O Ivinhema e
os aprendizes de Ofaié
Carlos
Alberto dos Santos Dutra
O portão se abre e surge a frente um rosto conhecido. Uma estampa brilhante que reflete a lembrança de um passado que permanece ainda muito vivo na memória. Olhar de óculos de alcance que irradia o trecho florido de uma estrada já trilhada, enquanto estende a mão e cumprimenta o recém chegado.
Após um
forte abraço de reencontro com o amigo vindo do interior, aquele
dinossauro expert das trilhas arqueológica e etnohistórica de
Mato Grosso do Sul observa que o recém chegado está acompanhado. Seu olhar
então repousa sobre o outro que se encontra ao lado, ornado de penas e colar,
portando um imponente arco e flecha, e que lhe sorri encabulado.
Logo eles
são convidados a adentrar a residência pelo anfitrião que os recebe com
simpatia e os acompanha até a antessala do escritório onde o pesquisador
trabalha e produz seus estudos acerca do tempo passado e presente das culturas
humanas e materiais que o cercam, as quais tem se dedicado há mais de 30 anos
com uma vigorosa produção acadêmica e intelectual.
Numa das
salas de sua residência impossível não observar no mobiliário sólidas
prateleiras contendo livros, muitos livros, novos e antigos, uma coleção
invejável acerca da história e da cultura deste Estado.
O lugar
transpira uma aura de conteúdo e informações que torna o ambiente quase uma
cátedra de sabedoria, capaz de inspirar e encher de conhecimento quem por ali
passa entre uma e outra coluna de livros que pareciam gritar palavras que
saltam de suas páginas.
Aquela
reunião ocorrida em Campo Grande/MS no dia 25 de junho último, não por acaso havia sido preparada pelo destino para o reencontro dos três. Estavam ali para celebrar uma
história de vida, um acontecimento que um dia os uniu a um propósito maior, e
que resultou no soerguimento de um povo, onde a escrita da pesquisa acadêmica
traduziu e se encontrou com a palavra dita na aldeia.
E tudo por
uma motivação maior: recuperar através do diálogo e das lembranças, fragmentos
de um tempo ainda não escrito, quando um aldeamento do povo Ofaié ainda se
encontrava encravado na margem esquerda do rio Ivinhema, limítrofe de suas
terras com os indígenas Guarani Kaiowá que habitavam na margem direita deste
mesmo rio.
Na época em
que esses fatos aconteceram os assuntos indígenas mesclavam-se com a
colonização e expansão pecuária do antigo Mato Grosso e cujos apontamentos nos
chegam, a partir de 1913, através de Curt Nimuendajú e Cândido Rondon. Foram através das fileiras do Serviço de Proteção aos Índios-SPI que deu-se a criação dos
primeiros aldeamentos Ofaié, do Laranjalzinho e do Peixinho, todos na margem do
rio Ivinhema.
Neste mesmo
período, entretanto, a menos de 300 quilômetros a nordeste deste lugar, outro
grupo de Ofaié vivia nas margens do rio Verde, no lado sul-mato-grossense,
sendo atendido por uma Missão Capuchinha instalada no ribeirão Marrecas,
afluente do rio Paraná, próximo à cidade de Panorama/SP.
Hoje,
sessenta e cinco anos passados, um sobrevivente deste povo faz o
percurso inverso, de volta à terra de seus ancestrais, e que através da palavra dos
pesquisadores arrisca estabelecer um diálogo entre o passado e o presente
de seu povo.
E ali
estavam José de Souza, Koi Ofaié, ao lado de
pesquisadores e cinegrafistas, reavivando na memória a travessia de sua gente
pelos campos e cerrados que habitaram ao longo do rio Paraná, entre o rio
Ivinhema até a margem direita do rio Sucuriú.
A cada
palavra pronunciada e respaldo do que já foi escrito, o encontro acontecia: o
encontro da história dos historiadores com a memória e testemunho vivo de quem ali se encontrava presente.
Por assim
dizer, a vigilância crítica dos pesquisadores, frente àquele professor bilíngue
da Escola Estadual Ofaié E-Iniecheki, da Aldeia Anodhi, de Brasilândia/MS,
sentia-se legitimada pelo testemunho e fidelidade ao passado vivo, postado a sua
frente.
Para ambos
os professores, o arqueólogo doutor Gilson Rodolfo Martins e
o historiador mestre Carlos Alberto dos Santos Dutra, estar ao
lado daquela liderança indígena e poder ouvir de sua própria boca suas
conquistas e orgulho de pertencer ao grupo Ofaié sobrevivente era muito gratificante: saber
que um impulso pôde ser dado para garantir a segurança e a autodeterminação
deste povo.
Estar ali,
falando sobre a permanência dos Ofaié num tempo remoto na região do Ivinhema,
seus pantanais e suas várzeas, lhes dava a certeza de que o empenho realizado
valeu a pena. Empenho iniciado há 43 anos pelo precursor na luta pelo
soerguimento deste povo, o historiador e missionário Dr. Antônio Jacob Brand (in
memoriam).
As
filmagens sobre o Inventário das Várzeas prosseguem com a
participação indígena de José de Souza e o
cacique Marcelo Lins da Silva trilhando a proposta de conciliar
a investigação histórica com a poética da natureza, e a valorização dos povos
originários que sobrevivem nos mitos fundadores do Estado.
Ao
despedirem-se, os pesquisadores, o indígena e os membros da equipe de cinegrafistas dirigida por Ricardo Pieretti Câmara dividiam a
satisfação de terem recitado naquele dia um poema de paz para as várzeas do rio Ivinhema e
contribuído para a valorização da história e da cultura dos povos que daquelas águas desfrutaram.
Brasilândia/MS, 17 de julho de 2024.
Maravilhoso meu amigo! Vc é um herói!
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