quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

 

O rugido do leão na montanha silenciou.

Carlos Alberto dos Santos Dutra











O vento sopra forte por entre as pedras do vale. No pico mais alto de um daqueles montes, uma silhueta contrasta com o brilho do sol. A melena farta, esvoaçante que ostenta, confere-lhe poder e força. Com o tronco levemente empinado para frente e a cabeça altiva, lança um olhar de distância sobre aquela existência. Sentia-se realizado e quem o via assim, satisfeito, tinha certeza disso.

Aquele leão, desde a juventude, construiu sua vida buscando sempre o melhor para si e para os seus, edificando corpo e mente com o que de melhor dispunha a sua volta. As melhores pastagens para o repouso de seus pés; as melhores aguadas para matar a sede do bando; o refrigério das matas para o conforto do coração; as melhores lições recolhidas de seus pais, motivo de altivez e satisfação. Ele era um pouco de tudo do que melhor existia naquelas plagas.

Sua companheira e os filhos, em quantidade e brilho semelhante às estrelas do céu, formavam a família perfeita: tudo fazia com que se sentisse ainda mais feliz, e poder estufar o peito, orgulhoso do que havia conquistado e construído. Educou cada um de seus rebentos com a força e sabedoria de um mestre, preparando-os para a guerra que é o viver: enfrentar os inimigos de longe, e conquistar amigos de perto, que um dia lhe saberão ser gratos e fiéis.

Até aquela tarde quando ele decidiu descer a montanha deixando para trás aquele vale encantado. O trem do tempo é o senhor da história. E sua estação havia chegado ao destino. A juba, antes brilhante, já não lhe parecia tão viçosa; as patas e suas garras poderosas, que antes derrubavam grandes presas, hoje, desgastadas e quebradiças, só lhe davam motivos de tristeza.

Ah, e a dor de não mais poder correr pelos campos livre e com saúde. A vista já cansada, não conseguia mais discernir o olhar de sua amada, dedicada, sempre ao lado, e dos filhos, aflitos vendo o pai declinando as forças. Sobretudo naqueles dias em que foi preciso estender-lhe as mãos e carrega-lo no colo. Momento que os pais se tornam filhos e os filhos se tornam os pais de seus pais.

Triste ver a exuberância daquela rocha que aos poucos foi revelando rachaduras, desfazendo-se em pedaços; lascas de dor, nacos do coração que dilacera o bem querer da esposa, dos filhos e dos amigos. Ver aquele imponente carvalho, assim, numa cama de hospital era o quadro que ninguém imaginaria ter ali ele chegado.

Pelos corredores, ao longe, ainda era possível ouvir o seu grito de dor e contrariedade. Tal qual o rugido de um leão ferido, lá estava o homem e sua força descomunal de coragem e fé, aos poucos sendo consumido pelo tempo. Ora, o tempo. As chuvas que caíram, outrora na fazenda Pinheiro, os milímetros cuidadosamente medidos pelo pluviômetro e anotados, agora são pingos do céu que refrescam sua boca, sedenta de vida, que quer vida e quer viver.

Gotas de orvalho como os daquela tarde fria e chuvosa de sua juventude, quando os campos se abriram para beber na fonte a luz de maior brilho. E o velho tata, papai, feito um leão dourados, não mais rugiu de dor dando adeus ao sofrimento. E lá se viu ele, criança outra vez, correndo livre, sem amarras, sem equipo, sem agulhas, sondas e medicamentos que lhe marcavam o corpo e a alma. Resposta que só o céu poderia lhe dar em retribuição ao respeito e piedade que sempre devotou aos mais pobres e humildes.

Depois de uma longa jornada, o nonagenário olhou a sua volta e viu tudo, por alguns momentos, com toda clareza. Foi quando sentiu no peito uma paz e um orgulho sereno, nunca experimentado, que lhe tomou as entranhas. Nostalgia, quiçá, para quem havia vencido mais uma batalha, das tantas que empreendeu. Abriu os braços, fechou os olhos e deixou que corressem para o seu colo um a um os filhos queridos, como um verdadeiro pai, esposo, avô, bisavô e uma legião de amigos.

E eles foram chegando, um a um, sorridentes, para dedicar-lhe em vida a homenagem que ele era merecedor; enaltecer suas obras de educador e o seu jeito peculiar de ser. Naquela tarde, enquanto os pingos da chuva lhe acariciavam o rosto e a chapada dos montes com sua dança, ele sorriu. Todos a sua volta, então, foram tomados de um sentimento de alegria e gratidão filial.

E postando-se ao seu redor, o envolveram num abraço fraterno com seus terços e preces, novenas e bênçãos, invocação e cânticos, dirigidos à Deus e à Virgem, aos quais ele sempre confiou e devotou sua vida como um dedicado filho.

Depois de viver quase um século, aos 93 anos de idade, o brasilandense Raimundo Pedro de Souza se despediu da família e dos amigos. Afrouxou e desprendeu os laços de amizade que nutriu aquele  cidadão que vivia na Cidade Esperança desde 1955 e aqui construiu a história; história que seus filhos haverão de ter orgulho de contar.

Pelos vales, campos e matas, o vigoroso rugido do leão na montanha ainda será possível ouvi-lo por um bom par de anos, fazendo ecoar a voz de um nordestino valente guerreiro, digno e honrado cidadão vindo lá do Ceará, região do Crato, que nasceu no dia 2 de agosto de 1928 e hoje se despediu de todos nós. Rugido e voz que venceram distâncias e hoje silenciaram; permanecem embaçadas pelas lágrimas e a saudade que machuca muito, muitos corações.


Brasilândia/MS, 3 de fevereiro de 2022.

 

Sobre seu Raimundo: Cf. https://carlitodutra.blogspot.com/2021/08/raimundopedro-de-souza-93-anos-o-homem.html

 

 

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