quarta-feira, 17 de julho de 2024

 

O Ivinhema e os aprendizes de Ofaié

Carlos Alberto dos Santos Dutra




 



O portão se abre e surge a frente um rosto conhecido. Uma estampa brilhante que reflete a lembrança de um passado que permanece ainda muito vivo na memória. Olhar de óculos de alcance que irradia o trecho florido de uma estrada já trilhada, enquanto estende a mão e cumprimenta o recém chegado. 

Após um forte abraço de reencontro com o amigo vindo do interior, aquele dinossauro expert das trilhas arqueológica e etnohistórica de Mato Grosso do Sul observa que o recém chegado está acompanhado. Seu olhar então repousa sobre o outro que se encontra ao lado, ornado de penas e colar, portando um imponente arco e flecha, e que lhe sorri encabulado. 

Logo eles são convidados a adentrar a residência pelo anfitrião que os recebe com simpatia e os acompanha até a antessala do escritório onde o pesquisador trabalha e produz seus estudos acerca do tempo passado e presente das culturas humanas e materiais que o cercam, as quais tem se dedicado há mais de 30 anos com uma vigorosa produção acadêmica e intelectual. 

Numa das salas de sua residência impossível não observar no mobiliário sólidas prateleiras contendo livros, muitos livros, novos e antigos, uma coleção invejável acerca da história e da cultura deste Estado. 

O lugar transpira uma aura de conteúdo e informações que torna o ambiente quase uma cátedra de sabedoria, capaz de inspirar e encher de conhecimento quem por ali passa entre uma e outra coluna de livros que pareciam gritar palavras que saltam de suas páginas. 

Aquela reunião ocorrida em Campo Grande/MS no dia 25 de junho último, não por acaso havia sido preparada pelo destino para o reencontro dos três. Estavam ali para celebrar uma história de vida, um acontecimento que um dia os uniu a um propósito maior, e que resultou no soerguimento de um povo, onde a escrita da pesquisa acadêmica traduziu e se encontrou com a palavra dita na aldeia. 

E tudo por uma motivação maior: recuperar através do diálogo e das lembranças, fragmentos de um tempo ainda não escrito, quando um aldeamento do povo Ofaié ainda se encontrava encravado na margem esquerda do rio Ivinhema, limítrofe de suas terras com os indígenas Guarani Kaiowá que habitavam na margem direita deste mesmo rio.  

Na época em que esses fatos aconteceram os assuntos indígenas mesclavam-se com a colonização e expansão pecuária do antigo Mato Grosso e cujos apontamentos nos chegam, a partir de 1913, através de Curt Nimuendajú e Cândido Rondon. Foram através das fileiras do Serviço de Proteção aos Índios-SPI que deu-se a criação dos primeiros aldeamentos Ofaié, do Laranjalzinho e do Peixinho, todos na margem do rio Ivinhema. 

Neste mesmo período, entretanto, a menos de 300 quilômetros a nordeste deste lugar, outro grupo de Ofaié vivia nas margens do rio Verde, no lado sul-mato-grossense, sendo atendido por uma Missão Capuchinha instalada no ribeirão Marrecas, afluente do rio Paraná, próximo à cidade de Panorama/SP.

Hoje, sessenta e cinco anos passados, um sobrevivente deste povo faz o percurso inverso, de volta à terra de seus ancestrais, e que através da palavra dos pesquisadores arrisca estabelecer um diálogo entre o passado e o presente de seu povo. 

E ali estavam José de SouzaKoi Ofaié, ao lado de pesquisadores e cinegrafistas, reavivando na memória a travessia de sua gente pelos campos e cerrados que habitaram ao longo do rio Paraná, entre o rio Ivinhema até a margem direita do rio Sucuriú.

A cada palavra pronunciada e respaldo do que já foi escrito, o encontro acontecia: o encontro da história dos historiadores com a memória e testemunho vivo de quem ali se encontrava presente. 

Por assim dizer, a vigilância crítica dos pesquisadores, frente àquele professor bilíngue da Escola Estadual Ofaié E-Iniecheki, da Aldeia Anodhi, de Brasilândia/MS, sentia-se legitimada pelo testemunho e fidelidade ao passado vivo, postado a sua frente. 

Para ambos os professores, o arqueólogo doutor Gilson Rodolfo Martins e o historiador mestre Carlos Alberto dos Santos Dutra, estar ao lado daquela liderança indígena e poder ouvir de sua própria boca suas conquistas e orgulho de pertencer ao grupo Ofaié sobrevivente era muito gratificante: saber que um impulso pôde ser dado para garantir a segurança e a autodeterminação deste povo. 

Estar ali, falando sobre a permanência dos Ofaié num tempo remoto na região do Ivinhema, seus pantanais e suas várzeas, lhes dava a certeza de que o empenho realizado valeu a pena. Empenho iniciado há 43 anos pelo precursor na luta pelo soerguimento deste povo, o historiador e missionário Dr. Antônio Jacob Brand (in memoriam). 

As filmagens sobre o Inventário das Várzeas prosseguem com a participação indígena de José de Souza e o cacique Marcelo Lins da Silva trilhando a proposta de conciliar a investigação histórica com a poética da natureza, e a valorização dos povos originários que sobrevivem nos mitos fundadores do Estado.

Ao despedirem-se, os pesquisadores, o indígena e os membros da equipe de cinegrafistas dirigida por Ricardo Pieretti Câmara dividiam a satisfação de terem recitado naquele dia um poema de paz para as várzeas do rio Ivinhema e contribuído para a valorização da história e da cultura dos povos que daquelas águas desfrutaram.

Brasilândia/MS, 17 de julho de 2024.





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