisco Marques Neto que foi padrinho de casamento do casal Joel e Clarice, evento social que marcou a vida da pacata cidade que emergia.

Homem de temperamento simples e de tez negra, nunca revelou a discriminação que por ventura sofrera na comunidade ou entre os colegas na atividade que sempre buscou desempenhar com lisura e prontidão. Querido por todos, nas horas de folga assistia televisão e também era possível algumas vezes vê-lo lendo um jornal, coisa incomum para um tempo ainda distante das mídias digitais.

Durante a vida fez o que sempre sonhou: ser policial. E conquistou aquilo que sempre quis. Isso o tornou um homem realizado e feliz; felicidade comparada à alegria de ter concluído a construção de sua casa própria e adquirido seus veículos.

Também se sentia feliz em dividir com os amigos, ainda que poucos, o time do Santos, do coração, e descontrair com o baralho num bom jogo de cartas  - cacheta -, em longos papos nas rodas de amigos que cultivou.

Sem desprezar suas raízes, era um bom apreciador da culinária do Nordeste, não resistindo aos encantos e o sabor de uma doce paçoca e a pamonha que tanto apreciava. Amante da música sertaneja, em especial os cantores Amado Batista, Sérgio Reis entre outros, foi o policial que, dada sua natureza reservada,  Brasilândia pouco conheceu na intimidade.

Quando o PM Sargento Joel Laurindo de Jesus faleceu, no dia 16 de março de 2011, portanto, há onze anos, aquele cidadão que permaneceu policial lotado no Batalhão da Polícia Militar de Brasilândia até o ano de 1990, quando se aposentou, seus familiares e amigos puderam celebrar e recordar suas melhores lembranças, que podem ser traduzidas nas palavras do seu neto, hoje, Selton Guto, que lhe presta essa singela homenagem: Foi um grande cidadão batalhador que conquistou o que queria e deixou o seu legado.

Brasilândia, 14 de fevereiro de 2022.


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

 

O rugido do leão na montanha silenciou.

Carlos Alberto dos Santos Dutra











O vento sopra forte por entre as pedras do vale. No pico mais alto de um daqueles montes, uma silhueta contrasta com o brilho do sol. A melena farta, esvoaçante que ostenta, confere-lhe poder e força. Com o tronco levemente empinado para frente e a cabeça altiva, lança um olhar de distância sobre aquela existência. Sentia-se realizado e quem o via assim, satisfeito, tinha certeza disso.

Aquele leão, desde a juventude, construiu sua vida buscando sempre o melhor para si e para os seus, edificando corpo e mente com o que de melhor dispunha a sua volta. As melhores pastagens para o repouso de seus pés; as melhores aguadas para matar a sede do bando; o refrigério das matas para o conforto do coração; as melhores lições recolhidas de seus pais, motivo de altivez e satisfação. Ele era um pouco de tudo do que melhor existia naquelas plagas.

Sua companheira e os filhos, em quantidade e brilho semelhante às estrelas do céu, formavam a família perfeita: tudo fazia com que se sentisse ainda mais feliz, e poder estufar o peito, orgulhoso do que havia conquistado e construído. Educou cada um de seus rebentos com a força e sabedoria de um mestre, preparando-os para a guerra que é o viver: enfrentar os inimigos de longe, e conquistar amigos de perto, que um dia lhe saberão ser gratos e fiéis.

Até aquela tarde quando ele decidiu descer a montanha deixando para trás aquele vale encantado. O trem do tempo é o senhor da história. E sua estação havia chegado ao destino. A juba, antes brilhante, já não lhe parecia tão viçosa; as patas e suas garras poderosas, que antes derrubavam grandes presas, hoje, desgastadas e quebradiças, só lhe davam motivos de tristeza.

Ah, e a dor de não mais poder correr pelos campos livre e com saúde. A vista já cansada, não conseguia mais discernir o olhar de sua amada, dedicada, sempre ao lado, e dos filhos, aflitos vendo o pai declinando as forças. Sobretudo naqueles dias em que foi preciso estender-lhe as mãos e carrega-lo no colo. Momento que os pais se tornam filhos e os filhos se tornam os pais de seus pais.

Triste ver a exuberância daquela rocha que aos poucos foi revelando rachaduras, desfazendo-se em pedaços; lascas de dor, nacos do coração que dilacera o bem querer da esposa, dos filhos e dos amigos. Ver aquele imponente carvalho, assim, numa cama de hospital era o quadro que ninguém imaginaria ter ali ele chegado.

Pelos corredores, ao longe, ainda era possível ouvir o seu grito de dor e contrariedade. Tal qual o rugido de um leão ferido, lá estava o homem e sua força descomunal de coragem e fé, aos poucos sendo consumido pelo tempo. Ora, o tempo. As chuvas que caíram, outrora na fazenda Pinheiro, os milímetros cuidadosamente medidos pelo pluviômetro e anotados, agora são pingos do céu que refrescam sua boca, sedenta de vida, que quer vida e quer viver.

Gotas de orvalho como os daquela tarde fria e chuvosa de sua juventude, quando os campos se abriram para beber na fonte a luz de maior brilho. E o velho tata, papai, feito um leão dourados, não mais rugiu de dor dando adeus ao sofrimento. E lá se viu ele, criança outra vez, correndo livre, sem amarras, sem equipo, sem agulhas, sondas e medicamentos que lhe marcavam o corpo e a alma. Resposta que só o céu poderia lhe dar em retribuição ao respeito e piedade que sempre devotou aos mais pobres e humildes.

Depois de uma longa jornada, o nonagenário olhou a sua volta e viu tudo, por alguns momentos, com toda clareza. Foi quando sentiu no peito uma paz e um orgulho sereno, nunca experimentado, que lhe tomou as entranhas. Nostalgia, quiçá, para quem havia vencido mais uma batalha, das tantas que empreendeu. Abriu os braços, fechou os olhos e deixou que corressem para o seu colo um a um os filhos queridos, como um verdadeiro pai, esposo, avô, bisavô e uma legião de amigos.

E eles foram chegando, um a um, sorridentes, para dedicar-lhe em vida a homenagem que ele era merecedor; enaltecer suas obras de educador e o seu jeito peculiar de ser. Naquela tarde, enquanto os pingos da chuva lhe acariciavam o rosto e a chapada dos montes com sua dança, ele sorriu. Todos a sua volta, então, foram tomados de um sentimento de alegria e gratidão filial.

E postando-se ao seu redor, o envolveram num abraço fraterno com seus terços e preces, novenas e bênçãos, invocação e cânticos, dirigidos à Deus e à Virgem, aos quais ele sempre confiou e devotou sua vida como um dedicado filho.

Depois de viver quase um século, aos 93 anos de idade, o brasilandense Raimundo Pedro de Souza se despediu da família e dos amigos. Afrouxou e desprendeu os laços de amizade que nutriu aquele  cidadão que vivia na Cidade Esperança desde 1955 e aqui construiu a história; história que seus filhos haverão de ter orgulho de contar.

Pelos vales, campos e matas, o vigoroso rugido do leão na montanha ainda será possível ouvi-lo por um bom par de anos, fazendo ecoar a voz de um nordestino valente guerreiro, digno e honrado cidadão vindo lá do Ceará, região do Crato, que nasceu no dia 2 de agosto de 1928 e hoje se despediu de todos nós. Rugido e voz que venceram distâncias e hoje silenciaram; permanecem embaçadas pelas lágrimas e a saudade que machuca muito, muitos corações.


Brasilândia/MS, 3 de fevereiro de 2022.

 

Sobre seu Raimundo: Cf. https://carlitodutra.blogspot.com/2021/08/raimundopedro-de-souza-93-anos-o-homem.html