Dona
Maria Japonesa, a família, o trabalho e os sonhos.
Carlos
Alberto dos Santos Dutra
Toshie
Yahata Gonçalves era
uma Nikkei, conhecida como dona Maria Japonesa. Era filha de
japoneses e embora tenha nascido no Brasil, fora registrada no Koseki Tohn (Registro
Familiar Japonês) onde consta ela ter nascido no dia 27 de outubro de 1921,
data original de sua certidão de descendência japonesa. Seu registro no Brasil,
entretanto, deu-se seis anos depois ao ser registrada no distrito de Glicério, comarca
de Penápolis/SP, com a data de 4 de novembro de 1927, divergindo do documento
original apresentado ao escrivão à época.
Casada
com o servente de pedreiro Alguinel Ferreira Gonçalves, com quem teve
oito filhos, viveu na barranca do rio Paraná, no município de Brasilândia/MS,
ao lado do esposo e da família praticamente por toda a vida, dedicando-se à
agricultura e a atividade oleira.
Sua
história começa pelas lembranças que guardava da região de Cafelândia/SP, de
forte presença japonesa, onde ela passou a infância e contava para seus filhos
e netos a trajetória de sua vida. Morava numa colônia agrícola formada por japoneses
que haviam se instalado desde o tempo da imigração, onde milhares deles
desembarcaram no Brasil dedicando-se ao plantio e colheita do café.
Tempos
difíceis, recorda, nos anos que antecederam a segunda guerra mundial, quando
seus pais, Taro Yahata e Mitsu Yahata vieram para o Brasil
fugidos do confronto e se dedicaram à agricultura. Montaro Yahata e Umeno
Yahata eram seus bisavôs paternos, e Kiochi Ymai e Niuko Ymai,
seus bisavôs maternos.
No
distrito de Glicério/SP, estudou até a segunda série. Seu pai era um homem
rigoroso e queria que a jovem Toshie aprendesse a língua ancestral que
era ensinada nessa colônia pelos próprios moradores, contou ela certa vez. Neste
período existiam nas colônias agrícolas muitas escolas primárias destinadas a
atender os filhos dos imigrantes japoneses. Com a proximidade da guerra, tais
escolas foram fechadas pelo governo, com severas restrições ao uso da língua, inclusive
com o confisco de bens de estrangeiros.
Dona
Toshie conheceu aquele que viria a ser seu esposo, Alguinel Ferreira
Gonçalves, no dia em que ele foi prestar serviço para o japonês Taro
Yahata, pai da moça, lembra a neta Sandra Ferreira Gonçalves: Após
uma semana de trabalho ele pediu minha avó em namoro, mas o pai dela não consentiu,
pois japonês só podia se relacionar com japonês. Foi quando meu avô
fugiu, como se diz, ‘roubando’ a noiva, minha avó.
E
sumiram no mundo, passando de cidade em cidade até chegar em Três Lagoas
no ano de 1969, seguindo para olaria dos Viana. Depois, chegaram na
barranca do rio Paraná, isso lá pelos anos 1977 e 1978, onde ali permaneceram
por 20 anos vivendo da terra, até a chegada da CESP e fazer ‘aquilo’ que ela
fez, lamenta a neta. Foi nesta época que seu Alguinel, esposo de dona
Toshie veio a falecer, no dia 27 de junho de 1999, deixando os filhos Nelson,
Clarice, Vera Lúcia, Wilson, Mauro (†1985), Celso, Sérgio e Tiane.
Com
a inundação das terras, olarias e casas da barranca, pelas águas da
Hidrelétrica de Porto Primavera, os oleiros, agricultores e pescadores foram
todos transferidos para reassentamentos rurais, de mão de obra atingida e dos
que praticavam atividade ceramista. Deslocada para o Reassentamento Novo Porto
João André, lá se instalou a viúva Toshie e seus filhos que um a um já
haviam partido, tomando rumo na vida, deixando-a cada vez mais só. Ela ali permaneceu
na rua 21, lote 18, onde administrou por longo período a sua Cerâmica Yahata.
Sobre
os seus sonhos, sempre guardou segredo. Recorda a neta Sandra em uma de
suas conversas, pois sempre falou muito pouco sobre sua intimidade. Mas o que
mais lhe importava era a família, valor que ela sempre preservou: herança cultivada
desde o tempo de seus pais e avós lá do Japão. Só que a vida nem sempre
corresponde aos nossos sonhos e ela teve de amargar a saudade e a distância de
seus irmãos e irmãs, quando não o preconceito que os separou pelo fato de ter
sido a única da família que se uniu e casou com alguém diferente de sua cultura
e ascendência oriental.
Este
sonho, entretanto, persistia, e jamais pode esconder de quem a conhecia mais de
perto: reencontrar a família que um dia foi sua e que hoje vivia na capital
paulista. Todos haviam progredido
e se encontravam bem estruturados na vida, e isso a deixava feliz.
Um
dia ela arrumou-se toda e viajou até eles, chegando a visitar um de seus
irmãos. Mas infelizmente, recorda a neta com tristeza, depois de mais de 20
anos sem ver esse irmão querido, não se sentiu bem-vinda e voltou para casa decepcionada.
Mesmo assim, nunca parou de falar no restante dos irmãos e na irmã caridosa que
a visitava com frequência, o que foi sempre grata.
Já
em idade avançada, quando as forças começaram a lhe faltar para tocar o seu
negócio, arrendou sua olaria para seu Antônio, um comerciante de quem
obteve muitos dissabores no cumprimento do que fora acordado, tendo que
recorrer à Justiça para obter o imóvel de volta.
Nos
últimos anos dedicava-se com paciência e alegria a lidar com umas poucas
cabeças de vacas que ela mesma cuidava e ordenhava todos os dias. Pessoa de
fino trato, simples, educada e de uma honestidade nunca vista, ao lado do
carinho e humanidade que irradiava; todo isso a tornava querida e admirada por
todos que a conheciam.
Silenciosa
e gentil, ao estilo oriental, nas suas relações e negócios seus gestos
inspiravam em todos sempre confiança e respeito. Uma mulher de honra e fé
pública, guerreira, praticamente anônima, mas que causava orgulho e encantamento
àquele que se dispusesse dialogar com ela alguns minutos. Mulher que
nunca desistiu da vida e do trabalho. Enquanto teve forças viveu e fez brotar
vida à sua volta. Só parou quando as dificuldades financeiras chegaram: foi quando
adoeceu.
Dona
Maria Japonesa, como era carinhosamente chamada, faleceu no dia 1º de
novembro de 2016, aos 95 anos de idade, segundo seu registro original do Japão, deixando
8 filhos, 28 netos, 38 bisnetos e 4 tataranetos; e uma dezena de amigos que
ainda hoje nutrem por essa vovó eterna saudade daquele sorriso meigo,
encabulado, algo como se um anjo tivesse passado por aqui.
Brasilândia/MS,
1º de novembro de 2024.
Fonte:
A
expressão Nikkei significa descendentes nascidos fora do Japão;
japoneses que vivem no exterior ou, ainda, simpatizantes da cultura japonesa.
Este artigo foi escrito em parceria com a neta Sandra Ferreira Gonçalves e publicado
inicialmente em 03.Dez.2019, em https://www.institutocisalpina.org/dona-maria-japonesa-a-familia-o-trabalho-e-os-sonhos.html,
e em DUTRA, C.A.S. Quando eu me chamar saudade. Vol. 1, 2ª Ed. Brasilândia,
Edição do Autor, 2023, pág. 132-134.