Carlos Alberto dos Santos Dutra
A recente (2017) decisão da Justiça Federal no Rio de Janeiro que definiu que cultos afro-brasileiros, como umbanda e candomblé, não são religião, e que suas “manifestações religiosas não contêm traços necessários de uma religião”, mexeu com a fé e o sentimento de muita gente.
A notícia trazida por Tiago Chagas informa que a definição aconteceu em resposta a uma ação do Ministério Público Federal (MPF) que pedia a retirada de vídeos de cultos evangélicos que foram considerados intolerantes e discriminatórios contra as práticas religiosas de matriz africana do YouTube.
O juiz responsável, Eugênio Rosa de Araújo, ainda que em primeira instância da 17ª Vara Federal do Rio, entendeu que, para uma crença ser considerada religião, é preciso seguir um texto base – como a Bíblia Sagrada, Torá, ou o Alcorão, por exemplo – e ter uma estrutura hierárquica, além de um deus a ser venerado.
A ação do MPF visava a retirada dos vídeos por considerar que o material continha apologia, incitação, disseminação de discursos de ódio, preconceito, intolerância e discriminação contra os praticantes de umbanda, candomblé e outras religiões afro-brasileiras. “Para se ter uma ideia dos conteúdos, em um dos vídeos, um pastor diz aos presentes que eles podem fechar os terreiros de macumba do bairro”, disse o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jaime Mitropoulos.
Diante da sentença prolatada, impossível ao cidadão não posicionar-se e desvelar o equívoco em que se pautou o douto juiz federal. Para tanto, recorro aos apontamentos da velha Teologia concluída ainda em 1985 lá na PUC em Porto Alegre, quando travava com o especialista em Teologia Ecumênica, meu professor Dr. Moacyr Flores, profícuas e acaloradas discussões.
Pois bem. Esqueceu o ínclito magistrado que uma das atividades mais universais da humanidade, sendo praticada por todas as culturas, desde o início dos tempos, é a religião. E que não há uma definição de religião universalmente aceita, muito mesmo no arcabouço jurídico pátrio.
Alguns aspectos da religião, entretanto, é pacífico para a maioria dos estudiosos. Eles seriam cinco: a Fé, o Culto, a Comunidade, o Credo, e o Código. O primeiro, a Fé, é a parte interna da religião, o sentimento que leva as pessoas a acreditarem, manifestando temor e reverência a um deus supremo. O segundo elemento é o Culto, ou seja, é tudo o que a devoção envolve e que representam a expressão da fé: construções, imagens, altares, rituais, canções sagradas, reuniões, gestuais, louvores.
O terceiro elemento constitutivo da religião seria a Comunidade, ou seja, o aspecto social da religião onde a mesma se insere. São os devotos de uma igreja, templos, casa ou ambiente específico, denominação, corpo eclesial, entre outros. O quarto aspecto da religião é o Credo, que envolve todas as crenças e ideias mantidas pela religião: inclui as escrituras, livros sagrados, entidades espirituais, anjos, demônios, conceitos concernentes ao conteúdo da fé. Por fim o quinto elemento da religião, que seria o Código, ou seja aquilo que envolve o modo como as pessoas se comportam devido à sua crença religiosa: inclui éticas, tabus, ideias sobre valores, pecado, santidade, geralmente contido num livro sagrado ou de norma cogente.
Estava lá, tudo apontadinho no velho e surrado caderno "panamá". E foi assim que por muito tempo entendi que esses cinco elementos é que melhor definiam se uma determinada manifestação religiosa pode ou não ser considerada religião. Também ensinei isso aos meus alunos na disciplina de ensino religioso que tornei-a holística e ministrei por algum tempo. Revendo esses apontamentos em face da notícia que nos chega do Rio, entretanto, percebo que, no caso da Umbanda e Candomblé, essa manifestação do rito afro-brasileiro se enquadra nos cinco quesitos exigidos para ser considerados religiões. Portanto, errou o juiz carioca no argumento de sua sentença.
Bem elucidou o procurador Mitropoulos ao lembrar “a noção de que as religiões de matizes africanas estão ancoradas nos princípios da oralidade, temporalidade, senioridade, na ancestralidade, não necessitando de um texto básico para defini-las”. Aliás, no cômputo geral da classificação das religiões, enquanto o judaísmo, o islamismo e o cristianismo são classificados como religiões proféticas, as manifestações religiosas afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé, são classificadas como religiões espiritualistas. Visão esta plenamente aceitável e corrente na literatura especializada.
Cai por terra, assim o fundamento que embasa a decisão do magistrado carioca, de discriminar as religiões afro-brasileiras dando ganho de causa àqueles que, de posse de tal decisão, só alimentarão a intolerância religiosa que aos poucos vai tomando de assalto a epiderme social deste Brasil plural étnico e religioso. Assiste razão, pois a “perplexidade” do senso comum instaurada, “pois ao invés de conceder a tutela jurisdicional pretendida, optou-se pela definição do que seria religião, negando os diversos diplomas internacionais que tratam da matéria, a Constituição Federal, bem como a Lei 12.288/10”.
Isso sem mencionar a dura luta que o povo imigrante de além mar enfrentou, revestindo-se esse ato praticado pela esfera federal do Brasil, vergonhosa “negação da história e dos fatos sociais acerca da existência das religiões e das perseguições que elas sofreram ao longo da história”. De acordo com o site Justiça em Foco, e G1 Globo, o MPF recorreu da decisão em primeira instância da Justiça Federal para continuar tentando remover os vídeos da plataforma de Streaming do Google.
Nenhum comentário:
Postar um comentário