As lembranças, os saberes indígenas e o desafio da montanha.
Carlos Alberto dos Santos
Dutra
O destino era chegar no encontro da Ação Saberes Indígenas na Escola que acontecia no prédio da Unidade 1, da UFMS, em Aquidauana. Lá se encontravam reunidos, além de professores e técnicos da universidade, coordenadores e formadores indígenas que integram o pool de escolas indígenas que reúne povos das etnias Terena, Kadiwéu, Guató, Ofaié, Kiniknau, Laiana, entre outros povos originários do Pantanal.
O carro onde me encontrava deslizava suave pela BR-262 em direção à Aquidauana. Depois de rodar 498 km e contornar as cidades de Bataguassu, Santa Rita do Pardo e Campo Grande, por seus anéis viários, eis que uma reta infinita se apresenta a minha frente apontado direção rumo a Corumbá, deixando de lado as saídas para Bonito, Miranda e Bodoquena.
O trajeto aos poucos vai deixando o bioma cerrado para trás. O mesmo acontece com as pastagens, criações de gado e alguns pés de eucalipto que já se avizinham por ali. A paisagem se modifica rápido na medida em que se aproxima de uma imponente montanha, verdadeira muralha que contorna a paisagem que se agiganta sobre quem chega: a majestosa cordilheira de cerros, de mais de 600 quilômetros de extensão, que integra a serra de Maracaju.
Foi como se um imenso portal de natureza se abrisse permitindo, de súbito, que o visitante adentrasse aquele lugar singular e lhe fosse autorizado a contemplar a beleza natural do bioma do lugar. Aqui começa o Pantanal, anuncia uma placa à beira da estrada. Foi aí que meu olhar se encantou, não somente com a beleza que eles viam, mas com o significado que tudo aquilo representava para mim.
Contemplar o apelo que emanava de painéis indicativos de locais como Cachoeirão, Palmeiras, Piraputanga, Paxixi e Camisão, era como voltar ao passado de mais de 30 anos quando, ainda jovem, por estes lugares andei. Ouvir o murmúrio das águas do Aquidauana, Buriti e Taquaruçu era como fazer a trajetória de minha própria história e ver o quanto os anos passaram. Para mim, somente.
A natureza que se descortinava evocando o passado a minha frente, entretanto, permaneceu a mesma: intocada, com a mesma força e beleza de outrora que a perenizou no tempo. Com a mesma imponência e consciência que continua representando para aqueles que a contemplam, mesmo numa rápida passagem.
E lá se encontra ela como pilastra. Na medida que o carro avança na sinuosidade da estrada, revela um pouco de si, sua potência, resistência e resiliência ao longo de eras, submetendo-se à intemperismos e metamorfoses que datam milhões de anos. Tudo lhe conferindo solidez escarpada pela vegetação nativa que lhe cobre e protege.
Pois foi motivado por esse sentimento icônico e prenhe de significados que dele emergiam, que meus pés adentraram a sala onde o encontro da Ação Saberes Indígenas na Escola acontecia. E ela, aquela serra e seu portal de entrada, ali se encontrava. Não a presença física de seus contornos vulcânicos e sedimentos, mas a força e robustez de sua imagem que pairava sobre o ambiente acadêmico.
Grupos indígenas falando e evocando suas ancestralidades, apontando rumos para a educação em suas comunidades. Professores, coordenadores e formadores indígenas posicionando-se com ousadia e coragem, diante do desafio de romper barreiras e mostrar ao mundo o quanto de conhecimento e sabedoria possuem, bem como o direito de ministrarem uma educação diferenciada, específica, bilíngue, intercultural e comunitária a seus curumins.
À semelhança daquele portal natural que permitia ao viajante no rumo da estrada, adentrar a uma nova realidade ambiental preservada a sua frente, aqueles indígenas faziam o mesmo naquele lugar. À semelhança daquela serra de Maracaju abriam-se para o Estado e Governos para dizer que não precisam provar nada para mostrar o que são.
Imemoriais, porque eles têm consciência de suas histórias e seus saberes. Originários, porque, por vezes, têm de conclamar à desobediência para se fazerem ouvir. Ancestrais, porque buscam nas suas raízes a revolução necessária em face das práticas pedagógicas tradicionais que lhes foram impostas ao longo de cinco séculos. Perenes como o vento, sempre em movimento, porque anseiam alcançar novos ares e sobreviver.
A semente lançada pela Ação Saberes Indígenas na Escola, iniciada no Estado de Mato Grosso do Sul a pouco mais de 10 anos, deu e está dando frutos com a formação de mais de 300 professores indígenas que alcançam, por meio do ensino superior da Licenciatura Intercultural e outras áreas do conhecimento em nível de graduação e pós-graduação, ofertados por UEMS, UFMS, UCDB e UFGD, o que lhes garante condição isonômica com os demais professores, na disputa de força e poder que têm de enfrentar.
Iniciativa do Ministério da Educação (MEC) que, além de promover a formação continuada de professores indígenas, com foco no letramento, numeramento e conhecimentos específicos de cada povo, esta ação vai mais longe. Reforça em cada professor o direito de praticar em suas escolas os seus processos próprios de aprendizagem e princípios do Saberes Indígenas, o que lhes garante respeito e autonomia.
Ânimo que os alimenta sonhar ver sendo praticado por todos os professores esse direito reconhecido pelo Estado, de mostrar a beleza e a relevância do saber indígena, tal qual a grandiosidade da serra de Maracaju e seu portal de natureza que se abre
para o conhecimento universal e cósmico do Saberes Indígenas na Escola, vencendo o desafio da montanha.
Brasilândia/MS, 26 de
julho de 2025.
Fotos:
Carlos Dutra; Estrada
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