sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

 

Dona Mocinha e sua história de amor e superação.

Carlos Alberto dos Santos Dutra



O som de mil vozes pelos corredores daquele amplo espaço se misturava ao ruído dos veículos da rua e os ônibus que saíam e chegavam naquela imensa estação rodoviária no coração de São Paulo. E ele estava lá, ao lado de sua mãe dona Alexandrina Maria Rosa, com os olhos muito atento a tudo e a todos naquela cidade estranha. 

Eu relembro, eu relembro. Seu Aparecido Lopes de Almeida, popular Aparecidinho, lança um olhar para a esposa que se encontra ao lado, passados setenta anos e a uma distância de quase mil quilômetros, daqueles acontecimentos, eles relembram esta emocionante história. 

--Meu pai era viúvo e minha mãe também, recorda dona Josefa Ribeiro de Almeida, a esposa que muito cedo recebeu o nome de Mocinha. --Aí meus pais se casaram, lá no Pernambuco. Meu pai tinha 6 filhos, e minha mãe tinha 4 filhos, quer dizer, formaram 10. Daí, da união deles dois, nasceu duas meninas: eu e outra, de nome Margarida, que teve mais sorte do que eu, e morreu, sorri encabulada.

--E eu tô aqui, ainda, prossegue. --Aí papai.... Aqui dona Mocinha faz uma pausa para confessar: --Toda a vida sempre teve homem sem-vergonha. Pois papai enrabichou com a cunhada, irmã da primeira mulher dele e veio embora para o estado de São Paulo. E trouxe os 6 filhos dele, do primeiro casamento, e me carregou também, eu pequenininha, com três anos ou quatro de idade, por aí.

 

Sem entender muito o que acontecia, --Minha mãe pensou que eu tinha morrido ou que alguém me carregou. Naquele tempo, observa, a mulher, ela só tinha que falar Amém. Não é como hoje. Hoje a mulher fala e tem voz, mais de primeiro não! Mulher que falava apanhava. Não é não, e pronto! Eu falo porque eu sou de ontem... Ela olha, cabisbaixa, para o esposo que se encontra ao lado e diz em tom quase inaudível: --Já tá bom, vou calar minha boca.

 

Sua mãe, então, ficou lá no Pernambuco achando que tinha perdido a filha. Dona Mocinha conta que ela chorou, a coitada, que ficou com os quatro filhos dela. E eu, papai me trouxe embora num pau de arara para o estado de São Paulo. Naquele tempo era assim, observa, o povinho do Norte era assim, sem documento, sem nada.

 

Desta forma, aquela menina que nascera no dia 8 de outubro de 1949, com apenas quatro anos de idade, desembarcou na cidade paulista de Urânia, de mão dada com seus seis irmãos filhos homens de seu pai. E se firmaram por lá, onde, com os passar dos anos, a família trabalhou e prosperou. --A família que eu fui criada, portanto, foi a família do meu pai. Sobre minha mãe, nada. Ninguém dizia uma palavra.

 

Assim ela cresceu e passou sua juventude. Até a idade dos 15 anos de idade, quando se casou no dia 5 de fevereiro de 1964 com seu Aparecidinho, que tinha na época 21 anos de idade. Ela, que havia nascido no antigo distrito de Carnaíba de Flores, no sertão pernambucano, foi em solo paulista que conheceu seu esposo, nascido em 9 de setembro de 1942, natural de Tanabi/SP, mas cuja família havia migrado do sertão baiano.

 

--No meu documento, dona Mocinha lembra, não tem o nome da minha mãe. Tanto que eu fui registrada só aqui em Urânia/SP. Naquele tempo o pai falou não! E acabou! E eu nunca me atrevi a perguntar para meu pai por quê? Meus irmãos e minhas irmãs, eles que contavam a história para mim, escondido dele, porque papai era bravo.

 

Ela recorda que um de seus irmãos, o mais novo, de nome Enoque sempre lhe falava: --Mocinha, quando eu for no Pernambuco eu vou conseguir notícia da tua mãe e trazer para você. Ele falava isso escondido do papai, diz ela sorrindo.

 

E o tempo passou e deu suas voltas. Foi quando, pouco antes de seu pai falecer, deu uma febre do povinho do estado de São Paulo vir para cá comprar terra. Seu pai vendeu o que tinha em Urânia e comprou 53 alqueires de terra aqui no Mato Grosso, nas proximidades do córrego Bom Jardim. --Papai tinha um sítio que era o maior no córrego Jardim, fora o dos Galdino, ali ao lado dos Galdino, tudo de divisa com o nosso. Quando meu pai morreu, meu irmão vendeu, repartiu e foi todo mundo embora, só ficou eu aqui.

 

Dona Mocinha passa o dorso da mão sobre a testa, enquanto deita os olhos sobre uma fotografia antiga de sua mãe. E prossegue a sua história. --Quando foi um dia, o Enoque, meu irmão lá de Naviraí, pois foi um bocado de gente para Naviraí, inclusive ainda tem um irmão meu que mora lá. Pois ele (o Enoque) foi no Pernambuco ver as terras que papai tinha deixado lá, pois quando ele veio embora, largou tudo pra lá.

 

Quando ele voltou, para a surpresa de dona Mocinha, uma boa notícia lhe foi entregue: --Ó Mocinha, eu andei bastante para ver se encontrava a tua mãe, mas não consegui encontrar. Mas eu peguei o endereço dela. Você pode escrever para ela, para esse endereço aqui tá.

 

Aquela senhora, na época com quarenta e poucos anos, foi como se voltasse a ter novamente quatro anos de idade. --Não foi dois palitos e eu fiz uma cartinha, pois minha maior paixão, seu Carlito, era ver minha mãe. Os outros, no Dia das Mães, tinham alegria e eu tinha tristeza; porque não tem calor igual ao calor da mãe, não tem. E ela chorou; chorou também quem estava ao seu lado.

 

E prosseguiu sua odisseia: --Aí eu fiz a carta. Naquele tempo aqui em Brasilândia não tinha Correio, não tinha nada aqui. E Aparecido foi levar essa carta para minha mãe. Aparecido foi lá em Panorama ‘ponhar’ a carta para ir para o Norte. Depois disso, dona Mocinha aguardou um tempo que lhe parecia uma eternidade.

 

Quando sua mãe, lá no Pernambuco, recebeu essa carta, se estabeleceu uma confusão. Quando mãe e filha se encontraram, tempo depois, a mãe contou para a filha os detalhes desta novela: --Ela me disse que corria feito uma doida com a carta na mão: é da minha filha, é da minha filha! Aí meu irmão por parte de mãe disse assim: --Mãe, vai ver que essa mulher não é sua filha. Mãe, e se não for? Ir no Mato Grosso, é o fim do mundo!

 

Dona Maria Tereza de Jesus, mãe de dona Mocinha, conhecida pelo nome de Maria Quinca, então, deixou o tempo passar e acalmar os ânimos da família. --Aí, quando foi um dia, ela disse que fez isso para experimentar se eu era mesmo a filha dela. Queria saber se eu era filha de Bodocó, porque meu pai tinha apelido de Bodocó, todo mundo conhecia ele como Zé Bodocó.

 

--Aí ela escreveu. Até bem pouco tempo eu tinha esta carta guardada. Ela ‘ponhou’ na carta assim: --Mocinha se tu realmente tiver vontade de me conhecer que nem eu tenho de te ver, você manda o dinheiro da passagem que eu vou aí. Só assim.

 

Preocupada com sua mãe, pois ela não sabia ler nem escrever, nunca tinha saído nem para ir na feira, dona Mocinha pensou: como ia fazer três dias de viagem? Era tempo demais para ela.

 

Quando a carta chegou comunicando que sua mãe ia vir, dona Mocinha falou: --E agora? Pensou nos custos dessa viagem. --Daí eu fiz assim: eu lavava roupa para oito casas. Peguei o dinheiro, pois naquele tempo eu nem sonhava em aposentar, peguei o dinheiro das mulheres adiantado, inclusive do povo do Talayeh, de todo mundo. E lá foi de novo o Aparecidinho para Panorama mandar o dinheiro, porque aqui não tinha como mandar, não tinha banco.

 

--Quando o dinheiro chegou lá esse meu irmão ‘danô’ que ela não vinha: --Não, a senhora não vai, porque a senhora tá doida, saír daqui e ir para esse Mato Grosso. Sabe lá se essa mulher é sua filha, vai que é uma sei lá, e virou aquela coisa.

 

--Eu vou, firmou dona Maria Quinca! Ela já mandou o dinheiro e pronto! Aí ela mandou uma carta falando que tinha comprado a passagem e era o ônibus da Itapemirim que vinha do Pernambuco para São Paulo. E lá estava mais uma missão para o seu Aparecidinho: ir para São Paulo para encontrar e buscar a sogra. Dona Mocinha brinca: --Se eu, que era a filha, não conhecia ela, como o Aparecido ia conhecer?  

 

E lá se encontrava, agora, aquele senhor inquieto e sua mãe, dona Alexandrina, antiga parteira de Brasilândia, em meio ao murmúrio de vozes e azáfama de passageiros na rodoviária mais importante do Brasil em busca de uma passageira de rosto desconhecido.

 

A maior dificuldade, entretanto, foi não lhes permitirem se aproximar do local de desembarque dos ônibus. E lá se encontravam eles, plantados, sem conhecer ninguém, muito menos quem deveriam acolher, na rodoviária da Barra Funda em São Paulo. --Você imagina se não é uma história?, comenta dona Mocinha.

 

Seu Aparecidinho conta que havia uma repartição na rodoviária onde as pessoas podiam obter informações e ele entrou na fila, logo explicando ao atendente: --Eu moro no Mato Grosso, em Brasilândia, e vim aqui atrás da minha sogra que está vindo do Pernambuco. Disse também que não sabia qual ônibus ela iria chegar e tampouco a conhecia. Só sabia que era ônibus da Itapemirim.

 

Enquanto ele contava sua história, os atendentes, guardas, fiscais e carregadores da rodoviária começavam a inteirar-se da sua missão ali, motivados pelo firme e cadenciado jeito de Aparecidinho falar: --Minha patroa veio de Pernambuco com 3 anos de idade e não conhece a mãe, que está vindo do Norte. Por isso eu tenho que entrar lá onde os ônibus chegam, pedia aos responsáveis que aos poucos foram se sensibilizando com a sua causa.

 

Seu Aparecidinho olhava e só via carros da Itapemirim encostando que vinham do Norte e do Nordeste. --Eu tenho que conversar com vocês, pois eu tenho que chegar na porta de cada ônibus para ver se ela veio neste ou noutro carro. --Tá todo mundo esperando ela lá, e nós aqui também, eu e vocês aqui também, dizia, quase implorando, pedindo ajuda aos que estavam a sua volta e a cada um que chegava ele pedia que o ajudassem a encontrar a sua passageira.

 

Seu Aparecidinho carregava no bolso um documento fornecido pela Delegacia aqui de Brasilândia informando às autoridades a sua condição e o objetivo de sua ida até São Paulo, mas ele acabou esquecendo de mostrar aos atendentes buscando persuadir os demais somente através de suas eloquentes palavras sobre sua necessidade.

 

E lá foi seu Aparecidinho descendo a escada rolante da imensa rodoviária, se dirigindo aos guardas para convencê-los a deixar aproximar-se dos ônibus da Itapemirim que chegavam do Nordeste. Na ocasião, ele não estava sozinho, sua mãe, dona Alexandrina, o acompanhava e, ajudou-o a sensibilizar os presentes da nobre missão que eles eram portadores.

 

Depois de muito conversar, por fim, foi permitido a eles se aproximarem dos ônibus que chegavam. Nesta altura os carregadores e bagageiros que ouviram toda aquela história, começaram também a ajudar.

 

E, assim, cada ônibus da Itapemirim que estacionava, um bagageiro chegava na porta do veículo e perguntava: --Dona Maria Tereza de Jesus, está neste ônibus?, formando uma corrente de solidariedade que só Deus pode explicar, recorda dona Mocinha.

 

Já eram nove horas quando um ônibus chegou e alguém perguntou --Quem é Maria Tereza aí? Foi quando se ouviu uma voz lá do fundo: --Sou eu, apresentando-se uma senhora que, pela voz nordestina, já dava para conhecer, se tratava de minha mãe, observa dona Mocinha quase chorando de alegria só em lembrar.

 

Seu Aparecidinho acenou para os carregadores, bagageiros e guardas que ajudaram na busca: --Deus os abençoe, disse agradecido, momento em que todos deram uma salva de palmas para comemorar àquele acontecimento inusitado que culminou com um final feliz.

 

--Depois de apresentar a todos, dizendo que aquela era a pessoa que eles foram buscar, brinca a dona Mocinha, eles ainda resolveram no dia seguinte seguir viagem até Aparecida do Norte, diante de Nossa Senhora Aparecida agradecer o bom êxito daquela façanha. Vejam só.

 

Dona Mocinha, depois da chegada de sua mãe, pode abraçá-la e beijá-la, colocando sua vida novamente no seu curso. Foi quando sua mãe lhe contou que aquela sua menina fora batizada com oito dias, mas que, até lhe ser tirada, ela foi amada e teve uma infância feliz. O amor e a amizade foi restabelecida, a ponto de dona Maria Quinca não mais querer se apartar daqui. 

Conseguiu emprego na Prefeitura de Brasilândia onde trabalhou por 13 anos como varredora de rua e foi casada com o popular José Bodocó, que tinha o nome de José Ribeiro da Silva. Ele bebia pinga no bar do saudoso João da Pedra, lembra. Ele faleceu e foi enterrado aqui em Brasilândia, e ela, sua mãe, ao fazer uma visita à sua cidade acabou falecendo no Pernambuco, na mesma cidade em que dona Mocinha nasceu: Carnaíba de Flores. 

Dona Maria Quinca, aqui em Brasilândia, quem a conheceu lembra: ela tinha uma marca registrada: era magra, alta e usava um paninho na cabeça. Trabalhou por aqui até se aposentar, ganhou da dona Neuza uma casinha no bairro João Paulo da Silva, e fez uma amizade enorme por aqui, lembra a filha orgulhosa de sua mãe. 

Hoje, o casal, dona Mocinha e seu Aparecidinho, ela com 74 anos e ele com 80 anos, depois de gerarem cinco filhos (dois já falecidos), sete netos e quatro bisnetos, vivem felizes. Quem os vê assim, caminhando céleres e rijos pelas ruas de Brasilândia, sequer sabe a metade das histórias e realizações desta dupla pioneira que faz parte da história de nossa cidade.

Fonte: Entrevista com Dona Josefa (Mocinha), fornecida ao autor em 18 de fevereiro de 2022. Foto: Arquivo dona Mocinha.

 

3 comentários:

  1. Linda história tem orgulho em dizer que o casal sao padrinhos meu de casamento.

    ResponderExcluir
  2. Comadre Alexandina fez o parto trouce ao mundo minhas duas filhas

    ResponderExcluir
  3. Que Deus abençoe madrinha mocinha e padrinho parecido quando vou por lá sempre vou pedir a bença que Deus proteja

    ResponderExcluir