Marilda Xartã Ofaié: a mestra
dos doutores vive.
Carlos Alberto dos Santos
Dutra.
Ela era silenciosa, a exemplo
das mulheres daquele povo de hábitos tímidos e feições sóbrias. Olhar cabisbaixo
e entristecido carregava nos ombros as perseguições do passado, as andanças do
presente e a incerteza do futuro. Assim era Marilda de Souza, indígena Ofaié,
Xartã, na sua língua mãe. Além de indígena de um povo ressurgido, havia também carregado
no ventre sementes de vida: Josimar Siongroi
e Gilmar Apucará, rebentos que o
vento levou. Outros vingaram e só lhe trouxeram alegrias, duas belas jovens, Léa e Elizangela, sendo uma professora, sorri orgulhosa aquela senhora outrora chamada de
Margarida.
Mas essa última flor do Lácio
ainda podia ser medida a sua importância pelo que representava para aquele povo,
pois era uma das poucas falantes da língua ofayé,
tendo-a ensinado a todos que por ali passaram. E olha que não foram poucos
os acadêmicos, mestres e doutores que deitaram o ouvido sobre seus lábios para
ouvir as palavras guturais de uma língua a beira da extinção. E lá estava ela
soletrando uma a uma letras estranhas cujo som o vernáculo pátrio nem ainda as possuía.
Dedicada e aplicada nos
estudos, acompanhou e orientou projetos de toda ordem para universidades de norte a sul do país. Dezenas de monografias, dissertações e teses acadêmicas, de mestres e doutores, e pós-doutores, hoje levam o seu nome e a marca de sua passagem
aqui na terra banhada em sangue pela conquista. Uma brilhante falante da língua, sábia pedagoga e íntegra
mulher.
O nome de Marilda Ofaié está inscrito não somente no coração de pesquisadores que do alto da cátedra do saber estiveram
na humildade da aldeia Anodhi em Brasilândia buscando subsídios para
seus estudos e títulos. O nome de Marilda, hoje integra o saber universal com
uma voz que salta dos apontamentos e dicionários pacientemente redigidos por
uma dezena de pessoas interessadas na preservação da língua do povo Ofaié.
E lá estão eles, lembro o nome
de alguns, como Marlene Carolina de Souza, pela UNESP; Lúcia Helena Tozzi da
Silva, pela FIRB; Fábio Lopes da Silva, pela USP; Manoel Ferreira Lima Filho, pela
UCG; Merimárcia Guedes, pela UNESP; Ana Cláudia Ceccato, pela UNESP; Cristiane
Mirtes Borgonha, pela UFSC; Giovane José da Silva, pela UFG; Marlon Leal Rodrigues, pela UNICAMP; Rogério
Vicente Ferreira, pela UFMS; Maria das Dores de Oliveira, pela UFAL, Eduardo Rivail Ribeiro, de além mar, entre
outros pesquisadores e acadêmicos que estiveram entre eles e familiarizaram-se com a doçura e meiguice de suas crianças e a dedicação de nossa querida mestra Marilda Xartã Ofaié, entre eles modestamente esse
escrevinhador.
Marilda ou Margarida de
Souza, como consta em sua certidão de nascimento indígena nasceu em 15 de abril
de 1967 e faleceu na madrugada do dia 28 de março de 2015, aos 48 anos de
idade incompletos. Faleceu jovem, essa nossa professora, de uma doença que os médicos
não explicam e nem sabem de onde possa ter vindo essa virose que lentamente a
levou. Depois dos massacres e perseguições, veio a tuberculose e a falta de
assistência que os fazia partir cedo. Hoje, as políticas públicas
integracionistas, o consumo patrocinado e a chamada modernidade que gera descrença na
tradição e costumes antigos dos povos, só afastam os indígenas do coração das
aldeias, transformando-as em alojamentos e morada de velhos e uma mera referência.
Concorrem também as novas
doenças que avançam e percorrem caminhos cada vez mais sofisticados, onde as
rezas e plantas medicinais não alcançam e nem podem responder. E eles vão morrendo
pelo caminho, sem respostas, sem palavras, deixando apenas a voz nos instrumentos que
o mundo lhes reservou distante da terra, para onde ela vai ser enterrada daqui há pouco. No caso de Marilda, o Museu da Pessoa (da UNESCO) eternizou sua voz,
seu lamento e seus sonhos. Que ele possa ser vivido em outra terra, em
outro rio, em outro mar...
Descanse em paz doutora honoris causa Marilda Xartã Ofaié
Mais informações sobre os Ofaié:
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