Fazenda Annoni há 36 anos: a violência e o sonho de liberdade
Corria o ano de 1986 e o jovem estudante de teologia que esteve lá no calor dos acontecimentos, recorda o tempo em que sonhar era possível e empunhar bandeiras era uma realidade urgente e necessária. Escrevia o filho da PUC-RS, na época, ao combativo jornal Enfoque, de Dourados/MS, sob os auspícios da militante jornalista Damarci Olivi as linhas pretéritas que seguem, mas que ainda se apresentam muito vivas no coração da história:
A prática da violência
contra o homem do campo nos dias de hoje chegou a níveis insustentáveis. Como
se não bastasse às milícias particulares e as entidades (PUR, UDR, TFP),
militarmente equipadas para a repressão pública, agora é a vez do aparato
policial do Estado, que intensificam violentas e desenfreadas ações.
As imagens que via global
foram assistidas por milhões de brasileiros, de trabalhadores rurais sendo
agredidos e barbaramente espancados por soldados e suas baionetas caladas sensibilizaram
e estarreceram grande parte da opinião pública.
Cenas que em muito lembraram
os auges tempos da ditadura militar neste país: homens, mulheres, inclusive
algumas grávidas, e crianças sendo vergonhosamente perseguidas e pisoteadas.
Indignação maior ainda quando das declarações do ministro Paulo Brossard
(conferindo plenos poderes às Polícias Estaduais na repressão às ocupações) e
do ministro Dante de Oliveira (acusando o Partido dos Trabalhadores de inconsequente
mentor daquela situação).
A Coordenadoria Nacional do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, na época, enviou telex ao
ministro da Reforma Agrária e da Justiça dizendo o seguinte: Excelentíssimo
Sr. Dante de Oliveira. Não fujas a responsabilidade, senhor ministro. Não minta
a opinião pública informando que nada podes fazer em favor dos trabalhadores
rurais sem-terra da Fazenda Annoni. O senhor está se esquecendo de que
um processo de Reforma Agrária decente, verdadeiro, vai além do assentamento
dos trabalhadores sem-terra, vai até a assistência técnica, recursos, insumos e
infraestrutura.
Portanto, o senhor também é
culpado pela agressão da polícia militar do Rio Grande do Sul contra os
acampados da Fazenda Annoni. Agressão bárbara que deixou 50 feridos, três dos
quais estão hospitalizados. Se o senhor não sabe, lembramos que as metas do
Plano Nacional de Reforma Agrária para o Rio Grande do Sul, para 1986
prevê o assentamento de 3.800 famílias. Até agora nenhuma foi assentada.
Portanto é hora de deixar a demagogia de lado e se por a trabalhar pela Reforma
Agrária. São Paulo, 30 de setembro de 1986.
Outro telex foi enviado ao Dr.
Paulo Brossard de Souza Pinto, ministro da Justiça, dizendo o seguinte: A
Coordenadoria Nacional do MTRST responsabiliza-o de pressionar e incitar o governo
do Estado do Rio Grande do Sul a ordenar a Polícia Militara agredir
covardemente os Sem Terra acampados na Fazenda Annoni. Portanto, o responsabilizamos
pelo ferimento em mais de 50 conterrâneos seus, três dos quais estão
hospitalizado em Passo Fundo-RS devido a barbárie da agressão policial.
O telex continua: Queremos
lembrá-lo que a Lei garante a qualquer cidadão o direito de ir e vir. O senhor,
incrível, - como ministro da Justiça - foi o primeiro a violar esse princípio
constitucional ao exigir do governo gaúcho que a Polícia cercasse o
acampamento. O senhor cometeu (agiu) por presunção de que se vá cometer
algum crime. O crime só é crime depois de configurado como tal. Se o
senhor que tanto preza a Lei, por que não bota na cadeia a gente da sua classe,
latifundiários e fazendeiros, que este ano já matou mais de 200 trabalhadores
rurais em todo o país?
Por que tanta impunidade que
envergonha o Brasil no exterior? O senhor ministro ignora
que até o Papa já pediu o fim da violência no campo brasileiro? Por que o
senhor, tão exigente quanto ao cumprimento da lei, não exige do governo um
salário mínimo capaz de atender as necessidades de uma família quanto a
educação, saúde, transporte, habitação, alimentação e lazer, conforme determina
a Constituição brasileira?
Perguntamos por que o
senhor, como ministro da Justiça, não faz cumprir a Lei n° 4.504, de 30.11.84
(Estatuto da Terra), que assegura a todos os brasileiros o acesso à propriedade
da terra, condicionada pela sua função social? Perguntamos por que o senhor,
como ministro da Justiça, não aplica a Lei Delegada n° 4 contra os fazendeiros
que escondem o gado?
O senhor não sabe que é
dever do Estado zelar pelo abastecimento da população? Senhor Paulo Brossard,
gostaríamos de dizer também que seu comportamento em relação aos sem-terra da
Fazenda Annoni não nos surpreende, afinal, os acontecimentos em Leme (SP), são
recentes. Sobre o Leme, o senhor mentiu culpando quem não teve culpa para
acobertar o verdadeiro culpado: o Estado.
E ao mentir, ministro, o
senhor cometeu crime de injúria, calúnia e difamação, imputando culpa em quem
não teve culpa para esconder o culpado do bárbaro assassinato de dois inocentes
trabalhadores. Estamos nos dirigindo ao senhor não para pedir uma solução aos
acampados da Fazenda Annoni. Nós queremos é lhe pedir para que deixe de ser
ministro das leis injustas, ministro dos fazendeiros, ministro do boi gordo,
ministro do capital. Queremos, enfim, que deixe de ser ministro. Agindo assim,
estarás dando a sua maior contribuição para o desenvolvimento de uma sociedade
democrática em nosso país. São Paulo, 30 de setembro de 1986.
A situação dos acampados,
até aquele momento (novembro de 1986), continuava tensa. A ação da polícia na
área imprimia verdadeira ação militar de
guerra, com helicópteros sobrevoando em rasante no acampamento, revistas que
chegam ser humilhantes aos que entravam ou saíam do acampamento, e isolamento
com ostensivas barreiras.
Brasilândia/MS, 03 de
setembro de 2021.
Foto: Facebook/Deputado Marcon, 29.Out.2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário