sábado, 7 de julho de 2018

Há cinco anos: He-í foi ao encontro de Hegue-í.

O adeus Ofaié: 
He-í foi ao encontro de Hegue-í
Carlos Alberto dos Santos Dutra




Ele era um legítimo filho da terra. Mais filho do que ninguém. Seu irmão, Alfredo, com 8 anos de idade, foi conduzido de mãos dadas por Curt Nimuendajú pelas margens do rio Paraná e ele, He-í, pelas mãos de seus pais Gaspar e Josefa, também vira de perto as andanças de seu povo Ofaié.

Nascera em 15 de agosto de 1933 na aldeia Boa Esperança, nas margens do ribeirão do mesmo nome, quando ainda nem havia Brasilândia e aquelas terras todas eram de domínio do seu povo. Foi numa de suas caçadas e coleta de mel silvestre, fugindo das dadas dos bugreiros e do mando de Percival Farquhar  (1864-1953) e a poderosa Brazil Land Catle and Packing Companhy, que aquele menino meigo trouxe um ramalhete de flores e entregou a  Hegue-í, batizada de Francisca, e que há muito lhe encantara o coração.

Com ela se casou e viveram uma vida inteira juntos, só se apartando com a morte dela, ocorrida em 2005. Passado 8 anos, a poucos dias de completar 80 anos de idade, no dia 10 de julho de 2013, eis que João Pereira, também segue os passos de sua amada, partindo para os braços da companheira. E lá vai He-í ao encontro de Hegue-íArikã! amigo Pereirinha. 

E lá o encontramos entre arcos de roxinho e lanças de varas de alecrim, sempre sorrindo, construindo flechas e disposto a ajudar àqueles que quisessem aprender a língua Ofaié. Dono de uma paciência inabalável jamais levantou a voz;  era suave como a brisa. Como diria meu amigo Hilário Paulus, ele tinha o dom divino da mansidão. E lá estava ele ensinando, ensinando e ensinando, palavra por palavra em Ofaié à estudantes e pesquisadores, desde crianças até os adultos, e todos aprenderam a admirá-lo.

No curso de sua vida, viu a aldeia por diversas vezes desaparecer. Mas, eis, que de súbito, ela soerguia das cinzas, pela força de seus líderes e parceiros que foram surgindo com o tempo. Ao lado de Xehitâ-ha esteve em Brasília-DF reivindicando o direito de retornar às suas terras tradicionais, dando início ao processo de resultou na declaração do território Ofaié Xavante como de posse permanente indígena.

Ao longo dos anos, isso deu-lhe um sentido para o aga-chanagui de sua existência, vivendo feliz até os dias que antecederam a sua morte. Agora ele parte como viveu: em silêncio. E descansará o corpo não em terra estranha, mas na terra de seus antepassados. Terra que ajudou a conquistar e por isso deverá ser lembrado como um herói do povo Ofaié.

Para o sentimento dos mais jovens, partiu um dos pilares da cultura Ofaié. Sobretudo da língua, quão escasso são os falantes do idioma materno deste povo de meia duzia apenas de falantes. Hão de chorar, com certeza, todos aqueles que o conheceram e aprenderam a amá-lo. Hoje sabemos que ele não viveu somente em silêncio, suportou também em silêncio as dores da perseguição e da exclusão dentro e fora da aldeia.

Suas palavras, gravadas ainda em fita k-7, lá na Bodoquena, em 1986, quando o conheci, na noite - longa - de seu velório de dor, devo ainda de ouvi-las atentamente, no silêncio da solidão que tu deixas. No passamento de seu espírito para outra vida, sob o encanto de Agachô, sinto que nesta hora suas palavras, mais do que nunca, devem ser ouvidas, porque elas ainda têm muita coisa a dizer. Para nós, teus filhos e netos da luta e da esperança, haveremos de seguir andando, seguindo teus passos... Arikã! querido avô João Pereira.




















Ataíde Francisco Xehitâ-ha Ofaié e João Pereirinha He-í Ofaié na rodoviária de Brasília-DF por ocasião da entrega de documento à Funai (Foto: Carlos Dutra, 1987)


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