O rugido do leão na
montanha silenciou.
Carlos Alberto dos
Santos Dutra
O vento sopra forte
por entre as pedras do vale. No pico mais alto de um daqueles montes, uma
silhueta contrasta com o brilho do sol. A melena farta, esvoaçante que ostenta,
confere-lhe poder e força. Com o tronco levemente empinado para frente e a
cabeça altiva, lança um olhar de distância sobre aquela existência. Sentia-se
realizado e quem o via assim, satisfeito, tinha certeza disso.
Aquele leão, desde a
juventude, construiu sua vida buscando sempre o melhor para si e para os seus, edificando
corpo e mente com o que de melhor dispunha a sua volta. As melhores pastagens para o
repouso de seus pés; as melhores aguadas para matar a sede do bando; o refrigério das
matas para o conforto do coração; as melhores lições recolhidas de seus pais, motivo
de altivez e satisfação. Ele era um pouco de tudo do que melhor existia naquelas plagas.
Sua companheira e os filhos, em quantidade e brilho semelhante às estrelas do céu, formavam a família perfeita: tudo
fazia com que se sentisse ainda mais feliz, e poder estufar o peito, orgulhoso
do que havia conquistado e construído. Educou cada um de seus rebentos com a força e sabedoria de um mestre, preparando-os para a guerra que é o viver: enfrentar os inimigos de longe, e conquistar amigos de perto, que um dia lhe saberão ser gratos e fiéis.
Até aquela tarde quando ele
decidiu descer a montanha deixando para trás aquele vale encantado. O trem do tempo é o
senhor da história. E sua estação havia chegado ao destino. A juba, antes brilhante, já
não lhe parecia tão viçosa; as patas e suas garras poderosas, que antes
derrubavam grandes presas, hoje, desgastadas e quebradiças, só lhe davam motivos
de tristeza.
Ah, e a dor de não
mais poder correr pelos campos livre e com saúde. A vista já cansada, não conseguia mais
discernir o olhar de sua amada, dedicada, sempre ao lado, e dos filhos, aflitos vendo o pai
declinando as forças. Sobretudo naqueles dias em que foi preciso estender-lhe
as mãos e carrega-lo no colo. Momento que os pais se tornam filhos e os
filhos se tornam os pais de seus pais.
Triste ver a
exuberância daquela rocha que aos poucos foi revelando rachaduras, desfazendo-se
em pedaços; lascas de dor, nacos do coração que dilacera o bem querer da
esposa, dos filhos e dos amigos. Ver aquele imponente carvalho, assim, numa
cama de hospital era o quadro que ninguém imaginaria ter ali ele chegado.
Pelos corredores, ao
longe, ainda era possível ouvir o seu grito de dor e contrariedade. Tal qual o
rugido de um leão ferido, lá estava o homem e sua força descomunal de coragem e
fé, aos poucos sendo consumido pelo tempo. Ora, o tempo. As chuvas que caíram, outrora na fazenda Pinheiro,
os milímetros cuidadosamente medidos pelo pluviômetro e anotados, agora são pingos do céu que
refrescam sua boca, sedenta de vida, que quer vida e quer viver.
Gotas de orvalho como
os daquela tarde fria e chuvosa de sua juventude, quando os campos se abriram
para beber na fonte a luz de maior brilho. E o velho tata, papai, feito um leão dourados, não mais rugiu de dor dando
adeus ao sofrimento. E lá se viu ele, criança outra vez, correndo livre, sem
amarras, sem equipo, sem agulhas, sondas e medicamentos que lhe marcavam o
corpo e a alma. Resposta que só o céu poderia lhe dar em retribuição ao respeito e
piedade que sempre devotou aos mais pobres e humildes.
Depois de uma longa
jornada, o nonagenário olhou a sua volta e viu tudo, por alguns momentos,
com toda clareza. Foi quando sentiu no peito uma paz e um orgulho sereno, nunca experimentado, que
lhe tomou as entranhas. Nostalgia, quiçá, para quem havia vencido mais uma
batalha, das tantas que empreendeu. Abriu os braços, fechou os olhos e deixou que corressem para
o seu colo um a um os filhos queridos, como um verdadeiro pai, esposo, avô, bisavô e
uma legião de amigos.
E eles foram
chegando, um a um, sorridentes, para dedicar-lhe em vida a homenagem que ele era
merecedor; enaltecer suas obras de educador e o seu jeito peculiar de ser. Naquela tarde,
enquanto os pingos da chuva lhe acariciavam o rosto e a chapada dos montes com sua dança, ele
sorriu. Todos a sua volta, então, foram tomados de um sentimento de alegria e
gratidão filial.
E postando-se ao seu redor, o envolveram num abraço fraterno com seus terços e preces, novenas e bênçãos, invocação
e cânticos, dirigidos à Deus e à Virgem, aos quais ele sempre confiou e devotou
sua vida como um dedicado filho.
Depois de viver quase um século, aos 93 anos de idade, o brasilandense Raimundo Pedro de Souza se despediu da família e dos amigos. Afrouxou e desprendeu os laços de amizade que nutriu aquele cidadão que vivia na Cidade Esperança desde 1955 e aqui construiu a história; história que seus filhos haverão de ter orgulho de contar.
Pelos vales, campos e matas, o vigoroso rugido do leão na montanha ainda será possível ouvi-lo por um bom par de anos, fazendo ecoar a voz de um nordestino valente guerreiro, digno e honrado cidadão vindo lá do Ceará, região do Crato, que nasceu no dia 2 de agosto de 1928 e hoje se despediu de todos nós. Rugido e voz que venceram distâncias e hoje silenciaram; permanecem embaçadas pelas lágrimas e a saudade que machuca muito, muitos corações.
Brasilândia/MS, 3 de
fevereiro de 2022.
Sobre seu Raimundo: Cf. https://carlitodutra.blogspot.com/2021/08/raimundopedro-de-souza-93-anos-o-homem.html
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