sábado, 25 de janeiro de 2025

 

Irmã Norma Romancini, o acolhimento e os Ofaié

Carlos Alberto dos Santos Dutra






Dizem que as boas ações que fazemos para pessoas estranhas, o tempo consome e acabamos nos esquecendo como e quando elas aconteceram. De sorte contrária, aquele que foi beneficiado pelo desprendimento de um gesto de acolhida jamais esquece, guarda para sempre no coração profunda gratidão.

Corria o ano de 1988 e uma religiosa de hábito branco, muito dinâmica, regia a orquestra da administração do Hospital Nossa Senhora Auxiliadora na emergente Três Lagoas de então. Tempos difíceis da filantropia, onde a motivação para o atendimento à saúde era garantida somente pelas pilastras do exercício da caridade cristã.

Não fosse aquela centenária santa casa salesiana, sob a égide das Filhas de Maria Auxiliadora, cujos princípios de sustentação representavam a única porta solidária de acolhida aos mais vulneráveis, o socorro médico e atendimento à saúde jamais estariam ao alcance daqueles que dela necessitassem.

Foi quando adentrou no pronto-socorro do hospital, deitado numa maca, um jovem indígena de 14 anos de idade, transportado desde Brasilândia/MS, em busca de atendimento. Hoje, isso pode ser considerado como um procedimento comum e recorrente, mas naquela época representava um verdadeiro ato heroico, tamanho os desafios para romper com a lógica e mentalidade de um tempo cujos valores e direitos humanos ainda eram assaz incipientes.

Distante ainda dos avanços que a neófita Constituição Cidadã haveria de garantir aos povos originários, sublimado depois com o surgimento do Sistema Único de Saúde hoje vigente, eis que uma voz se colocava ao lado dos oprimidos e os mais pobres.

Com mão firme e decidida lá estava uma irmã salesiana de nome Norma Romancini e outra irmã, salvo engano de nome Enoi que abriram espaço entre os corredores daquele nosocômio, destoando das vestes brancas de seus hábitos religiosos, para acolher a pele mais escura de uma criança indígena da cidade vizinha.

Sebastião de Souza era um indiozinho da Aldeia Anodhi que, depois de ficar internado por vários dias no Hospital Dr. Júlio César Paulino Maia, de Brasilândia, devido a gravidade de seu quadro clínico, teve de ser transferido para um hospital de maior recurso e complexidade.

Sebastião desde muito cedo enfrentou desafios na vida. Nascido na antiga aldeia Esperança, localizada nas imediações dos córregos Boa Esperança, São Paulo e Sete, ainda criança foi levado por seus pais Eduardinho Kri-í e Maria Aparecida Hanto-grê, ao lado de seu irmão João Carlos Can-rê, para região de Bodoquena, quando foram transferidos pela próprio órgão indigenista oficial, a Funai, retornando oito anos depois, após sofrerem todo tipo de violência e a marca do esquecimento oficial. 

A doença meningite pneumônica com edema cerebral o alcançou impiedosamente, o que fez, à época, ser transferido pelas mãos prestimosas de um missionário do Cimi até a porta do hospital local, numa época em que aos indígenas não lhes era dado o direito à saúde digna.

Rapidamente acolhido, aquele corpo franzino sentiu-se iluminado pelo zelo e compaixão numa aura de compaixão que imanava daquela irmã e o corpo clínico do hospital. De certa forma ecoava no lugar as orientações e compromisso do mestre, pastoralista da terra, o colaborador Dom Isidoro Kosinski, bispo diocesano de Três Lagoas, que deu grande impulso e atenção aos sem-terra e indígenas neste período. No caso Ofaié, ao lado do padre Lauri Bósio, D. Izidoro contribuiu de forma decisiva para o soerguimento desta comunidade indígena.

O gesto da irmã Norma e da irmã Enoi nunca foi esquecido por este missionário que hoje pode testemunhar. Também os pais do jovem Sebastião que, mesmo depois dele ter sido transferido de Três Lagoas para São José do Rio Preto, davam graças a Deus pelo empenho destas religiosas.

Com o auxílio do Dr. Guerra, uma ambulância da Sudeco e a solidariedade do professor Dalve, da CPT, na época, o jovem já em estado de coma, foi transportado para o Hospital de Base de São José do Rio Preto. Três dias após ter sido acolhido pelo Dr. Marcos, do Hospital de Base, Sebastião veio a falecer no dia 25 de janeiro de 1988.

Ao lado de sua cama estavam Eduardinho Cri-í e sua esposa. Com olhos fixos no menino, segurava a mão do missionário e agradecia na língua ofayé àquelas irmãs por tê-los atendido e ajudados a chegar até ali. Depois, em meio às lágrimas, o pai olha para o missionário e pede: --Salve ele para mim...

Agachô, o Deus criador dos Ofaié naquela tarde levou Sebastião para o jardim do Céu que o esperava. E a nós, que ali tudo assistíamos, só restava cobrir de flores o rosto inocente daquele jovem e buscar um jeito para trazer de volta o corpo sem vida para o seio da Aldeia Anodhi, distante dali 350 km que o esperava.

Esta história aqui relembrada faz parte da memória do povo Ofaié e integra a trajetória de morte e vida deste povo pelos campos de Agachô. Em especial pelos mais antigos que ainda guardam no coração o gesto obsequioso de acolhida e respeito de uma irmã chamada Norma Romancini e sua providencial ajuda que prestou depois a outros indígenas durante o período em que foi diretora do Hospital Auxiliadora (1988 a 2005).

Parabéns irmã Norma Romancini pelos 60 anos de vida religiosa. Obrigado a família salesiana das Filhas de Maria Auxiliadora que, ao longo, sobretudo dos primeiros anos, abriram as portas da Instituição para os apelos do coração, do amor, do acolhimento e de respeito ao próximo, como o Cristo nos ensinou.

 

Brasilândia/MS, 25 de janeiro de 2025.

 

Fonte: Dutra, C.A.S. Diário de Axayray. Indigenismo e Missão entre os Ofaié, Brasilândia, Edição do Autor, 2021, pág. 79-81.

Foto: https://facebook.com/drpauloveron

 









Sebastião de Souza Ofaié (1974-1988)

Nenhum comentário:

Postar um comentário