Um
hotel e o sonho realizado de Maria e José.
Carlos
Alberto dos Santos Dutra
Tudo
que circunda a nossa volta, as coisas, os prédios, as pessoas, tudo têm uma
história, um começo e um fim. Quando chegamos numa cidade – e isso os pioneiros
lembram muito bem – inevitavelmente nosso olhar repousa sobre as ruas, as
casas, e as pessoas que ali vivem.
O
ônibus da empresa Viação São Luiz, imponente para os costumes da época, lá
estava estacionado no centro da cidade. Já era noite e para quem viajara o dia
inteiro vindo de Bodoquena, depois de passar por Dourados, por estradas de
terra, de pedras e muitos buracos, ver o ônibus estacionado em um lugar seguro era
um alivio: enfim a civilização. Assim eu me senti a primeira vez que aqui
cheguei e conheci aquela pousada.
E ela estava lá, a poucos metros, ao alcance da minha mão. Ao lado da minúscula
rodoviária, praticamente uma parada de ônibus, que era atendida por um jovem
senhor chamado Vila, encontrava-se aquele
portal, um verdadeiro convite ao viajante que chegava.
Tratava-se
do Bar e Hotel São José, hospedagem segura, verdadeira sentinela da cidade, no
alto da avenida que lhe emprestava o nome, acolhendo e recebendo gente de
outros nortes que ali buscavam abrigo e hospedagem ao passar pela cidade.
Em meio às instalações simples, porém aconchegantes, lá se encontrava o proprietário e
sua esposa, regendo a orquestra do atendimento daquele estabelecimento. O belo quadro
pintado na parede inteira, refletia o ambiente rústico e bucólico, lembrança da
fazenda Bariri, memória que os proprietários depositaram no lugar que os
recebeu e ali puderam construir sua história.
O
anfitrião da casa, homem de visão e falante, o proprietário logo que ali chegou
recebeu o epíteto Arara, provavelmente advindo da natureza gregária e comunicativa que o caracterizava, fazendo eco no ambiente que o circundava. Herança de povos de muitos lugares que para aqui acorriam,
trouxe na mala, junto dos sonhos, trejeitos e linguagem própria de seus
conterrâneos.
A seu
lado, se encontrava dona Maria. Em silêncio,
mão no queixo, levemente encostada no balcão, admirava a silhueta do esposo na
porta da hospedagem gesticulando e recebendo os viajantes que desciam do ônibus
praticamente na porta de seu estabelecimento. Logo ela sabia que teria de
providenciar o alimento e a bebida; conferir a roupa de cama e acomodar os
pertences daqueles que por ali resolvessem se hospedar.
Na
verdade, ela era a grande mestra daquele lugar. Empunhando com arte o
instrumento que afinava a canção de ali tudo ajeitar, tornava belo e aceitável a
simplicidade que a rodeava. Os filhos e as dificuldades vividas não haviam lhe
tirado o gosto doce das manhãs nem brilho do olhar. Desde menina, a filha de seu João Machado de Oliveira e dona Francisca Correia de Jesus, destacara-se entre os seis irmãos com quem dividiu a infância daquela família feliz.
Nascida
no dia 28 de junho de 1936 em uma pequena cidade conhecida como Sales, no
interior do estado de São Paulo, a jovem Maria
Machado de Freitas revelou desde cedo ser uma mulher de fibra. Nascida na lida, guerreira, forte e ao mesmo tempo delicada, era extremamente zelosa para com os filhos, os netos e todos que a cercavam... relembram os
familiares.
Antes
de completar 18 anos, em meados de 1954, conheceu o grande amor de sua vida. Foi
numa festa que aconteceu na fazenda Santa Helena. A partir daquele dia passaria a dedicar toda sua vida à construção de um lar. Três meses depois, após um rápido
namoro, lá se encontrava sendo conduzida ao altar, quando se uniu em matrimônio com o jovem José Alves de Freitas, no dia 10 de
setembro de 1954.
Assim começa
a história da família Freitas. Um ano
após o casamento nasce a primeira filha que, em homenagem, carregava no nome a
marca daquele casal que lhe deu força e vida: Maria
José. Nos anos seguintes Deus lhes brindara ainda com Marina, Valter, Adauto, Cícero, Marluce, Margarida, Maria Aparecida
e Claudinei, o caçula.
O olhar
de dona Maria se ilumina, enquanto acarinha seus rebentos. Nunca deixou de tirar os olhos de admiração para o esposo, numa
demonstração de amor, afeto e respeito. Desde moço, José Alves de Freitas foi um homem humilde, porém trabalhador.
Filho de seu Gerônimo Alves de Freitas
e dona Olívia Maria de Jesus, era
natural de Tanabi, região próxima a São José do Rio Preto, sendo lá que
se tonou um homem feito.
Desde
que nasceu, no dia 10 de setembro de 1926 viu a família trabalhar em fazendas,
logo aprendendo a profissão de peão do campo, e onde passou a ganhar o sustento em cima
do lombo de um cavalo, nos tentos do laço ao gado alçado, vencendo na vida
por seus próprios méritos e esforço.
Uma
brisa adentra a porta do hotel São José e dona Maria,
passa a mão espalmada sobre a testa, como que saudando em condolências aquele companheiro, que no dia 7
de abril de 2015 faleceu, deixando um rastro de saudade, mas também motivo de orgulho, exemplo
e inspiração para a esposa, os 9 filhos, os 23 netos, os 17 bisnetos e o mais novo tataraneto, sua maior herança.
Despediu-se
do esposo e continuou labutando pela vida, administrando o patrimônio que o
casal construiu desde que chegou a Brasilândia. Por um momento esquece as dores no corpo e viaja no tempo: parece que foi ontem. E recorda quando aquele amigo de seu esposo o convidou para trabalhar numa
fazenda chamada Califórnia. E foi para lá que a família se tocou.
As portas daquela fazenda se abriram para o casal e seus filhos que, com muita fé
e esperança começaram uma nova vida. Trabalharam muito, até conquistar o direito
de ter um cantinho só deles, onde construíram uma casa que chamaram de sua,
lugar onde construíram sua história, tiraram o sustento para a família, permanecendo
neste lugar por 20 anos.
Ah, aqueles tempos na fazenda. Recorda dona Maria, ou dona Yô, como também era conhecida. Atenta à lida com o gado, construção de cercas e currais realizados pelos peões, lá estava ela fazendo a comida para os campeiros, o arroz carreteiro, antes socado no pilão, que alimentava e agradava a todos, num clima de fraternidade e alegria.
Depois, lá se
encontrava ela novamente tratando da criação: galinhas, porcos, cães e bezerros
alimentados no cocho. Ou então lavando a roupa da família e dos peões, puxando água do poço no
sarilho; e quando o poço secava, tendo que buscar água no
córrego mais próximo, tudo feito com resignação e paciência.
E o nascimento das crianças, recorda. Os filhos
vinham ao mundo em casa. Não havia essa história de hospital, o parto era
natural, sem anestesia ou acompanhamento médico. Mas com a graça de Deus todos
nasceram fortes e saudáveis. Assim era a
vida no campo, vida dura, vida difícil, mas sem perder a garra e a dignidade,
agradece em silêncio aquela mãe.
Desta época, as lembranças que dona Maria
têm de seu esposo José Arara é que ele foi um homem honesto e sempre trabalhador. As dificuldades que se
acercavam eram tantas [que hoje poucos entenderiam]: até mesmo uma simples
tarefa de fazer compras [vindo da fazenda até a cidade] se tornava algo difícil.
Trazia no lombo do cavalo apenas o mantimento que alimentaria a família apenas uma
semana.
A família
recorda que naquele tempo, na fazenda, mesmo trabalhando de domingo a domingo
na propriedade do patrão, o seu quintal era impecável, tirava os tocos,
deixando tudo muito limpo e lisinho. Foi neste mesmo quintal que ele zelou e
cuidou que, mais tarde, foi transformado e local de pouso de avião na fazenda,
tamanho o seu capricho.
O ruído
da partida de motor em movimento faz dona Maria despertar. Era o ônibus que estava
partindo, seguindo viagem. A rodoviária ao lado, aos poucos, cessa o movimento,
e a dona do lar e dos negócios, ajudada pela filha, se recolhe em seus pensamentos. Olha na sua volta as
paredes de seu hotel e recorda a concretização daquele sonho que o casal
alimentou ainda lá na fazenda.
Foi
quando decidiram deixar o campo e adquirir uma casa na sede do município de
Brasilândia. Sonhavam em comprar uma casa grande, com um terreno bem espaçoso e
fazer ali uma pensão, uma pousada. Foi quando um tradicional morador do lugar,
chamado Wilson de Arruda, por coincidência, chefe do Cartório de Paz da cidade,
viu o seu José Arara conversando com um mestre de obras para concretizar o seu
sonho.
Ao
saber o motivo da construção, o seu Wilson de Arruda, prontamente ofereceu seu
estabelecimento, que já estava pronto e todo equipado, para que ali, seu Zé Arara pudesse instalar a sua tão sonhada pensão. Foi desta forma que, mesmo com poucos recursos, a alegria chegou àquele humilde lar, e o casal de agricultores passaram a ser os donos de seu próprio
negócio. Quando o filho caçula nasceu em 1979, um novo negócio era inaugurado
na cidade, um novo horizonte despontara: estava concretizado um sonho que permanece e perdura há 40
anos, até os dias de hoje.
Após cumprir sua missão aqui na terra, ao se
despedir da família e dos amigos, no dia 15 de dezembro último, dona Maria Machado de Freitas deixa a marca de uma mulher vitoriosa, que em seus 85 anos de vida edificou em silêncio. Deu solidez às pilastras de seu
castelo, que abrigou os sonhos do esposo, deu segurança e futuro aos filhos e engrandeceu
o lugar por onde seus pés pisaram e seus braços soergueram. Nossas homenagens. Descanse
em paz dona Maria Yô.
Brasilândia/MS,
22 de dezembro de 2021.
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