quarta-feira, 5 de agosto de 2020



Dona Jupira, a margem e o centro da Vida
Carlos Alberto dos Santos Dutra


Existem pessoas que passam ao nosso lado e é como se elas fossem invisíveis. O corre-corre do dia a dia e a luta pela sobrevivência transformou a todos em autômatos, cibernéticos, digitais. Na linguagem atual, movidos pelas chamadas redes sociais (que de social pouco têm), são impessoais, plásticos, virtuais.

Pois esses amigos entram em nossas vidas por uma telinha brilhante da mesma forma que saem. Adicionamos e excluímos amigos sem a menor reflexão e aproximação com o ser humano que está do outro lado do visor de cristal.

E como as pessoas que se encontram a nossa volta são de carne e osso, nem sempre esbeltas, cheias de plumas e sorriso, a tendência é desconsiderá-las, afastá-las deste nosso mundo ideal criado e alimentado pelo imaginário coletivo satélite global; porque imperfeitas e fora do padrão imposto pelo  mercado.

Mesmo assim, esses seres humanos desprezados e alijados existem, e resistem. E, pouco importando o que pensam a respeito deles seguem adiante. Traçam seu rumo, sua história, geralmente cabisbaixos que nem percebemos. Vivem em bairros distantes na periferia e suas residências se confunde com o que são, pensam ou fazem.

As grandes cidades os toleram em suas comunidades, eufemismo de favelas; têm vida própria. Os que vivem em pequenas cidades residem muitas vezes a poucos metros de cada um de nós, vivem praticamente no centro da cidade; impossível não vê-los, não sentir seu cheiro, tocá-los.

O caso da dona Jupira pode ser assim comparado. Em que pese à anomia social que a condição dos que assim vivem é entendida e raramente acolhida, ela foi uma avis rara que sobreviveu. Passou por nós e, descuidados que somos, desapareceu.

De aparência frágil, fez-se forte para dobrar a vida quando ela não lhe foi nenhum pouco favorável. Foi assim desde o dia 26 de abril de 1928 quando nasceu, lá num cantinho da cidade de Tupã/SP, quando seus pais João David Bonifácio e Adelina Amélia de Jesus festejaram sua chegada erguendo os braços para os céus em sinal de acolhida e alegria.

Ainda muito jovem chegou a Brasilândia juntamente com seus pais, logo, entretanto, constituindo sua família e tocando em frente a sua vida que recém iniciava. Por muitos anos residiu na Rua Elviro Mancini com sua família, a poucas quadras do Paço Municipal da cidade.

Mesmo depois de viúva sustentou a família com o trabalho e suor de seu rosto. Fez das tripas coração para alimentar e educar os 22 filhos que a natureza plantou no seu ventre e ainda outros que ajudou a criar, adotando-os como filhos. Depois, passou a criar os netos, acolhendo a todos com amor e afeto.

Por essa sua proeza, no ano de 1993, a Prefeitura Municipal de Brasilândia brindou-a com o prêmio da mãe com o maior número de filhos da cidade, quando ela foi homenageada através da Secretaria de Promoção Social, numa parceria com o Rotary Club e o Banco do Brasil locais, com a doação de seis mil cruzeiros reais, moeda da época.

No plano laboral, dona Jupira Amélia de Souza foi uma das mulheres pioneiras na atividade de catadora de papel e material reciclável em Brasilândia. Muito antes do surgimento da ASSOBRAA era possível observar no pequeno quintal de sua casa, montanhas de latinhas, papéis, vidros e plásticos, sendo pacientemente separados pela aquela senhora cujos anos iam consumindo.

Depois de contrair doença a partir de uma ferida na perna que não cicatrizava, queixou-se a este escrevinhador em 2014, não podendo mais percorrer as ruas e o lixão da cidade para catar o material reciclável, passava as tardes na residência para onde fora levada, contando histórias aos netos e a quem se dispusesse ouvi-la.

Os vizinhos mais próximos da Rua Euzébio Pedroso, onde viveu seus últimos dias e veio a falecer no dia 24 de outubro de 2016, de quando em vez, ainda há quem se lembre daquela senhorinha de estatura pequena, levemente curvada que nunca se queixou da vida. E cujo rosto iluminava esperança e vida àqueles que a contemplavam...

Brasilândia/MS, 5 de agosto de 2020.



domingo, 2 de agosto de 2020



Um olhar, uma fotografia, uma lembrança
Carlos Alberto dos Santos Dutra


Escrever sobre o passado a partir da memória impõe ao escritor um duplo desafio. O de se manter fiel à história e ao mesmo tempo abrir espaço para a sua interpretação, no mais das vezes realizada pelos próprios personagens e protagonistas que a construíram.

E lá estão as lembranças plasmadas em contos, causos e histórias eivadas de significados às vezes incompreensíveis ao visitante e pesquisador desavisado dos costumes e signos locais.

Entre o apanhado de recortes de jornais, entrevistas e depoimentos espontâneos dos cidadãos -- muitas vezes sem consciência do alcance desta sua contribuição para a posteridade --, estão também as fotografias antigas.

Ah, as fotografias... 

E elas falam. Às vezes em silêncio, estanques, plasmando no tempo e no espaço aquele flash de vida e movimento do passado que aconteceu e perenizou na memória. Outras vezes, quando provocadas, dialogam e respondem às perguntas certas que fazemos.

A fotografia em apreço é dos anos 1970 e originalmente está em preto e branco. Graças ao recurso da tecnologia, damos-lhe cores e eis que a vida experimentada naquele momento salta do papel e invade o coração do observador.

Pedindo licença poética aos personagens, alguns deles já saudosos, o contexto vai tomando forma e invadindo o ambiente ruidoso de um evento estudantil festivo que envolve a todos, revelando sua beleza.

A cerimônia acontece na Escola Municipal Arthur Höffig e reúne professores, alunos, pais, mães, avós e comunidade. Também lá estão as autoridades municipais da época, do Executivo e do Legislativo local.

O município que vive seu primeiro lustro de emancipação político administrativa faz daquele evento o momento mais importante de sua vida contagiando o ambiente e o coração dos presentes.

E não era para menos, naquele dia a escola vive, salvo engano, sua primeira formatura de 4ª série, onde o rosto daqueles jovens e seus primeiros madrigais sorri para o futuro que desponta a sua frente transformando o evento num verdadeiro salão de festas para o povoado que emergia.

Entre os formandos agraciados com os louros da merecida vitória, dois olhinhos brilhantes de uma jovem, de apenas 13 anos de idade, naquele dia pestaneja de alegria e contentamento. 

Diante de si estava, entre outros, aquele a quem a menina mais amava: seu pai. Joaquim Cândido da Silva era o seu nome. 

Figura pública de destaque na condição de vice-prefeito (de Julião de Lima Maia) também deixou sua marca na história como vereador na segunda legislatura da Câmara Municipal de Brasilândia.

No plano pessoal, sempre acompanhou a caminhada da filha, desde seus primeiros passos até a educação escolar. E esse era o maior motivo de sua felicidade: estar ao seu lado. Tinha tudo para sentir orgulho naquele momento.

A objetiva atenta do fotógrafo Abel Oliveira, o primeiro desta profissão em Brasilândia, eterniza aquele momento de beleza e sensibilidade raras fazendo o registro da cena ontológica. E amplia seu olhar para outras duas personagens históricas da municipalidade.

Ao lado do pai da formanda Áurea Cândido da Silva, lá está o 4º prefeito de Brasilândia, Julião de Lima Maia e o jovem vereador Adilson Alves da Silva que viria ser prefeito sete anos depois.

O quadro está completo e a fotografia, depois de 44 anos, repousa sobre a mesa da aluna professora que recorda. É como se novamente entrasse naquela escola e revisitasse uma a uma as carteiras de madeira simples que alimentaram o saber de cada um dos colegas de turma que por ali passou.

As recordações rodopiam ao sabor da nostalgia do vento. Cheias de gratidão às prestimosas Glorinha Leal e Profª. Maria José, pelo esmero e cuidado com o cabelo e a leve maquiagem que adornou a aluna.

E o cartaz ainda resiste, cheio de saudade, em homenagem ao Dia dos Pais rabiscado em 10 de agosto de 2014 pela mesma menina que num dia especial de sua vida recebeu da primeira escola de sua cidade a chave do conhecimento para conquistar o sucesso e a felicidade.

Parabéns aluna Áurea Cândido da Silva. Obrigada professora Áurea Cândido da Silva por contribuir para o resgate da história e memória da Cidade Esperança.















Brasilândia/MS, 2 de agosto de 2020.

sábado, 1 de agosto de 2020



Domingos Cristóvão Ribeiro, adeus.
Carlos Alberto dos Santos Dutra

Vereador Domingos Cristóvão Ribeiro, ao lado do fundador de Brasilândia Arthur Höffig e esposa, faz o pronunciamento de abertura durante a inauguração do Salão Paroquial Cristo Bom Pastor, no dia 16 de abril de 1978 (Foto: RAFI,1978)  





















Por ocasião do aniversário de seu Domingão ocorrido há menos de dois meses tive a oportunidade de homenagear esse cidadão brasilandense, ex-vereador e comerciante pioneiro de Brasilândia. 

Dizia eu na ocasião que era uma alegria poder homenageá-lo em vida. Porém, nunca é o bastante, quando a partida definitiva chega.

Pensamos no íntimo que poderíamos ter feito mais. Visitá-lo, abraça-lo, felicitá-lo e, por que não, pedir-lhe desculpas. 

Pelas vezes que não fizemos o bastante para melhor compreendê-lo e ter partilhado de seus sonhos, às vezes, pouco entendido pelos que se encontravam a sua volta.

Mas o tempo passou...

E para nosso consolo, podemos dizer que ele fez também grandes realizações; e por isso foi amado e respeitado por suas ideias e ideais. 

Cultivou amizades e alguns dissabores também, como parte da trajetória inevitável de todos nós. 

E deixou um rastro de lembranças e realizações que dificilmente poderão ser apagados da história desta cidade.

Nesta hora em que descansa na campa da eternidade, um leve aceno para a comunidade, suas crenças e esperanças, de quem se despede do continente. 

E contempla a estrada percorrida, as pedras que removeu do caminho, os jardins que plantou, a família que construiu...

Agora, por derradeiro, em espírito, sobrevoa o verde anil da terra e o país que o acolheu; e volta para sua Lisboa natal...

Transcende, desprende-se de si mesmo para ir ao encontro de seu destino.

E lá está a esposa, dona Ignez, de braços abertos, espera o noivo com quem um dia se casou.

Descanse em paz, amigo Domingão.

Brasilândia, 1º de agosto de 2020.