quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

 

Um hotel e o sonho realizado de MariaJosé.

Carlos Alberto dos Santos Dutra










Tudo que circunda a nossa volta, as coisas, os prédios, as pessoas, tudo têm uma história, um começo e um fim. Quando chegamos numa cidade – e isso os pioneiros lembram muito bem – inevitavelmente nosso olhar repousa sobre as ruas, as casas, e as pessoas que ali vivem.

O ônibus da empresa Viação São Luiz, imponente para os costumes da época, lá estava estacionado no centro da cidade. Já era noite e para quem viajara o dia inteiro vindo de Bodoquena, depois de passar por Dourados, por estradas de terra, de pedras e muitos buracos, ver o ônibus estacionado em um lugar seguro era um alivio: enfim a civilização. Assim eu me senti a primeira vez que aqui cheguei e conheci aquela pousada.

E ela estava lá, a poucos metros, ao alcance da minha mão. Ao lado da minúscula rodoviária, praticamente uma parada de ônibus, que era atendida por um jovem senhor chamado Vila, encontrava-se aquele portal, um verdadeiro convite ao viajante que chegava.

Tratava-se do Bar e Hotel São José, hospedagem segura, verdadeira sentinela da cidade, no alto da avenida que lhe emprestava o nome, acolhendo e recebendo gente de outros nortes que ali buscavam abrigo e hospedagem ao passar pela cidade.

Em meio às instalações simples, porém aconchegantes, lá se encontrava o proprietário e sua esposa, regendo a orquestra do atendimento daquele estabelecimento. O belo quadro pintado na parede inteira, refletia o ambiente rústico e bucólico, lembrança da fazenda Bariri, memória que os proprietários depositaram no lugar que os recebeu e ali puderam construir sua história.

O anfitrião da casa, homem de visão e falante, o proprietário logo que ali chegou recebeu o epíteto Arara, provavelmente advindo da natureza gregária e comunicativa que o caracterizava, fazendo eco no ambiente que o circundava. Herança de povos de muitos lugares que para aqui acorriam, trouxe na mala, junto dos sonhos, trejeitos e linguagem própria de seus conterrâneos.

A seu lado, se encontrava dona Maria. Em silêncio, mão no queixo, levemente encostada no balcão, admirava a silhueta do esposo na porta da hospedagem gesticulando e recebendo os viajantes que desciam do ônibus praticamente na porta de seu estabelecimento. Logo ela sabia que teria de providenciar o alimento e a bebida; conferir a roupa de cama e acomodar os pertences daqueles que por ali resolvessem se hospedar.

Na verdade, ela era a grande mestra daquele lugar. Empunhando com arte o instrumento que afinava a canção de ali tudo ajeitar, tornava belo e aceitável a simplicidade que a rodeava. Os filhos e as dificuldades vividas não haviam lhe tirado o gosto doce das manhãs nem brilho do olhar. Desde menina, a filha de seu João Machado de Oliveira e dona Francisca Correia de Jesus, destacara-se entre os seis irmãos com quem dividiu a infância daquela família feliz.

Nascida no dia 28 de junho de 1936 em uma pequena cidade conhecida como Sales, no interior do estado de São Paulo, a jovem Maria Machado de Freitas revelou desde cedo ser uma mulher de fibra. Nascida na lida, guerreira, forte e ao mesmo tempo delicada, era extremamente zelosa para com os filhos, os netos e todos que a cercavam... relembram os familiares.

Antes de completar 18 anos, em meados de 1954, conheceu o grande amor de sua vida. Foi numa festa que aconteceu na fazenda Santa Helena. A partir daquele dia passaria a dedicar toda sua vida à construção de um lar. Três meses depois, após um rápido namoro, lá se encontrava sendo conduzida ao altar, quando se uniu em matrimônio com o jovem José Alves de Freitas, no dia 10 de setembro de 1954.

Assim começa a história da família Freitas. Um ano após o casamento nasce a primeira filha que, em homenagem, carregava no nome a marca daquele casal que lhe deu força e vida: Maria José. Nos anos seguintes Deus lhes brindara ainda com Marina, Valter, Adauto, Cícero, Marluce, Margarida, Maria Aparecida e Claudinei, o caçula.

O olhar de dona Maria se ilumina, enquanto acarinha seus rebentos. Nunca deixou de tirar os olhos de admiração para o esposo, numa demonstração de amor, afeto e respeito. Desde moço, José Alves de Freitas foi um homem humilde, porém trabalhador. Filho de seu Gerônimo Alves de Freitas e dona Olívia Maria de Jesus, era natural de Tanabi, região próxima a São José do Rio Preto, sendo lá que se tonou um homem feito.

Desde que nasceu, no dia 10 de setembro de 1926 viu a família trabalhar em fazendas, logo aprendendo a profissão de peão do campo, e onde passou a ganhar o sustento em cima do lombo de um cavalo, nos tentos do laço ao gado alçado, vencendo na vida por seus próprios méritos e esforço.

Uma brisa adentra a porta do hotel São José e dona Maria, passa a mão espalmada sobre a testa, como que saudando em condolências aquele companheiro, que no dia 7 de abril de 2015 faleceu, deixando um rastro de saudade, mas também motivo de orgulho, exemplo e inspiração para a esposa, os 9 filhos, os 23 netos, os 17 bisnetos e o mais novo tataraneto, sua maior herança.

Despediu-se do esposo e continuou labutando pela vida, administrando o patrimônio que o casal construiu desde que chegou a Brasilândia. Por um momento esquece as dores no corpo e viaja no tempo: parece que foi ontem. E recorda quando aquele amigo de seu esposo o convidou para trabalhar numa fazenda chamada Califórnia. E foi para lá que a família se tocou.

As portas daquela fazenda se abriram para o casal e seus filhos que, com muita fé e esperança começaram uma nova vida. Trabalharam muito, até conquistar o direito de ter um cantinho só deles, onde construíram uma casa que chamaram de sua, lugar onde construíram sua história, tiraram o sustento para a família, permanecendo neste lugar por 20 anos.

Ah, aqueles tempos na fazenda. Recorda dona Maria, ou dona , como também era conhecida. Atenta à lida com o gado, construção de cercas e currais realizados pelos peões, lá estava ela fazendo a comida para os campeiros, o arroz carreteiro, antes socado no pilão, que alimentava e agradava a todos, num clima de fraternidade e alegria. 

Depois, lá se encontrava ela novamente tratando da criação: galinhas, porcos, cães e bezerros alimentados no cocho. Ou então lavando a roupa da família e dos peões, puxando água do poço no sarilho; e quando o poço secava, tendo que buscar água no córrego mais próximo, tudo feito com resignação e paciência.

E o nascimento das crianças, recorda. Os filhos vinham ao mundo em casa. Não havia essa história de hospital, o parto era natural, sem anestesia ou acompanhamento médico. Mas com a graça de Deus todos nasceram fortes e saudáveis. Assim era a vida no campo, vida dura, vida difícil, mas sem perder a garra e a dignidade, agradece em silêncio aquela mãe.

Desta época, as lembranças que dona Maria têm de seu esposo José Arara é que ele foi um homem honesto e sempre trabalhador. As dificuldades que se acercavam eram tantas [que hoje poucos entenderiam]: até mesmo uma simples tarefa de fazer compras [vindo da fazenda até a cidade] se tornava algo difícil. Trazia no lombo do cavalo apenas o mantimento que alimentaria a família apenas uma semana.

A família recorda que naquele tempo, na fazenda, mesmo trabalhando de domingo a domingo na propriedade do patrão, o seu quintal era impecável, tirava os tocos, deixando tudo muito limpo e lisinho. Foi neste mesmo quintal que ele zelou e cuidou que, mais tarde, foi transformado e local de pouso de avião na fazenda, tamanho o seu capricho.   

O ruído da partida de motor em movimento faz dona Maria despertar. Era o ônibus que estava partindo, seguindo viagem. A rodoviária ao lado, aos poucos, cessa o movimento, e a dona do lar e dos negócios, ajudada pela filha, se recolhe em seus pensamentos. Olha na sua volta as paredes de seu hotel e recorda a concretização daquele sonho que o casal alimentou ainda lá na fazenda.

Foi quando decidiram deixar o campo e adquirir uma casa na sede do município de Brasilândia. Sonhavam em comprar uma casa grande, com um terreno bem espaçoso e fazer ali uma pensão, uma pousada. Foi quando um tradicional morador do lugar, chamado Wilson de Arruda, por coincidência, chefe do Cartório de Paz da cidade, viu o seu José Arara conversando com um mestre de obras para concretizar o seu sonho.

Ao saber o motivo da construção, o seu Wilson de Arruda, prontamente ofereceu seu estabelecimento, que já estava pronto e todo equipado, para que ali, seu Zé Arara pudesse instalar a sua tão sonhada pensão. Foi desta forma que, mesmo com poucos recursos, a alegria chegou àquele humilde lar, e o casal de agricultores passaram a ser os donos de seu próprio negócio. Quando o filho caçula nasceu em 1979, um novo negócio era inaugurado na cidade, um novo horizonte despontara: estava concretizado um sonho que permanece e perdura há 40 anos, até os dias de hoje.

Após cumprir sua missão aqui na terra, ao se despedir da família e dos amigos, no dia 15 de dezembro último, dona Maria Machado de Freitas deixa a marca de uma mulher vitoriosa, que em seus 85 anos de vida edificou em silêncio. Deu solidez às pilastras de seu castelo, que abrigou os sonhos do esposo, deu segurança e futuro aos filhos e engrandeceu o lugar por onde seus pés pisaram e seus braços soergueram. Nossas homenagens. Descanse em paz dona Maria Yô.


Brasilândia/MS, 22 de dezembro de 2021.


Foto 1: Jornal da Cidade, 2004. 

Foto 2 e demais informações enviadas por Cícero Alves de Freitas.











  
























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