terça-feira, 15 de agosto de 2023

 

O medo, a lágrima e o dever de denunciar.

Carlos Alberto dos Santos Dutra




O tema é sempre guardado a sete chaves. Dói na alma saber que aquele em quem depositamos nossa confiança nos traiu. Mais que isso. Transpassou um punhal no coração frágil e desarmado de quem estava próximo, ferindo-o de morte. É assim que o ser humano se sente ao saber de um caso de estupro de vulnerável em uma comunidade.

Por maior que seja o número de pessoas que circundam a nossa volta e frequentam os noticiários que divulgam esses acontecimentos horrendos e inomináveis nas grandes cidades, de certa forma fazendo com que aos poucos fomos nos acostumando a eles, o mesmo não acontece nas pequenas cidades, no seio de comunas onde todos se conhecem e o sentimento de espanto e repulsa se mostra a flor da pele no olhar de quem passa.

Quando esta realidade vem à público, infelizmente, ela é apenas a ponta do iceberg. No mais das vezes esconde sob as águas profundas e sombrias da conivência e do silencio, o grito de alerta que deveria ser dado em alto e bom som, por quem responsável e sentinela da integridade física e emocional de seus protegidos, sobretudo, de seus rebentos.

Mais do que indignar-se quando isso acontece tão próximo de nós, exige que façamos uma profunda análise de consciência do porquê isso acontece com tanta frequência no tempo que se chama hoje.

Uma rápida digressão histórica sobre os apontamentos e registros policiais de cinquenta anos atrás, difícil a comarca que não tenha registrado casos de assédio, raptos, defloramentos, curras, agressões e estupros de mulheres, sobretudo quando jovens.

Fruto de um mundo patriarcal de configuração machista onde o indivíduo masculino manteve-se sempre no topo da cadeia alimentar do poder e mando nas sociedades emergentes pelo interior deste país, tal realidade sempre foi vista com complacência pela moral e a frouxa legislação de uma época que encarava esses delitos, classificando-os como de pequena monta, tipificando-os apenas como contravenções penais, quase nunca alcançando os agressores para puni-los.

Nos últimos tempos, entretanto, a despeito das mudanças na legislação que se tornou mais rigorosa, dando espaço para inovações na penalização de crimes que passaram a ser hediondos, sobretudo aqueles praticados contra a mulher, a criança e o adolescente, o idoso, contra a injuria racial e o racismo, entre outros avanços que ocorreram, ainda assim, a ferida permanece aberta. A mácula da discriminação e da violência praticada contra esses segmentos historicamente excluídos e ocultado das pautas e políticas públicas de segurança, permanece exposta, merecendo apenas, em doses homeopáticas, a preocupação social do Estado.

No fundo da aldeia, no quarto insalubre do barraco, no descampado aberto ou areão da estrada, pelos confins do cerrado e becos lúgubres das cidades, altas e baixas, lá se encontra a inocência, diuturnamente arrancada, dilapidada e morta, como se amordaçada estivesse.

É o medo que a consome. O medo do antes e do depois. O medo gritar e não ser ouvida. O medo de falar e não ser entendida. O medo de chorar e não ser acolhida.

Uma inocência quando violada em sua intimidade; uma criança quando vê descobertos seus segredos e sonhos; um adolescente quando forçado a trilhar caminhos que não deseja; um jovem quando pressionado a conviver com a contradição e o jogo das aparências.... Sim, ele tem razões de sobra para desacreditar na vida, na humanidade, na família, tornando mortal sua existência, fazendo-o acreditar em mais nada. Até em mãos bens intencionadas que buscam alcança-lo no oceano existencial desta travessia.

Para quem tudo sabe, assiste e contempla, a indignação e a repulsa é o primeiro passo, porém, insuficiente. É preciso ir além.... Mas quem? Se os olhos que tudo podiam ver, teimam em se manter fechados, fingindo que tudo está bem?

São mães que, descuidadas, não colocam reparo na filha, usada e abusada pelo marido na sua ausência. São mãe que, desatentas, não percebem a recusa da filha em abraçar o tio ou o avô, e insiste para que a enfant o faça, exponho-a ao constrangimento. São mães que, coniventes, para não perder seus parceiros, toleram as investidas furtivas e sórdidas do padrasto sobre os seus inocentes.

O medo estampado no rosto da criança e da jovem que sofreu abuso, ao não encontrar ambiente e confiança para abrir seu coração e relatar o que acontece quando a mãe sai, quando vai passear com o pai ou padrasto, quando fica na casa de conhecidos, por fim, quando todas as portas se fecham, ela se resigna e cala.

Somente seus olhos e gestos agora falam um pedido de socorro. Com o tempo, sentindo-se segura, irá confidenciar seus segredos com a melhor amiga. Quando em idade escolar, seu jeito de falar e ser, podem denunciar o que ocorre, tudo dependendo, entretanto, da sensibilidade rara do professor atento em sala de aula.

O acolhimento e o apoio psicológico, imprescindíveis, é o que, de um lado, o Estado deve oferecer. E de outro, o braço da Justiça que deve alcançar o monstro a partir da denúncia e retirá-lo do convívio social. Aos familiares cumplices dessa insanidade doméstica, igualmente, o rigor da Lei também se espera.

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Segundo dados do Ministério da Saúde, a maior parte das vítimas de estupro é constituída de crianças e adolescentes, em torno de 70% dos casos denunciados. Os agressores mais recorrentes são membros da própria família ou pessoas do convívio da vítima.

A conscientização sobre o dever humanitário de denunciar esses casos é fundamental para que mais agressores sejam punidos, e se possa ir além da indignação, estancando o medo, a dor e a lágrima de uma alma ferida.

Brasilândia/MS, 15 de agosto de 2023.


Foto/Fonte: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/stj-reconhece-estupro-de-vulneravel-incitado-por-meio-virtual 



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