quinta-feira, 28 de abril de 2022

Construir uma casa é sonhar


Contruir uma casa é sonhar

Edifício, aconchego, lar...

É muito mais que um morar

São beleza e arte para contemplar



 

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Istênio Peixe

 

Istênio Peixe: um construtor de pontes e o milagre.

Carlos Alberto dos Santos Dutra









Havia há pouco saído do quartel, num tempo em que ter 19 anos representava apenas o prolongamento da infância até a juventude inocente chegar vinda de um tempo que já não existe mais. E o menino estava lá ouvindo aquele senhor de sorriso largo e uma vasta cabeleira e bigodes viçosos que conversava com seu pai. Tudo combinado e lá se foi o rapaz, de carteira assinada orgulhoso das letras garrafais inscrita em sua primeira carteira de trabalho. Era agora um trabalhador, um TUCO, como se dizia, sob os cuidados da Rede Ferroviária Federal-RFFSA, segmento da Viação Férrea do Rio Grande do Sul.

Seu mundo agora aninhava-se nos carrinhos da REDE, que eram dormitórios e cozinhas, oficinas e escritórios, seguindo o par de trilhos, vagões puxados por locomotivas na direção de caminhos ainda por eles desconhecidos. Todos sob o comando de um homem chamado Istênio Peixe, verdadeiro astro-rei que se notabilizou por apontar o caminho a tantos jovens que experimentaram a primeira e maior façanha laboral de suas vidas. Com braço firme e sem nunca deixar que a tristeza lhe desacorçoasse, com um sorriso que lhe iluminava o rosto, cativava a todos a sua volta. Desde comandados até os que lhe eram desconhecidos que logo a ele se afeiçoavam.

Essa é a lembrança que tenho deste senhor alinhado e elegante, que falava franco e tinha palavras que alcançavam longe. Esteve lado a lado com seus operários ao longo dos trilhos do trem: Cacequi a fora, Rio Grande a dentro, comandando a valorosa turma de montagem de pontes por muitos anos, até se aposentar.

Sim. Foi o período que passamos juntos ao longo das linhas do trem, aquele que guardo entre as melhores recordações, à semelhança dos feitos do outro irmão de seu Istênio, o meu tio Henrique Peixe, cujo rastro suplanta o tempo e a distância se aninha sempre nas dobras do coração.

E lá se foram aqueles jovens sonhadores em direção a cidade de Rio Grande, passando por Azevedo Sodré, São Gabriel, Vacacaí, Suspiro, Bagé, Candiota, Pedro Osório, Capão do Leão e Pelotas, em busca de experiência e realizações que acabaram por marcar suas vidas.

São lembranças que, agora, no momento da partida deste nosso pai Istênio, que foi mais que um chefe ou patrão, deixam um rastro de saudade e venturosas recordações. E em todas elas este senhor se apresenta com o rosto cheio de brilho, olhar profundo e gestos solidários; sempre disposto, animando os companheiros naquele duro e arriscado trabalho que praticavam.

Com o coração apertado, porém, sem nunca demonstrar dúvida, era o primeiro a incentivar aqueles trabalhadores vendo-os correr sobre o arco de uma ponte de dez metros de altura tendo o rio abaixo como chão, imprimindo-lhes confiança e coragem, o que lhe conferia orgulho pelo que fazia.

O dia amanhecera chuvoso na cidade de Pedro Osorio e nossa missão ali era trocar dois bueiros. A turma já estava acostumada àquele serviço, mas sempre o fazia com cautela em face do perigo que representava. Depois de dois dias de espera, a chuva passou, e eis que ordem era para levar um dos bueiros sobre o truque e o trole.

A manhã muito cedo acolheu a turma toda equipada com suas capas plásticas amarelas. O trabalho naquele dia estava sob o comando do senhor Istênio Peixe e o senhor Daniel Franckini. Pesando mais de 9 mil quilos o bueiro era empurrado à força pelos trabalhadores. Ao som de iup, rip, , a estrutura ia avançando em direção ao local da troca.

Quando o sol finalmente mostrou-se inteiro, seus raios refletiram majestosos sobre o alumínio da ponte, num brilho por demais contagiante. Estávamos em uma curva e os frisos da roda do trole ringiam e choravam, enquanto a turma empurrava mais e mais. A todo momento seu Istênio não cessava de animar os trabalhadores contando piadas e palavras acaloradas.

Na ocasião, olhando para os transeuntes da cidade que acompanhavam o esforço dos rapazes, sorrindo seu Istênio dizia: --Vejam como sofre um coração que nada sente. Os garotos sorriam e a turma continuava sua missão. Era como se aquelas palavras ditas pelo mestre tivessem o dom de acariciar a alma restabelecendo-lhes as forças.

Atravessamos uma ponte sobre o rio Piratini. Os trilhos eram paralelos a uma rua que dava acesso à cidade, unindo-a ao local chamado Serrito. Mais alguns passos e lá estava o velho bueiro sobre uma pilha de dormentes tramados que chamávamos de fogueira. Não era muito alto, mais ou menos seis metros. Na parte de baixo, uma empresa fazia os pilares de concreto.

Logo começamos a colocar os dormentes sobre os trilhos para, à medida que chegasse ao nível do trole, o bueiro, que estava encima, fosse gradativamente baixado. Os macacos hidráulicos começaram a ser acionados. Tão logo isso aconteceu meti-me para baixo do bueiro, ajudando na colocação dos dormentes. Seu Istênio, precavido, logo avisou que era perigoso e, então, retirei-me dali para alguem mais prático assumir no meu lugar.

O bueiro estava a menos de metro dos trilhos quando o imprevisível aconteceu. Encontravam-se em uma das cabeceiras da ponte: seu Istênio, eu, o Nico, o Pedro, o Adão e João. Ao lado do bueiro estavam o Aracy, o Mauro e o seu Gil. Na outra cabeceira da ponte estava o Badico e os demais trabalhadores à espera de que o nosso lado fosse abaixando para nivelar o bueiro. De súbito, um dos macacos hidráulicos, à minha frente, cedeu: --eu vi o espaço ir aumentando e do lado oposto o bueiro ir cedendo.

Foi tudo muito rápido. Ouvi o senhor Istênio gritar: --Cuidado que ele se vai! Virei-me de costas e ouvi outros gritos, e depois um grande estalo. Em questão de segundos o bueiro estava caído lá embaixo. Corremos os olhos a procura dos companheiros Aracy, Gil, Mauro que estavam justamente do lado em que o bueiro caiu. Mauro disse: --Estou bem. Seu Istênio perguntou: --E o Aracy? Tão logo falou, o olhar sério do Aracy surgiu por trás dos dormentes. Pensamos logo: machucou-se. Não nos enganamos, havia raspado as costas ao chocar-se com um dormente. O Gil também surgiu sorrindo.

--Milagre! Um falou. O enorme bueiro havia despencado lá de cima, rodeado de pessoas a sua volta e todos estavam salvos. Seu Istênio sentou-se em um dormente, levantou a perna da calça e apalpando o joelho falou: --Eu tentei firmá-lo; seria impossível. Felizmente ele bateu de leve aqui. Não era grave.

Todos após o momento de terror passar, ao olharem para baixo, vendo a capa amarela de um trabalhador que ainda permanecia presa entre os dormentes que despencaram, suspiraram aliviados. Sim, um milagre havia acontecido sobre aqueles escombros. E todos sorriram de satisfação, agradecidos.

Essas e outras histórias os amigos de seu Istênio que nos deixou hoje aos 86 anos, podem lembrar. Da mesma forma seus filhos, esposa, netos e demais familiares podem sentir orgulho do pai, esposo, avô, e sogro que tiveram. Sangue espanhol que trazia no temperamento e gestos do saudoso guarda-chaves Ataliba e da matriarca Lindolfa, desde os tempos e recuerdos de Entroncamento, o sentimento é de gratidão pelos ensinamentos. Descanse em paz, amigo, Istênio Peixe, agora construtor de pontes no Céu.

Brasilândia/MS, 14 de abril de 2022










A frente: Mauro, Antônio e Badico. Atrás: Istênio, Carlito e outros. No alto: Zé e Gil. Turma de Pontes que trabalhou na localidade de Tanque do Guassu-Boi, foto de abril de 1976.


Mauro, Renê, Carlito (na máquina de escrever), Jesus, Lair, e Breno. Turma de Pontes que trabalharam na localidade de Tanque do Guassu-Boi, foto de abril de 1976.


Aracy e Carlito (ao centro) e demais colegas da Turma de Pontes comandaas pelo Sr. Istênio Peixe. Localidade do Tanque do Guassu-Boi, foto de abril de 1976.