terça-feira, 20 de dezembro de 2022

 

Can-rê e o milagre do Natal

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

 







Experimentar o Natal vai além das palavras. Exige gestos. Mais que isso, exige emoção. E isso só se consegue com o coração e o auxílio das mãos, do corpo, dos nossos bens e da nossa vontade e determinação.

Foi o que aconteceu naquela noite, antevéspera de Natal. As batidas insistentes no portão fizeram o velho homem saltar da cama. Quem seria àquelas horas quando a noite já ia alta? –Quem é, ele pergunta.

Do outro lado do muro, lá fora, no desvão do mundo, em meio a escuridão, um vulto balbuciou duas palavras: --Can-rê

O coração daquele velho deu um salto dentro do peito. Era como se uma flecha vinda lá do céu o fulminasse a alma. Um misto de alegria e angustia, de pouco ter feito, e o muito que ainda precisava fazer. 

A vontade era correr ao seu encontro, abraçá-lo, olhar nos seus olhos e dizer:
--Sede bem-vindo, você é o nosso melhor presente de Natal.

Mas a feridas eram tantas, a cor e o cheiro da exclusão o afastavam de nós. Algo como uma doença, um estigma, um rio de lágrimas.

Duro tempo de exílio, condenado, aprisionado, considerado um bandido, esquecido, alongado. Não pelo cerrado onde fora criado, mas entre grades, selas e sevicias.

A luz, por um momento, permite ao velho aproximar-se do jovem, o suficiente para reparar o seu rosto e acariciar-lhe a fronte. Aquele que ainda se parece um menino, segurando seu animal de estimação... gesto que os anos e a selvageria do mundo há tempo o roubou de nós.

A aldeia Anodi, muito cedo aprendeu a suportar a dor e a perda de seus filhos. Um a um, foram sendo consumidos pela ganância e a violência de aganíe, os homens maus.

Mas nada tiraria a alegria daquele velho ao contemplar aquele presente de Natal na porta de sua casa.  Tal qual a parábola do filho pródigo, a vontade era de cobri-lo de beijos e dar-lhe as melhores roupas, dar uma festa em sua homenagem:  -- Pois ele estava perdido e voltou a vida. Motivo maior para festejar o Natal, não existia.

E foi assim, em meio à admiração do encontro e a felicidade de poder fazer algo de útil naquele Natal, que Can-rê, depois de alimentado e vestido da melhor roupa, foi conduzido até sua aldeia, sua casa, sua família... 

Sua família... não. No percurso ele perguntava: --Cadê meu pai, Eduardinho? E, depois de um breve silêncio, como que buscando na memória, ele mesmo respondia: --Acabou. E de novo perguntava: --Cadê minha mãe, Hanto-grê?: --Acabou. E assim foi enumerando seus parentes um a um: todos mortos. 

Voltar para casa e não encontrar mais a família é uma das maiores dores que um filho, irmão ou pai pode suportar...

O carro adentra mansamente na aldeia Anodi muito cedo, e aos poucos vai se percebendo por entre as árvores e as casas, a figura de alguns homens, que logo identificam a chegada do antigo morador. Depois de um lustro recluso do convívio social, sai da prisão e vai para os braços do que restou de seu povo: seus primos, seus tios, seus amigos.

Mesmo que por apenas cinco dias, a licença permitida pela Justiça, o menino Jesus, naquele ano de 2015, com o rosto de Can-rê, por certo, passou por ali.

 

Fonte: Adaptado de DUTRA, C.A.S. Diálogos Impertinentes e crônicas de adeus. Brasilândia, Edição do Autor, 2020, pág. 37. Também em Quando eu me chamar saudade, Brasilândia, Edição do Autor, 2021, pág. 7. Fotos: Can-rê (João Carlos de Souza) na Barranca do Rio Paraná no ano de 1986 e na Aldeia Anodi Ofaié no ano de 2015 (Fotografado pelo Autor). O indígena Ofaié Can-rê faleceu na prisão em Bataguassu/MS em setembro de 2019, um mês após completar 41 anos de idade.




   

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