A Bíblia, o puxão de orelha do Papa e as Fake News
Carlos Alberto dos Santos Dutra
A notícia é antiga: um vereador do PSL, lá da
capital Rio Branco, ocupou a tribuna do Legislativo acreano para divulgar que
o chefe da igreja católica, o papa Francisco anunciou que vai cancelar a Bíblia, e que isso corresponde a chegada do anticristo.
Mesmo sendo alertado por alguns colegas de
parlamento de que se tratava de uma notícia falsa, o vereador continuou. Manteve
sua indignação com a atitude do papa e prosseguiu com as críticas. A notícia
se espalhou. A ponto de receber dura repreensão do clero daquele Estado.
A atitude do
vereador é irresponsável. Ao propagar
fake news contra o papa Francisco, revela que o senhor não se preocupa nem
sequer em verificar a veracidade das informações que propaga, o que me dá o
direito de pensar que o senhor também não se preocupa com a população que o
elegeu, disse o padre Mássimo Lombardi, que recomendou ao vereador que verifique melhor as informações antes de
disseminá-las.
Esta fake news,
entretanto, é mais antiga que a manifestação do tal vereador que depois mostrou-se
arrependido de seu ato. Em abril de 2019 já circulava pelas redes
sociais a informação de que o papa
Francisco, líder mundial da igreja católica, havia determinado o cancelamento
da Bíblia. O pontífice teria tomado essa decisão por achar as escrituras
desatualizadas. Seu objetivo seria criar um novo livro sagrado, provisoriamente
batizado como Bíblia 2000, noticiou
Imprensa.
A frase atribuída ao papa, até o dia 25
de abril de 2019, tinha sido compartilhada mais de 7,5 mil vezes no Facebook,
observou o site Lupa, da Folha de São Paulo, na época, que classificou a
afirmação como falsa.
De acordo com o Vatican News, órgão
oficial do Vaticano tratava-se de uma notícia falsa, reciclada e importada dos Estados Unidos.
O texto foi veiculado originalmente no site
humorístico There Is News em abril
de 2018. E a versão disponível no Facebook e que ressuscitou agora pelo WhatsApp, é uma tradução literal da mensagem em inglês, porém, nada do que está ali corresponde a realidade,
alerta o site original.
Paralelamente às fake
news, à desinformação e à ignorância que gravita ao redor da esfera global, o papa
Francisco, nos dias atuais, em resposta a todo este imbróglio confessional, brinda
aos cristãos sábias lições justamente sobre a Bíblia, que o acusam de querer cancelá-la.
E lá está Francisco
na Audiência Geral, informa o Vatican
News, como se estivesse puxando a orelha de todos, lembrando que a Bíblia não foi escrita para uma humanidade
genérica, mas para nós, os cristãos. Devemos nos aproximar da Bíblia sem segundas intenções, sem a
instrumentalizar. O fiel não procura nas Sagradas Escrituras o apoio para a
própria visão filosófica e moral, mas porque espera um encontro, disse o papa.
As
palavras das Sagradas Escrituras não
foram escritas para permanecer presas nos papiros, nos pergaminhos ou no papel,
mas para serem recebidas por uma pessoa que reza, fazendo-as brotar no próprio
coração. A palavra de Deus chega ao coração, frisou o papa.
A Bíblia não
pode ser lida como um romance, observou, citando o
Catecismo da Igreja Católica que afirma: A
leitura das Sagradas Escrituras deve ser acompanhada de oração, para que seja
possível o diálogo entre Deus e o homem. Para a Igreja, a oração é um diálogo com Deus. Aquele
versículo da Bíblia foi escrito também para mim, há muitos séculos, para me
trazer uma palavra de Deus. Foi escrita para cada um de nós, disse Francisco.
E acrescentou: Esta experiência acontece a
todos os fiéis: uma passagem da Escritura, ouvida muitas vezes, de repente um
dia fala-me e ilumina uma situação que estou vivendo. Mas é necessário que eu
esteja presente nesse dia, no encontro com essa Palavra. Que eu esteja ali,
ouvindo a palavra. Todos os dias Deus passa e lança uma semente no terreno da
nossa vida. Não sabemos se hoje encontrará terra árida, selvas, ou terra fértil
que faça crescer essa semente. Depende de nós, da nossa oração, do coração
aberto com que nos aproximamos das Escrituras para que elas possam tornar-se para
nós a Palavra viva de Deus.
Entre as lições extremamente
atuais que o papa recomenda está: aproximar-se da Bíblia sem segundas intenções, sem
a instrumentalizar. O fiel não procura nas Sagradas Escrituras o apoio para a própria
visão filosófica e moral, mas porque espera um encontro; sabe que aquelas
palavras foram escritas no Espírito Santo, e que por isso nesse mesmo Espírito
devem ser acolhidas e compreendidas, para que o encontro se realize.
Fico incomodado quando ouço cristãos que
recitam os versículos da Bíblia como papagaios. Você encontrou o Senhor
naqueles versículos? Não é um problema apenas de memória, mas de memória do
coração, aquela o abre ao encontro com o Senhor. Aquela palavra, aquele
versículo o leva ao encontro com o Senhor.
Bíblia
não foi escrita para uma humanidade genérica, mas para nós, para mim, para
você, para homens e mulheres em carne e osso. Homens e mulheres que tem nome e
sobrenome. Como eu e você. A Palavra de
Deus, impregnada do Espírito Santo, quando é recebida com o coração aberto, não
deixa as situações como antes. Muda alguma coisa. Esta é a graça, a força da
Palavra de Deus, disse.
Para Francisco, a
Palavra inspira bons
propósitos. Isso porque ela brota da tradição
cristã [que] é rica em experiências e reflexões sobre a oração com a Sagrada
Escritura. Veja o caso do método da lectio divina, nascido num
ambiente monástico, mas agora praticado por cristãos que frequentam as
paróquias.
Trata-se primeiramente de ler a passagem
bíblica com atenção, eu diria com obediência ao texto, a fim de
compreender o que ele significa em si mesmo. Posteriormente entra-se em diálogo com a Escritura, para que
aquelas palavras se tornem um motivo de meditação e oração: permanecendo sempre
fiel ao texto, começo a perguntar-me o que ele diz a mim.
Este é um passo delicado: não devemos resvalar
para interpretações subjetivas, mas devemos fazer parte do caminho vivo da
Tradição, que une cada um de nós à Sagrada Escritura. O último passo da lectio
divina é a contemplação.
Aqui as palavras e os pensamentos dão lugar ao amor, como entre os noivos que
por vezes se olham em silêncio. O texto bíblico permanece, mas como um espelho,
como um ícone a ser contemplado. E assim se há diálogo.
Através da oração, a Palavra de Deus vem
habitar em nós e nós habitamos nela. A Palavra inspira bons propósitos e apoia
a ação; dá-nos força e serenidade, e até quando nos põe em crise, nos dá paz.
Em dias ‘maus’ e confusos, assegura ao coração um núcleo de confiança e amor
que o protege dos ataques do maligno.
As Sagradas Escrituras são um tesouro
inesgotável. É assim que a Palavra de
Deus se torna carne naqueles que a acolhem em oração, sublinhou o pontífice.
Em alguns textos antigos emerge a
intuição de que os cristãos se identificam tão intimamente com a Palavra que,
mesmo se todas as Bíblias do mundo fossem queimadas, um ‘molde’ dela ainda
poderia ser salvo através da marca que deixou na vida dos santos. Esta é uma
expressão bonita, ressaltou.
A vida cristã é uma obra de obediência e ao
mesmo tempo de criatividade. Um bom cristão deve ser obediente, mas deve ser
também criativo. Obediente porque escuta a palavra de Deus e criativo porque há
o Espírito Santo dentro que o impele a levá-la adiante. As Sagradas Escrituras são um tesouro
inesgotável, concluiu o papa, concedendo a todos a sua bênção apostólica.
Brasilândia/MS,
14 de outubro de 2021.
Foto:
Fonte:
https://osaopaulo.org.br/vaticano/francisco-a-biblia-nao-foi-escrita-para-uma-humanidade-generica-mas-para-nos/
Cf. Audiência Geral. Vatican News, 27/01/2021.