sábado, 31 de dezembro de 2022

 Dona Ana, do seu Raimundo, faz 91 anos

 Carlos Alberto dos Santos Dutra



Falar sobre dona Ana é como falar de uma flor. Todos a contemplam e admiram sua cor, sua beleza e esplendor, sobretudo quando exala seu perfume e sorriso agradáveis que ganham distâncias.

Uma flor pode ter muitos nomes. Porém, não fosse a fidelidade e persistência de quem a cultivou, ela não resistiria a ação do tempo.

E assim, nossa linda flor, ano após ano, sendo cultivada e zelada por mãos de fada, com paciência e destemor de uma jovem mulher, ela permanece entre os seus até hoje.

Depois de deixar para trás suas raízes e o sol escaldante do Ceará e unir-se ao amor de sua vida, Raimundo Pedro de Souza, da região do Crato, aquerenciou-se por estas terras, na Fazenda Pinheiro. Era o ano de 1955.

Os 19 anos que o casal ali permaneceu foi o tempo necessário para que dona Ana pudesse ver crescer os 15 filhos, dos 16 que Deus lhe deu.

A história desta mulher, entretanto, só depois, quando o casal deixou a zona rural, em 1976, e passou a morar na cidade, é que sua trajetória pode ser melhor entendida, admirada e reconhecida.

Foi quando todos, em especial os filhos que foram se tornando adultos, puderam ver com os olhos do coração o quão valorosa fora aquela valente senhora que os criou.

Que mulher! Que heroína! Viver naqueles tempos. Superar as dificuldades, as doenças e as privações numa época onde a distância era o maior obstáculo ao conhecimento e à sobrevivência. E sempre em silêncio.

E lá estavam os filhos: João, José, Erotides, Fátima, Antônia, Adelaide, Josualdo, Antônio, Teresinha, Ilda, Clodoaldo, Francisco, Melchior, Conceição, Walderley, um a um, vendo aquela matriarca guerreira driblando a sorte na mantença do lar, zelando sempre pelos valores da fé e os costumes da família.

Pequenos milagres diários, como acariciar o filho com uma mão e preparar o alimento com a outra. Tantas bocas, tantas carências, tudo suplantado pelo amor de uma mãe. Coser o agasalho, providenciar o remédio, secar as lágrimas, não perder a esperança...

Logo os mais velhos já começaram a trabalhar e lá estava a mãe, com uma pontinha de vaidade vendo-os tomar rumo na vida, confiante no sucesso de seus rebentos, incentivando-os a cada instante.

Filhos, pelos quais sempre zelou e primou pela reta formação, o temor a Deus e o respeito à família. Exemplo como nunca se viu. Sob a vigilância permanente do patriarca, a família se manteve firme numa fé inabalável como devotos de Padre Cícero e da Virgem Maria Nossa Senhora.

Hoje o dia nos envolve a todos com o perfume dessa flor e de várias outras flores e aromas que se achegam com o tempo até ela. Porque dona Ana, completa hoje 91 anos e, em meio a sua completa felicidade, ainda abre espaço no seu coração para acolher, além dos filhos, seus netos, bisnetos e tataranetos.

Ainda mais: genros, noras, cunhados, sobrinhos, afilhados, vizinhos, amigos, comadres de reza e de fé no círculo bíblico, manifestando sempre respeito e acolhimento, dedicando a todos especial carinho e atenção.

E sorri. Ah! Esse sorriso que irradia luz na brandura de seus gestos, comedidos, singelos, mas sempre espontâneos, elegantes e generosos.

E lá vai donAna ao lado de suas filhas mais velhas, confundindo-se com elas, insistindo em se ocupar nos afazeres da casa. Porque ela nunca perdeu o hábito e o tino para a lida, mesmo depois que a saúde ameaçou roubar-lhe as forças e afastá-la do cotidiano. Ela nunca foi uma mulher de desistir.

E ela estava lá, com sua bengala, um sorriso maroto e olhos muito atentos, concentrada, ensaiando novos passos, apontando rumos, mostrando o quanto permanece forte, decidida e independente.

Quando ia à Igreja, receber a santa comunhão, aquilo era sagrado. Depois, pelas mãos de uma ministra, permaneceu sempre em comunhão com sua Fé. No ano que passou, o próprio Cristo consagrado foi à sua casa lhe fazer companhia pelas mãos do sacerdote, padre Fábio, que celebrou missa de ação de graça no seio de sua família, na companhia do diácono Carlito.

É essa força do Alto que mantém forte e com o vigor essa valorosa mulher. É essa força celeste que demonstra quando se dedica ao bordado criando peças lindas destinadas à Canção Nova. Ou quando brinca com o fuso manejando-o com habilidade, cardando a lã, fazendo renascer a vida, demonstrando que não esqueceu o que aprendeu com seus pais, numa arte cada vez mais rara.

Essa é a dona Ana que hoje aniversaria e que enche a todos de alegria. Motivo de bênção para toda essa grande família, que só tem a agradecer a Deus pela sua vida, pela sua alegria, e pelo carinho que sempre dedicou de forma generosa a todos que bateram à sua porta. ‘Dos que me deste, Senhor, nenhum se perdeu’.

Dona Ana já não é mais uma flor: é a mãe jardineira de um amplo jardim, onde os corredores sempre floridos, são seus braços, sempre abertos, muito vivos, verdadeiros, francos, cheios de amor para nos acolher e nos abraçar. Obrigado dona Ana.

Feliz Aniversário dona AnaAmamos você. 

Brasilândia/MS, 31 de dezembro de 2023.









quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

 

Sara Hita: catequese, testemunho e saudade.

Carlos Alberto dos Santos Dutra


Corria o ano de 2017 e a catequese da Diocese de Três Lagoas se encontrava de luto. Deixava-nos a mestre das catequistas Sara Hita Barbosa da Fonseca. Por um longo período ela, que fez parte da história da iniciação cristã de tantos catequizando, no curso de quatro décadas, deixou um legado que é marco na evangelização católica em Mato Grosso do Sul.

Ela já estava aqui há um bom tempo quando comecei a participar das reuniões diocesanas a partir de 1986 e os anos que se seguiram, depois, já sob o impulso e reflexo da dimensão bíblico-catequética proposta pela CNBB às vésperas do 3º milênio nos anos 1990. 

Aqueles olhinhos atentos e gestos dinâmicos, serelepe, lá estava aquela senhora jovem em espírito, religiosamente, em todas as assembleias diocesana e Foranias, apresentando cada passo conquistado pela Catequese, pastoral de seus sonhos, sempre pleiteando prioridade, apontando caminhos, indicando documentos e abrindo horizontes para uma Diocese ainda conservadora e tradicionalista em suas ideias e costumes.

E ela soube descortinar a nova Evangelização com sabedoria e paciência, embora sempre fora uma missionária proativa por natureza. Propôs aos padres e agentes de pastoral uma releitura da Catequese a partir das reflexões do Magistério, por vezes visto com desconfiança por alguns leigos contribuindo para que o clero se abrisse para a realidade do mundo. 

Com o apoio de D. Izidoro Kosinski, na época, e as pastorais sociais, pautadas no serviço, diálogo, anúncio e testemunho, lá estava ela, engajada, levando a mensagem àqueles coraçõezinhos inocentes as verdades perenes sobre a fé e a vida. Mais do que uma coordenadora de pastoral da Catequese, ela era também esposa, mãe, avó e amiga de todos, sempre disposta e solícita.

Ah, meu Deus. Mas como somos esquecidos de nossos mestres, líderes e daqueles que tanto fizeram por nós, por nossa pastoral, por nossa Igreja... E cá estamos nós chorando e lembrando sua partida, nos penitenciando, por não a ter acompanhado mais de perto nos seus últimos dias, como Igreja, dedicando-lhe um sorriso, um abraço de gratidão.... 

O sorriso contido como o de Sara Hita, entretanto, há de permanecer na lembrança de todos, por guardar um tempo que foi de todo singular e aos poucos se esmaeceu... Mas que deixou um rastro de flores pelo caminho para ser trilhado por aqueles que seguiram seus passos e souberam valorizá-la.

A mestra catequista agora voltou a ser criança e já não se importa mais com o passado. Seus pesinhos pirilampos, balançam sob o galho de um salso chorão à beira de uma das três lagoas encantadas que o tempo vai consumindo. Hoje ela não poderia estar em lugar melhor. Se encontra aos cuidados do maior de todos os Catequistas. 

A menina Sara está agora nos braços do Pai Eterno, com as mãozinhas ao redor de seu pescoço, cantarolando cantigas de ninar, em meio a rosas celestiais perfumadas, belas como ela, sorrindo para todos nós que, por enquanto, por aqui permanecemos. Um brande beijo para você Sara Hita!

Brasilândia/MS, 29 de dezembro de 2022.


Fonte: DUTRA, C.A.S. Quando eu me chamar saudade, Brasilândia, 2022, pág. 180.

 

 

Entidades e Instituições que irão receber grátis 1 exemplar do Volume 2- Patrimônio, da coleção História e Memória de Brasilândia/MS:

 

sábado, 24 de dezembro de 2022

 

Celebração da Véspera do Natal

Carlos Alberto dos Santos Dutra









Hoje é a celebração da Véspera do Natal. Noite de graça e contentamento, pela chegada de uma das datas mais marcantes na vida do mundo inteiro. E a liturgia católica desta noite nos fala de um Deus que ama a humanidade e se preocupa com ela. Ele não deixa seus filhos perdidos e abandonados. Não os deixa percorrer caminhos de sofrimento e de morte.


Ele envia um Menino para falar com o seu povo e lhes apresentar uma proposta de vida e de liberdade.

Que maravilha. Esse Menino será a LUZ para o povo que andava nas trevas


Mas quem é esse menino?


A primeira leitura (Is 9,1-6) anuncia a chegada deste Menino. Ele vem da descendência de David. Um Menino que é dom de Deus e vem para eliminar a guerra, o ódio, o sofrimento. Um Menino que vem para inaugurar um tempo de alegria, de felicidade e de paz sem fim.


O Evangelho nos mostra a realização de uma promessa profética: Jesus, o Menino de Belém, é o Deus verdadeiro. O Deus que vem ao encontro dos homens para lhes oferecer a Salvação. O Deus dos pobres e marginalizados que traz entre as palhinhas do presépio uma proposta para cada um de nós. Cheio de graça, igual ao sorriso de uma criança, Ele se aconchega, inocente em nossos corações. Não quer se impor pela força. Sua proposta é de paz. Ele se oferece com a ternura de uma criança, frágil e que inspira amor.


A segunda leitura nos mostra como podemos viver este Natal e o que devemos fazer para ter e viver uma vida autêntica e comprometida com esse Deus menino que nasce nesta noite. Deus nos ama verdadeiramente, a ponto de se colocar no meio de nós para nos dizer que este mundo não é a nossa morada permanente. O menino inocente nos diz que os valores deste mundo são passageiros.


Só o amor e a ternura deste Menino são capazes de nos transformar a ponto de nos comprometermos com o projeto de salvação que Ele nos traz. Portanto, é Jesus, o Menino de Belém, que dá sentido pleno a nossa vida. Ele é aquele que veio de Deus para vencer as trevas e as sombras da morte. O nascimento de Jesus que celebramos esta noite significa que, efetivamente, este 'Reino' chegou e incarnou no meio dos homens. Acolher Jesus, celebrar o seu nascimento, é aceitar esse projeto de justiça e de paz que Ele veio trazer aos homens.


Mas será que isso é realidade? Temos nos esforçados para que isso seja uma realidade? Como lidamos com a injustiça, a opressão, a guerra, a violência: com a indiferença? Isso nos diz respeito? Ou eu não tenho nada com isso? Em que coloco a minha esperança? Em quem tenho colocado a minha segurança?


Observemos o jeito de Deus. Como Ele age? Ele não se serve da força e do poder para intervir na história e para mudar o mundo. É nós que movemos o mundo. Nós movemos o mundo, mantemos nossa família, exercemos nossas atividades, trabalho e relações na sociedade, não pelas nossas forças e vontade. Mas, sim, através de um 'Menino' – símbolo máximo da fragilidade e da dependência. É isso que Deus propõe aos homens para colocar em prática projeto de salvação.


Será que temos consciência de que é na simplicidade e na humildade que Deus age no mundo?


No Evangelho (Lc 2,1-14) Deus nos fala que este menino de Belém, é Ele que nos leva a contemplar o incrível amor de Deus. Devemos, pois, abrandar nossos corações e confiar, que Deus se preocupa até ao extremo com as nossas vidas e a nossa felicidade. A ponto de enviar o próprio Filho ao mundo para que conheçam o caminho. O caminho que ele nos aponta e que nos leva à salvação e a libertação.


O menino no presépio é esse grito radical de amor por nós. O presépio é próprio lógica do amor de Deus. Diferente da lógica dos homensA salvação de Deus não se manifesta nos encontros internacionais onde os donos do mundo decidem o destino dos homens, nem nos gabinetes ministeriais, nem nos conselhos de administração das empresas, nem nos salões onde se concentram as estrelas e os nossos ídolos.


A salvação de Deus se manifesta, hoje, nesta noite, para o mundo inteiro, numa gruta de pastores onde brilha a fragilidade, a dependência, a ternura, a simplicidade de um bebé recém-nascido. Qual é a lógica com que abordamos o mundo? A lógica de Deus, do amor e acolhimento; ou a lógica dos homens, das disputas e divisões?


A Boa Notícia que os anjos e os pastores nos trazem deve encher de felicidade a todos que se fazem pobres e humildes, que depositam sua confiança em Deus, o Deus verdadeiro que nos ama. Será que é essa a proposta que nós, os seguidores de Jesus, passamos ao mundo? Nós, Igreja, não estaremos demasiado ocupados a discutir questões laterais, de estruturas, esquecendo o essencial, o que vai no coração, o anúncio libertador aos pobres?


O Jesus menino que nasce – que quer trazer justiça, amor, fraternidade e paz ao mundo --, já nasceu. Ele está presente em cada um de nós, nas nossas famílias, nas nossas casas, nas igrejas e nas praças.


E Ele está à espera de nossa decisão e nosso gesto concreto de tomá-lo nos braços, como a uma criança, e deixar-se levar por Ele, através de suas Palavras e seu Exemplo. Feliz Natal Comunidade de Brasilândia!


Brasilândia/MS, 24 de dezembro de 2022.

 

Foto:

Presépioem que mãe descansa comove Papa: "Quantos de vocês têm que dividir a noitepelo bebê que chora?" - Revista Crescer | Curiosidades (globo.com)

Fonte:

Missa da meia-noite de Natal - Ano A - Dehonianos

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

 

O artigo 142 e o desatino do Presidente

Carlos Alberto dos Santos Dutra



 








Desde o dia 2 de novembro os carros continuam com adesivo dele. Acampamentos em frente aos quarteis permanecem pedindo ele. Comentaristas e âncoras de rádio e TV colocam mais lenha na fogueira defendendo a insanidade dele. É o que se tem visto pelas ruas num país dividido. E tudo por conta de um líder, transformado em mito que incendiou o país. 

E como se não bastasse o caos instaurado, mesmo após a vitória de democracia e consumada as eleições gerais no Brasil, nos chega a notícia atual de que Bolsonaro ainda aposta no artigo 142 para não sair do Planalto. 

Que coisa mais estupida. Nunca o país teve de assistir tamanho devaneio. E tudo isso somado a uma comoção dolosa e tardia de uma massa fervorosamente ignara que faz coro a tal ilusão propagada pelo seu messiânico capitão. 

Mas a verdade, pasmem, é que a alucinação é real: Jair Bolsonaro ainda espera que até 1° de janeiro vai conseguir reverter de alguma maneira a sua saída do Palácio do Planalto. E suas últimas fichas recaem sobre o artigo 142 da Constituição, observa Guilherme Amado, colunista do editorial Metrópoles. 

Mas, afinal o que é o Artigo 142 da Constituição Brasileira? É o dispositivo que trata das funções das Forças Armadas ao qual os chamados patriotas arvoram-se escudando nela suas pretensões absurdas. 

O jornalista tem razão ao dizer que alguns militares, juristas e bolsonaristas têm uma leitura golpista do texto, como se ele autorizasse as Forças Armadas a interferir na política e dirimir conflitos entre os Poderes da República. Equivocados, chegam a dizer que os militares teriam autorização para ser uma espécie de Poder Moderador. 

Peremptoriamente, o Artigo 142 da CF não prevê a intervenção militar, nem federal. Em nenhum momento o caput do artigo fala isso, pelo menos para quem possui o mínimo de entendimento e cursou o ensino básico. 

Não é muito difícil de entender, numa leitura honesta, que a Constituição de 1988 determina que a palavra final para solucionar conflitos e impasses entre os Poderes é do STF. Todo o contrário é desonestidade intelectual.

Acontece que, discordando de tudo e de todo o bom senso, Bolsonaro ainda acha que pode, a depender dos acontecimentos dos próximos dias, convocar os militares para agirem como moderadores da ordem constitucional. 

Em que pese a fantasia, a suposta indevida intervenção do Judiciário no Legislativo e Executivo seria, para o presidente, o motivo para, uma vez convocados, os militares possam impedir a saída de Bolsonaro do Planalto e a posse de Lula. 

A propósito, frisa o colunista: a chance de os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica embarcarem numa dessas é zero. Em que pese o povo venha sendo insuflado e alimentado por Bolsonaro desde 2020, quando fazia declarações com ameaças antidemocráticas, o Exército pareceu mouco a isso. 

'Todo mundo quer cumprir o artigo 142. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil', disse ele em abril de 2020. No entanto, declarações como esta não têm respaldo da Constituição.

O artigo 142 afirma in verbis que as Forças Armadas (…) são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Ou seja, a Constituição não prevê que as Forças Armadas possam ser usadas para rejeitar o resultado da eleição, como prerrogativa de um golpe, nem atuar sem a autorização dos Poderes, confirma a seção Comprova Explica do periódico Metrópoles.

A reportagem entrevistou, entre outros, Wallace Corbo, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito Rio, que afirmou: Ao contrário do que têm pregado apoiadores do presidente Bolsonaro, o artigo 142 da Constituição Federal de 1988, em vigência no Brasil, não tem dispositivos que concedam às Forças Armadas o poder de arbitrar conflitos entre os Poderes ou de fazer qualquer tipo de intervenção militar ou federal.

As Forças Armadas são órgãos de Estado, cuja ação independe das disputas políticas. Logo, apesar de estarem as Forças Armadas subordinadas ao presidente, ambos estão ao alcance da Constituição. Ou seja, a autoridade do presidente é ‘suprema’ perante as demais autoridades militares, mas não diante da ordem constitucional.

Mentes autoritárias, nostálgicas do período militar, buscam na Constituição os instrumentos para destruí-la. Como dizia Thomas Jefferson, a Constituição não é um pacto suicida. Não pode ser usada para a sua destruição, afirmou o professor Wallace Corbo.

Segundo o Metrópoles, ele avalia que o movimento ultrapassou os limites do direito de manifestação e se tornou um ato ilícito. Portanto, configura crime contra o Estado e a ordem constitucional e precisa ser investigado. Cidadãos comuns e autoridades que tenham agido para contribuir com essas manifestações ou se omitido devem ser responsabilizados, afirmou.

Em sua avaliação o professor vai mais longe ao mencionar a Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/2016) que pode ser aplicada neste caso, dado o fato de as manifestações terem se caracterizado pela propagação do terror social e pelo objetivo de desestabilizar a ordem democrática.

Em entrevista ao Valor Econômico, publicada em 4 de junho de 2020, o ministro Gilmar Mendes, do STF, afirmou ser irresponsável e tese de lunáticos a interpretação de que o artigo 142 legitimaria intervenção das Forças Armadas. Ele ressaltou que o guardião da Constituição é o STF e que as ‘Forças Armadas não são milícias de uma dada facção partidária’.


Brasilândia/MS, 21 de dezembro de 2022.

 

Foto: https://www.facebook.com/photo/?fbid=556749706258042&set=pcb.556747142924965https://www.facebook.com/atreslagoasqueuquero, 06/11/2022. 


Fonte: https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/bolsonaro-ainda-aposta-no-artigo-142-para-evitar-sua-saida-do-planalto; https://www.metropoles.com/projeto-comprova/artigo-142-nao-preve-intervencao-militar-nem-federal-entendahttps://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/pressao-militar-gestou-artigo-vago-da-constituicao-usado-em-atos-pro-golpe.shtmlhttps://www.hojemais.com.br/tres-lagoas/noticia/geral/manifestantes-seguem-firmes-em-frente-ao-exercito-em-tres-lagoas-em-protesto-contra-o-resultado-das-eleicoes

 

 

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

 

Can-rê e o milagre do Natal

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

 







Experimentar o Natal vai além das palavras. Exige gestos. Mais que isso, exige emoção. E isso só se consegue com o coração e o auxílio das mãos, do corpo, dos nossos bens e da nossa vontade e determinação.

Foi o que aconteceu naquela noite, antevéspera de Natal. As batidas insistentes no portão fizeram o velho homem saltar da cama. Quem seria àquelas horas quando a noite já ia alta? –Quem é, ele pergunta.

Do outro lado do muro, lá fora, no desvão do mundo, em meio a escuridão, um vulto balbuciou duas palavras: --Can-rê

O coração daquele velho deu um salto dentro do peito. Era como se uma flecha vinda lá do céu o fulminasse a alma. Um misto de alegria e angustia, de pouco ter feito, e o muito que ainda precisava fazer. 

A vontade era correr ao seu encontro, abraçá-lo, olhar nos seus olhos e dizer:
--Sede bem-vindo, você é o nosso melhor presente de Natal.

Mas a feridas eram tantas, a cor e o cheiro da exclusão o afastavam de nós. Algo como uma doença, um estigma, um rio de lágrimas.

Duro tempo de exílio, condenado, aprisionado, considerado um bandido, esquecido, alongado. Não pelo cerrado onde fora criado, mas entre grades, selas e sevicias.

A luz, por um momento, permite ao velho aproximar-se do jovem, o suficiente para reparar o seu rosto e acariciar-lhe a fronte. Aquele que ainda se parece um menino, segurando seu animal de estimação... gesto que os anos e a selvageria do mundo há tempo o roubou de nós.

A aldeia Anodi, muito cedo aprendeu a suportar a dor e a perda de seus filhos. Um a um, foram sendo consumidos pela ganância e a violência de aganíe, os homens maus.

Mas nada tiraria a alegria daquele velho ao contemplar aquele presente de Natal na porta de sua casa.  Tal qual a parábola do filho pródigo, a vontade era de cobri-lo de beijos e dar-lhe as melhores roupas, dar uma festa em sua homenagem:  -- Pois ele estava perdido e voltou a vida. Motivo maior para festejar o Natal, não existia.

E foi assim, em meio à admiração do encontro e a felicidade de poder fazer algo de útil naquele Natal, que Can-rê, depois de alimentado e vestido da melhor roupa, foi conduzido até sua aldeia, sua casa, sua família... 

Sua família... não. No percurso ele perguntava: --Cadê meu pai, Eduardinho? E, depois de um breve silêncio, como que buscando na memória, ele mesmo respondia: --Acabou. E de novo perguntava: --Cadê minha mãe, Hanto-grê?: --Acabou. E assim foi enumerando seus parentes um a um: todos mortos. 

Voltar para casa e não encontrar mais a família é uma das maiores dores que um filho, irmão ou pai pode suportar...

O carro adentra mansamente na aldeia Anodi muito cedo, e aos poucos vai se percebendo por entre as árvores e as casas, a figura de alguns homens, que logo identificam a chegada do antigo morador. Depois de um lustro recluso do convívio social, sai da prisão e vai para os braços do que restou de seu povo: seus primos, seus tios, seus amigos.

Mesmo que por apenas cinco dias, a licença permitida pela Justiça, o menino Jesus, naquele ano de 2015, com o rosto de Can-rê, por certo, passou por ali.

 

Fonte: Adaptado de DUTRA, C.A.S. Diálogos Impertinentes e crônicas de adeus. Brasilândia, Edição do Autor, 2020, pág. 37. Também em Quando eu me chamar saudade, Brasilândia, Edição do Autor, 2021, pág. 7. Fotos: Can-rê (João Carlos de Souza) na Barranca do Rio Paraná no ano de 1986 e na Aldeia Anodi Ofaié no ano de 2015 (Fotografado pelo Autor). O indígena Ofaié Can-rê faleceu na prisão em Bataguassu/MS em setembro de 2019, um mês após completar 41 anos de idade.




   

sábado, 17 de dezembro de 2022

 

Santa Rita do Pardo e a Saudade

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

Dia 18 de dezembro, Santa Rita do Pardo comemora o aniversário de sua criação como município, ocorrido há 34 anos, no ano de 1987. Dedicamos, portanto, nossas homenagens àquela que, antes de ser filha de Brasilândia, como distrito, também foi sua mãe na história e no tempo. 

Antes de Brasilândia existir, já foi dito, havia somente o distrito de Xavantina, hoje a próspera Santa Rita do Pardo, emancipada oficialmente em 1º de janeiro de 1989. E os homens que a construíram, na verdade, muito pouco foram brasilandenses. 

Mantiveram o status de distrito, inicialmente de Três Lagoas e, depois, de Brasilândia, mas sempre alimentaram uma imensa força e sede de liberdade e autonomia: o desejo de se tornar cidade. 

Distante da sede do município de Brasilândia, a Xavantina antiga buscou muito cedo o seu rumo e horizonte, forjando seus próprios líderes a partir de suas raízes, sonhos e potencialidades. 

Contar a história de Santa Rita do Pardo é tarefa para os historiadores daquela urbe, do quilate de José Ferreira de Matos, professor Archanjo dos Santos, e outros do naipe da professora Eledir Barcelos, entre tantos mestres e telúricos do lugar. 

Aqui nos cabe somente o singelo registro de lembrar alguns nomes que foram notícia na imprensa brasilandense (Jornal de Brasilândia e as primeiras edições do Jornal da Cidade) que fizeram menção ao nome de alguns dos filhos mais ilustres da antiga Xavantina, aos quais rendemos nossas homenagens. 

Entre os nomes ilustres daquela comuna, há de se citar João Morais, popular Cherai, falecido no dia 22 de fevereiro de 1997 e que era morador de Santa Rita do Pardo desde 1979. Segundo consta ele trabalhava como lavrador onde conseguiu fazer várias amizades pelo seu jeito de ser amável com seus semelhantes (...), sendo um homem que sempre estava à disposição daqueles que dele necessitassem. Ao partir ele deixou à época, a esposa, ex-vereadora santa-ritense Sr.ª Floriza Francisca Alves que também tem sua história numa Santa Rita ainda de poucos fogões. 

Outro nome que retumba na memória da antiga Xavantina é da Sr.ª Rita Vicente Ferreira, carinhosamente conhecida por Rita Morena, nascida em 10 de agosto de 1906 e falecida em 23 de março de 2002, que mereceu de nossa parte um pequeno poema que aqui reproduzimos: 

Santa Rita Morena

Mãe de uma dezena de filhos

Curvada pela idade,

Lá está ela

A reger a sinfonia de um século

Para uma legião de almas

A partir de sua humilde morada.

O bastão que carrega

O gesto em desalinho,

E a vontade de viver

Comove a todos por onde passa.

A casa, cheia de amigos,

E fartura de alimento.

Gente de todas as partes

Aprendem com ela a sorrir

E dividir simplicidade

Na generosa alegria do encontro

Eucaristia confirmada

Em uma fé messiânica.

Em meio ao rito litúrgico,

Preocupada catequista,

Lá está ela a ensinar

O sinal da cruz às crianças.

Na procissão,

Em direção à capelinha

Localizada poucos metros da casa,

A mãe matriarca

É a última da fila,

A tocar o rebanho.

Num gesto simbólico

De louvor e fé,

É a própria história

Que se ergue inteira

Dos braços de quem

Soube muito bem construir.

Lúcida nonagenária,

Sob as marcas do tempo,

Lá está ela a rezar

Pelo seu povo,

Pelos caminhos do Pardo.

Reze por nós, Santa Rita Morena! 

Consta que Rita Morena possuía uma capelinha no sitio Santo Antônio, que nos tempos idos era chamado de sitio Olho D’água. Ali sempre organizou suas festas religiosas e beneméritas, sempre prestigiada pela população local que transformou o evento num marco cultural desde a antiga Xavantina até os dias em que ela viveu, e é rememorado pela cidade de Santa Rita do Pardo. 

No dia em que é comemorado a fundação do município de Santa Rita do Pardo, as nossas homenagens a todos os valorosos fundadores e construtores desta urbe. 

Brasilândia/MS, 17 de dezembro de 2022.

 



 

Fotos: Arquivo José Ferreira de Matos, Lauri Vital Bósio, 1998. 

Fonte: DUTRA, C.A.S. História e Memória de Brasilândia, Vol. 1-Pioneiros, Pág. 66-7 

Esta e outras riquezas da região estão disponíveis para download em PDF em: https://www.dropbox.com/s/8lm3urpuw5s36kh/Hist%C3%B3ria%20e%20Mem%C3%B3ria%20de%20Brasil%C3%A2ndia-MS%20V1-Pioneiros.pdf?dl=0

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História e Memória de Brasilândia/MS - Pioneiros, por Carlos Alberto dos Santos Dutra - Clube de Autores