domingo, 14 de abril de 2024

 

Homenagem ao desportista Professor José Cândido da Silva

Carlos Alberto dos Santos Dutra



 

1.              O esporte no Brasil e no mundo é paixão. Mexe com o coração não só dos atletas, mas também daqueles que torcem por eles nas arquibancadas.

2.              Aqui em Brasilândia isso não seria diferente. O amor pelo esporte, principalmente pelo futebol, sempre embalou as alegrias desta comunidade. Desde seu nascimento, o esporte esteve presente ao longo dos mais de 50 anos de existência desta cidade.

3.              Simples e criativo, para sua prática, bastava uma bola, mesmo que de pano, para ser jogada num campinho qualquer. Desde a pelada que era disputada na terra batida do bairro distante da cidade até o campo gramado das fazendas, especialmente preparado para os dias de festa e congraçamento dos funcionários e seus familiares, tudo era uma festa.

4.              A homenagem que fazemos hoje tem início de forma simbólica com a trajetória de uma bola que é arremessada pelo tempo, rolando pelo campo dos sonhos, em direção ao gol. Depois de passar por vários pés e ser tocada com habilidade e maestria por um atleta e seus dribles, eis que ela chega ao fundo da rede, objetivo final da partida, para orgulho e delírio da torcida ao ver mais uma vitória conquistada pelo seu time e seu atleta preferido.

5.              O jogador agora curva-se para o campo e segura nas mãos a bola que lhe dá o título. Contempla a pelota e seus gomos, antes multicoloridos e hoje já desgastados pelo tempo; mesmo assim a abraça num gesto de carinho e gratidão. Sente o seu calor e, ao longe, é como se ouvisse as vozes do passado que o alcançam, golpeando-o na emoção.

6.              Era como se tivesse ouvindo uma voz dizendo: --passa a bola Zé. Parecia ouvir os colegas do times de futebol que participou repetindo: --passa essa bola Zé.

7.              O atleta, agora, volta a ser um menino. Um menino que na infância corria seminu e descalço pelas ruas da cidade. Sim o menino que sonhara um dia ser jogador de futebol aos pouco ia se encontrando com seu destino.

8.              Aos 12 anos de idade, ele corre ao redor do gramado vendo seu pai, Joaquim Cândido, às voltas com a presidência da associação que fundara, o Brasilândia Atlético Clube-BAC, que arregimentava a elite dos atletas e formava o time de estrelas do futebol de campo da Costa Leste do Estado.

9.              Time que teve a ousadia de ostentar a garra e supremacia de ter conquistado o feito inédito de 33 vitórias consecutivas permanecendo invicto durante um largo período no anos 1990.

10.       Mas o sonho de José Cândido estava apenas começando a ser escrito na história das fileira do esporte brasilandense. 

11.       O atleta e administrador experiente, hoje, corre a passos lentos pela linha lateral do campo. Afinal, 73 anos se passaram desde que seus pais, Joaquim Cândido e dona Joana Maria, o tomaram nos braços cheios de alegria no dia 20 de maio de 1950 na vizinha Guaraçaí/SP, onde nasceu.

12.       Depois de terem morado em Planalto, Murutinga do Sul, Santa Fé do Sul e Guaraçaí, no estado de São Paulo, sua família fincou raízes em Brasilândia, instalando-se, no ano de 1956, nas margens do Córrego Bom Jardim cujas águas fartas nesta época irrigavam as roças e enchiam de esperança àquela zona rural.

13.       Foi nesta Cidade Esperança que o menino recebeu o apelido de Zé Paçoca, em razão de ter trabalhado  como vendedor de doces de amendoim moído na juventude.

14.       Foi aqui que ele aprendeu as primeiras letras no Grupo Escolar Arthur Höffig, estudando da 1ª a 4ª série. Depois, prestou exame de admissão para ingressar na 5ª série estudando até a 8ª série no Ginásio Estadual Dom Lúcio Antunes, na cidade vizinha Panorama/SP, fazendo a travessia arriscada pela balsa do Rio Paraná que neste tempo ainda corria rápido, livre e forte.

15.       Os ano se passaram e ele sempre conciliando os estudos com o esporte. Até o momento de se ver transformado num homem, para a alegria e orgulho da única irmã caçula, Áurea que sempre o incentivou.

16.       Licenciado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Ministro Tarso Dutra, de Dracena/SP, formou-se professor de Português e Inglês vindo a lecionar na cidade que o viu crescer.

17.       Aqui casou e constituiu família. Inicialmente ao lado da professora Célia Maria, falecida em 2017, com quem teve os filhos: Adriano, Adriana, Gislaine, e Franciane. E depois, ao lado de Aparecida de Fátima, com quem teve a filha Letícia. Hoje José Cândido é avô e encanta-se com os netos: Everton, Luiz Carlos, Camila, Gustavo, Carolina, Leandro, Andressa e Júlia.

18.       O início de sua carreira de professor deu-se no antigo Mobral no ano de 1968 quando passou a ministrar aulas no km 3 da barranca do Rio Paraná na Escola chamada Três Botecos.

19.       Anos mais tarde, escreveu a primeira biografia do município de Brasilândia, narrativa que pode ser considerada a história oficial do município.

20.       Em 1986 teve a participação decisiva na fundação da Associação Brasilandense de Professores-ABRAP que deu origem ao atual SIMTED.

21.       Sua vocação para a política nasceu vendo o desprendimento de seu pai, Joaquim Cândido, quando ele andava a cavalo, atravessando campos e roças, em busca de votos durante as campanhas eleitorais.

22.       Foi assim que o menino José Cândido, muito cedo, aprendeu como lidar com partidos, siglas e coligações políticas. Expertise adquirida que lhe garantiu ter sido eleito e permanecido como vereador e presidente da Câmara Municipal por 5 mandatos e uma prorrogação, totalizando 22 anos como legislador.

23.       Presidente do partido PDT por vários anos, foi prefeito de 1989 a 1992, sob o lema Dedicação e Fraternidade. Foi também candidato a deputado federal em 2002 conquistando o 1º lugar no município e 37º do Estado.

24.       Como chefe do Executivo municipal, José Cândido foi responsável por muitos feitos em sua administração que ainda hoje são lembrados pela população: Um dos mais marcantes é ter reconstruído o Cruzeiro, monumento originalmente instalado pelo fundador de Brasilândia Arthur Höffig, e que representa o marco histórico da fundação do município.

25.       Fruto de sua larga experiência política, seu jeito natural e ao mesmo tempo peculiar de agir ganhou o imaginário popular tornando-se uma figura folclórica agregando o apelido de Zé Rojão, pelo fato de chamar a população, quando da chegada de autoridades, inaugurações e eventos da municipalidade, por meio de fogos de artifícios, cujo som dos foguetes informava todos os munícipes.

26.       Entre suas realizações estão também a criação da Secretaria Municipal de Agricultura; o Centro Profissionalizante do Menor, e a Corporação da Guarda Mirim.

27.       Deu impulso também à Fanfarra Simples de Brasilândia, refundando a FAMBRA, criada 1983,  despertando para a música e o sentimento de patriotismo às crianças e jovens daquela época. Isso sem falar do Carnaval que era uma festa que ele sempre incentivou trazendo bandas para animar os foliões.

28.       Foi na sua administração também que a Prefeitura Municipal de Brasilândia ganhou sede definitiva, quando as dependências da antiga Escola Estadual Pedro Pedrossian, foram reformadas e ampliadas sendo transformada no Paço Municipal.

29.       Os olhos deste administrador, entretanto, nunca descuidou de seguir o rumo de seu coração que o levava aos campos, aos jogadores e à bola.

30.       Retroage o relógio do tempo e lá  encontramos o atleta José Cândido participando dos campeonatos amadores, quando a seleção de Brasilândia era representada pela equipe do Brasilândia Atlético Clube – o BAC, o time de maior brilho da região.

31.       E recorda a partida contra o time do Jupiá Esporte Clube, quando o BAC estreou dois jogadores que se tornariam referência no futebol em Brasilândia: o lateral André e o ponta-esquerda Fogoió.

32.       Este foi um dos maiores méritos de José Cândido: o de apostar no talento de um atleta que, entre tantos servidores que se dedicaram à área do esporte, trouxe as maiores alegria para Brasilândia: Everaldo Vieira da Silva, o popular Fogoió. Foi quando o BAC ressurgiu pelas mãos do ex-vereador Samuel Ramos Lopes, popular Biro-Biro.

33.       Tempo de glória do esporte, o futebol de campo era presença obrigatória nas Festas do Peão, quando as partidas que eram realizadas no imortal estádio Joaquim Cândido da Silva, lembra com saudade o antigo atleta ao ver o antigo estádio hoje envolto em sombras do desprestigio.

34.       Ah. Que orgulho sentiu quando deu entrada na documentação para o BAC ingressar na Liga e poder disputar o campeonato amador em Três Lagoas em 1989.

35.       Tantas partida e lembranças que marcaram a memória do BAC quando este time chegou a jogar até três partidas numa tarde pelo campeonato de veteranos da Liga de Três Lagoas.

36.       E ele estava lá, até mesmo na época quando as cores antigas, preto e branco, das camisas do BAC ganharam as cores o azul e o branco.

37.       Além do BAC, onde José Cândido atuou como ponta-esquerda, honrando o time com a camisa 11, ele também participou do CRB – Clube Recreativo Brasilandense, em 1990 e do BEC – Brasilândia Esporte Clube. Sobre a quantidade de gols que praticou, por modéstia, ele não arrisca a dizer.  

38.       Sempre atento às necessidades do esporte, inaugurou em 1989 a chamada Casa do Atleta, como era o Departamento Municipal de Desporto. E foi o grande incentivado do segmento feminino do BAC, com a criação do BRASAC que brilhou por décadas projetando o esporte das meninas de ouro em várias modalidades.

39.       Entre os eventos que o atleta-prefeito deixou sua marca está o célebre jogo entre as mulheres Solteiras x Casadas, ocasião em que as atletas foram saudadas no início da partida por uma bateria de fogos, bem ao estilo da época.

40.       Como já dissemos, o futebol é paixão. E as manchetes dos jornais estão aí para provar: quando o BAC ganhou de 1x0 do Frigotel, o jornal de Três Lagoas estampou: Frigotel não admite perder para o BAC! Isso aconteceu no dia 23 de maio de 1990.

41.       Fato curioso neste dia de festa quando se enfrentaram: Empaer, Bandeirantes, Xavantes, Bamerindus, Sucateiros, Cafezinho, Baixada Santista, Indiana Supermercados, República dos Anjos e Ginásio, o artilheiro deste torneio foi Biro-Biro e o prêmio de goleiro menos vazado foi para o nosso atleta José Cândido. 

42.       O redemoinho do tempo envolve a todos e o nosso homenageado respira fundo ao relembrar sua história de vida que deixou para trás. São tantas realizações e alegrias sentidas que é impossível recordar uma a uma.

43.       A maior de todas as alegrias, sem dúvida, no campo do esporte, foram os grande momento vividos em que pisou o tapete verde, verdadeiro campo dos sonhos onde cultivou amigos e ali pode ser admirado pela torcida que o aplaudia.

44.       Sobre sua maior tristeza e momento de dor familiar, foi quando viveu o falecimento de sua mãe, dona Joana Maria, aos 88 anos, e o falecimento do pai, Joaquim Cândido, que faleceu com apenas 52 anos de idade.

45.       No mundo do esporte, por fim, o desencanto do santista José Cândido vai para o estado de abandono em que se encontra o imortal Estádio Municipal Joaquim Cândido da Silva, nos dias atuais, carente de reformas e manutenção.

46.       Pequeno desgosto que o atleta-prefeito de outrora, busca esquecer, ao som da música sertaneja que embala os seus dias atuais de aposentado.

47.     Acordes sonoros que o animam a sorrir e estender as mãos em agradecimento à Deus pela homenagem que lhe é prestada neste dia. 

Obrigado Associação Recreativa Master-ARMs. 

Parabéns José Cândido da Silva.


Brasilândia/MS, abril de 2024.

sábado, 6 de abril de 2024

 

O diálogo dos Ofaié com Aílton Krenak
Carlos Alberto dos Santos Dutra




Tratava-se de um diálogo sobre relações e resultados sustentáveis. Os atores, representantes dos mais diversos segmentos organizados das comunidades de Três Lagoas, Selviria, Brasilândia, Água Clara e Ribas do Rio Pardo, no Mato Grosso do Sul,  em condição de igualdade sentaram-se com a empresa Fibria e seus mais altos dirigentes. E assim, de forma franca e aberta, se propuseram a falar e escutar, convencida essa última, de que o diálogo é o melhor caminho.

E lá também estavam eles, aqueles representantes de um povo miúdo e de cor escura, misturado a outras tribos urbanas e rurais, de gênero e propósitos econômicos e sociais diversos naquele encontro memorável. Perceberam logo que o objetivo dos tais diálogos construtivos era o de aprimorar as operações e relações da empresa anfitriã, mas também perceberam o alcance e a humanidade deste gesto que lhes permitia colocar a pequena comunidade Ofaié, na pauta dos empreendimentos e preocupações futuras desta grande empresa.

Bem acolhidos e respeitados por todos, o cacique José de Souza, o Kói Ofaié, ouviu atentamente as palavras do Sr. José Luciano Penido, presidente do Conselho gestor da empresa. Também teve a oportunidade de lhe falar reservadamente um pouco de sua história, suas lutas e o sonho do seu povo. Sentiu-se valorizado em poder expressar sua opinião sobre o que os povos indígenas entendem por biodiversidade, tema de estudo no encontro.

Além do cacique, lá estava também Silvano de MoraesHantar-hec Ofaié, jovem professor da aldeia Anodhi, que falou na plenária revelando os principais anseios dos estudantes indígenas dos dias atuais, que navega entre o acesso à tecnologia e os valores da modernidade, sem contudo, descuidar da história, dos costumes e dos valores que os identificam como etnia diversa da comunidade nacional.

Todo aquele universo de pessoas e informações, neologismos e vocabulário especializado responsável pela quebra de paradigmas e dos modelos mentais cada vez mais exigentes e transformadores da realidade através da construção coletiva de novas ideias e aplicação de práticas sustentáveis, tudo isso foi de um valor inestimável: --aprendi demais! confessou-me Kói.

Mas a aula só ficou completa quando um parente distante do povo indígena ergueu a voz no decorrer do encontro. Tratava-se de Aílton Krenak, tido como embaixador dos índios entre os brancos brasileiros. Nascido em Minas Gerais, em 1954, esse líder indígena é jornalista e produtor cultural. Alfabetizou-se aos 18 anos e na década de 80, passou a se dedicar exclusivamente à articulação do movimento indígena. Em 1985, fundou a ONG Núcleo de Cultura Indígena (NCI) e em 1987, em meio às discussões da Assembléia Constituinte, foi autor de um gesto que comoveu a opinião pública: pintou o rosto de preto com pasta de jenipapo enquanto discursava no plenário do Congresso Nacional, em sinal de luto pelo retrocesso na tramitação dos direitos indígenas.

Pois foi essa figura rebelde que participou da fundação da União das Nações Indígenas (UNI), do movimento Aliança dos Povos da Floresta e da criação da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço e hoje é um dos mais conhecidos líderes indígenas do Brasil, atuando como assessor para assuntos indígenas de governos e empresas, que brindou a todos com uma bela e profunda reflexão sobre o permanente diálogo construtivo que é travado no dia-a-dia. E falou como um legítimo pensador do mundo contemporâneo desafiador que vivemos.

Para os Ofaié foi um momento especial, sobretudo quando tiveram a oportunidade de entregar ao indígena Krenak, o livro O território Ofaié pelos caminhos da história, que descreve a saga vivida por este povo ressurgido. No contorno do principal ponto turístico de Três Lagoas, a Lagoa Maior, lá estava o autor do livro, o Prof. Carlito, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasilândia, João Brito de Souza, o ilustre visitante Ailton Krenak e José de Souza, cacique Ofaié autografando e narrando a história de seu povo àquele patrício mineiro.

Na paisagem de fundo, a imagem não captava as palavras, somente a beleza plástica colada na lente da objetiva, quando muito registrou o gesto impregnado na digital que viajou célere pela internet informando e comunicando o evento ocorrido. O que permaneceu, entretanto, foi o som das aves, os olhares, a aproximação, o paieiro furtivo montado ao som do vento e trocado de mão, o sorriso, a lembrança e a presença daquele totem imponente de braços abertos expressando liberdade. E acima de tudo, a certeza, numa frase lapidar de Aílton, perfeitamente aplicável ao encontro, dita como se fosse um velho paí Ofaié de outros tempos: No dia em que não houver lugar para o índio no mundo, não haverá lugar para ninguém.

O menino da família Krenak observa as fotos antigas dos Ofaié e a memória corre livre de volta a sua aldeia, lá no Vale do Rio Doce, quando não há muito tempo ela beirava umas 100 famílias. O número contrasta com a realidade dos Ofaié que hoje reúne apenas 25 famílias. Não contrasta, contudo, a esperança redobrada que os une, como povos indígenas que há séculos vêm buscando dialogar e fazer frente ao etnocídio praticado ao longo da história desde os tempos colombianos.

E, assim, pacientes, lá estavam eles, na margem dos rios Sucuriú, Paraná, Verde, Taquaruçu e Pardo, correndo nus pelo cerrado, praticando suas danças e rezas, manejando arcos e cajás, caçando e coletando frutas e o mel silvestre que tanto apreciam. Demonstrando, hankrägani, que desde há muito dialogam com agã-chanagui, e persistem praticando o melhoramento genético de plantas e domesticando bichos, até os dias de hoje, em permanente diálogo com o meio ambiente e seu entorno, como fizeram seus pais e avós.

Diálogo --hoje descobrimos--, cada vez mais necessário para a sobrevivência de todos. Diálogo que ensina e aprende a construir relações de respeito e resultados sustentáveis para o homem e a natureza. Dinâmica, aliás, onde os Ofaié e Krenak, e mais de uma centena de povos indígenas, se sentem todos sábios professores.

  

Redigido originalmente em 29 de agosto de 2012 e publicado em http://www.agorams.com.br/jornal/2012/09/o-dialogo-dos-ofaie-com-ailton-krenak/  (1º/09/2012)
Fotos: Simone Prati, 2012.
















quarta-feira, 3 de abril de 2024

Adeus amiga Maria Inês, professora Solidária

Carlos Alberto dos Santos Dutra










Recebo a notícia do falecimento da amiga Maria Inês da Silva, com um aperto no coração. Embora saibamos que a todos nos reserva este destino, no caso desta senhora, algo mais profundo nos revela o legado de seu ser para o aprendizado dos dias que ainda nos restam.

Às voltas com minhas escritas, havia lhe dedicado especial lugar na coleção que estou escrevendo sobre a História e Memória de Brasilândia, no campo de atuação que ela se dedicou ao logo dos anos: a família, a educação e a pastoral. A intenção era homenageá-la em vida, mas assim não quis Aquele que lhe reservou derradeiro encontro com a Vida, antecipadamente; porém, de certa forma, aliviando suas dores e brindando-a com flores.

Mulher ativa e atuante, desde a sua juventude, foi professora ministrando aulas na antiga Escola Bom Jardim. No vigor de sua juventude, lá se encontrava a professora atendendo seus aluninhos, onde mantinha sua turma multisseriada, na condição de professora leiga. Recorda que lá também lecionaram a Profª. Úrsula Galdino, o Prof. José Quintino, e a Profª Edair, filha do Sr. José da Cana, nesta escola dedicada a receber alunos oriundos de sítios e fazendas, num tempo em que as distâncias eram vencidas a pé pelos alunos que enfrentavam a poeira das estradas para chegar à escola.

Em voz compassada e didática, dona Maria Inês recorda que começou a estudar no Ginásio. Lá tinha o Supletivo. Sente uma aura de felicidade e modesto orgulho ao lembrar que entrou com 35 anos na 5ª série formando-se no Magistério. Depois fez Pedagogia em Dracena/SP e pós-graduação no curso de Psicopedagogia em Aparecida do Taboado/MS.

Mulher vencedora naqueles tempos primeiros, era natural de Val Paraíso/SP, tendo nascido no dia 3 de novembro de 1946 numa família de quatro irmãos. Chegou a Brasilândia aos 10 anos de idade, entre 1956 e 1957, residindo com seus pais (Manoel e Benedita) inicialmente numa fazenda, adiante da Fazenda Califórnia, a Fazenda Queluz, aquela que tinha uma luz que brilhava que nem ouro, diziam.

Casou com seu Adenor, no Civil, no Cartório de Santa Rita do Pardo. Ao que parece o tabelião era o Sr. José Ferreira, lembra. A cerimônia religiosa de seu casamento ocorreu muitos anos depois, em Água Clara, numa fazenda, num dia de batizado. Ela era madrinha de muitas crianças da zona rural, e o padre da época realizava missa, batizado e casamento de todo mundo na região. Lembra que o seu sogro pegou o carrinho, colocou a família dentro e se tocou para o local, onde casou a filha e festejou o casamento e batizado dos conhecidos que lá também se encontravam.

Depois de passar algum tempo morando em Panorama/SP, para onde o casal foi em busca de serviço, voltou para Brasilândia, desta vez fixando residência na Fazenda Almeida, do Dr. Anísio Gomes de Almeida, no plantio de café e exploração do gado leiteiro. Morando na colônia da fazenda que reunia mais de uma dezena de famílias, ministrava catequese que também alcançava a todos os moradores da Linha Jardim. Durante os 11 anos que lá permaneceu, já no tempo do padre Lauri Vital Bósio, foi lá que fez sua primeira comunhão.

Na Fazenda Queluz lembra que ministrou durante seis anos aulas como professora leiga antes de vir para a sede do município e começar a dar aula na Escola do Bom Jardim cujo diretor na época era o Prof. Luiz Barbosa. Depois, quando começaram a puxar alunos da rede escolar para a sede do município e a escola foi desativada, eu já havia sido afastada do cargo, conclui.

Com o passar do tempo, mesmo depois de aposentada manteve-se atuante nos assuntos que dizem respeito à educação, a assistência e o trabalho comunitário. Convidada a participar no Conselho Municipal de Saúde, sempre foi um membro atuante e proativo, semeando de forma pedagógica luz e discernimento. Por vários anos foi representante dos usuários como membro titular deste Conselho representando a organização social Pastoral da Criança.

Mas a virtude de maior envergadura que pode ser conferida à dona Maria Inês foi: primeiro, sua preocupação e perfil solidário que a acompanharam desde a juventude. E, segundo, sua sede de saber sempre mais, não esmorecendo devido às dificuldades. Foi o que revelou ao participar do grupo assistencial leigo criado em Brasilândia com o nome de Comunidade Solidária.

Não por ser a mais antiga e idosa do grupo, mas por carregar nos ombros e no coração uma história de vida que é exemplo para muitos. Na época, com 73 anos de idade, ela relembrava a quem se dispunha a sentar e vê-la contar, pausadamente, um pouco de sua trajetória. Imobilizada em um sofá, onde se recuperava de uma enfermidade que lhe impedia de caminhar, pois lhe privou os movimentos da perna, ela permanecia uma pessoa alegre e preocupada com o murmúrio da vida à sua volta.

E lá a encontramos recordando o artesanato, os pomponzinhos e bordados que faziam, o trabalho com cerâmica, linhas e crochê. Lembra com carinho as colegas ReginaMaria Rosa e outras colaboradoras como dona Leonor, a Helena, e uma mocinha nova que não recorda o nome..., ela que sempre foi secretária nas entidades que participou, talvez pela sua formação de professora.

Seus olhos se enchem de lágrimas quando recorda o momento que recebeu a notícia que teriam de desocupar a sala onde atuavam, há tantos anos, praticando o artesanato e colocando seus produtos à venda, promovendo a solidariedade entre os paroquianos e comunidade carente em geral... Dada a ordem para desocupar a sala da Comunidade Solidária e da Pastoral da Criança, junto com o material demolido viu perder-se um pouco da história do trabalho realizado por aquelas anônimas senhoras.

Mas essa mulher guerreira não guardava qualquer rancor, somente boas lembranças dos frutos que colheu no seu tempo de professora, no trabalho com a comunidade. E isso porque seu sonho ainda era maior: desejava se formar em nível superior. O que conseguiu anos mais tarde.

Dona Maria Inês, que havia estudado até a 4ª série, sim, tinha um sonho: concluir os seus estudos. Falou para o marido, e ele achou estranho, pois sua esposa já se encontrava com 37 anos de idade quando externou esse seu desejo. Mas, concordou. E lá seguiu ela, fazendo o trajeto desde a fazenda até a cidade, no ônibus que fazia o transporte dos alunos matriculados a partir da 5ª serie na rede pública municipal.

Durante seus estudos nunca reprovou. Quando chegava o 3º bimestre, já estava com quase todas as matérias com a média exigida, faltando um ou dois pontos para sua aprovação. Lembra que enquanto as outras colegas ficavam em recuperação ou de exame, ficando para trás, ela graças a Deus se formou no Colegial, que naquele tempo era o Magistério, observa.

Seu aprendizado não parou por aí. Em 1988 o casal havia deixado a fazenda e se mudado para a cidade. Concluído os estudos, sempre com brilhantismo, passados dois anos, fez o curso de Auxiliar de Enfermagem, passando em primeiro lugar no processo seletivo na época, começando a trabalhar no Hospital Municipal Dr. Júlio César Paulino Maia, inaugurado naquele ano, tendo sido uma das primeiras enfermeiras que lá trabalhou ao lado das colegas JucelinaCidinhaJoana, entre outras que participaram deste curso na época.

Logo que entrou no Hospital colocaram-na para trabalhar no Berçário, onde trabalhou por dois anos, tendo embalado e zelado por uma centena de crianças que por lá passaram. Ah, como gostava de trabalhar naquele lugar, cuidar dos bebezinhos, mesmo estudando a noite, pois logo ela já estava num novo projeto de vida.

Na gestão do prefeito José Cândido da Silva, ao saber das habilidades da Profª Maria Inês, ele determinou que aquela enfermeira, colega professora, fosse transferida para a Escola Municipal Arthur Höffig. Indiretamente, fez um favor para dona Maria Inês, pois lhe ascendeu novamente o desejo de estudar... E lá foi ela prestar o vestibular aproveitando a bolsa de estudos que a Prefeitura fornecia aos alunos que se dispusesse a qualificar-se com um curso superior... (1).

Relembrar a grande mulher que foi dona Maria Inês, neste momento de pesar e sentimento pela sua partida, é a maior homenagem que podemos fazer. É o que externamos neste momento de tristeza pelo passamento desta virtuosa mulher, professora Maria Inês da Silva, que colocou sempre à frente os sonhos que a tornaram feliz. Descanse em paz, professora solidária.


(1) O final desta e outras histórias encontram-se no livro História e Memória de Brasilândia, Volume III, Cidadania. Este texto foi publicado originalmente em 03 de abril de 2020 no portal https://www.institutocisalpina.org/professora-maria-ines.... E republicado em 03 de abril de 2021. Disponível em DUTRA, C.A.S. Quando eu me chamar saudade, vol.1, 2021, pág. 159. Quando eu me chamar saudade, por Carlos Alberto dos Santos Dutra - Clube de Autores

 

 

segunda-feira, 1 de abril de 2024

 

A Ditadura, a Comissão da Verdade e a Esperança Ofaié.
Carlos Alberto dos Santos Dutra





Há 10 anos, entre os dias 24 e 26 de abril de 2014 foi realizada na cidade de Dourados/MS, a IIª Sessão de Audiência da Comissão Nacional da Verdade, especialmente instalada para ouvir os relatos de violação dos direitos humanos praticados por agentes públicos contra os povos indígenas no período em que o Brasil viveu seus anos de chumbo, entre 1946 e 1988, sob o manto verde-oliva da ditadura militar neste Estado.

Quando não, ao longo da história, e seguramente hoje, os povos indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul têm sido vítimas de toda sorte de violência: remoção forçada, expulsão de seus territórios, suicídios, assassinatos, agressões físicas, descaso e o preconceito, que representam nódoas no roteiro de uma história do Brasil que ainda é espúria e não reconhecida.

A história dos Ofaié é um desses casos que retrata a exclusão de um povo que, desde o período do Serviço de Proteção aos Índios-SPI, de 1913 até 1965, sofreu com a omissão do órgão oficial do Estado em relação à demarcação de seu território. Na cantilena dos anos que se seguiram, já sob a tutela da Fundação Nacional do Índio-FUNAI, ainda assim continuou sofrendo com a indiferença e a violação de seus direitos com a remoção forçada de seu território tradicional, quando foram levados, sob violência e humilhação, para uma terra distante de seus antepassados, lá permanecendo de 1978 a 1986.

Na ausência dos mais velhos, que já partiram, mas continuam enfeitando com cruzes o caminho do desterro desta nação -- Zé Tá, Ozena, Felipe, Xião, Alfredo, Sebastião, Francisca, He-í e outros --, coube na ocasião, ao ex-cacique Ataíde Francisco Rodrigues, o Xehitâ-ha Ofaié, fazer voz diante da Comissão Nacional da Verdade, e entoar-lhes o lamento desse povo de hábitos suaves e feições gentis, neste dia de tristeza memorável, quando as feridas voltaram a sangrar instigadas pela dor da lembrança.

Quanto a nós, cara pálida, cabe dizer que o caso Ofaié é a nossa maior vergonha, nosso maior pecado. Fruto de uma sucessão de erros da parte do Estado e sua política indigenista de apresamento e confinamento, resultou para este povo quase sua extinção. Se na época do general Rondon e do SPI os Ofaié chegavam a 2.000 pessoas, no período da FUNAI, em 1976, já estavam reduzidos a apenas 27 indivíduos.

No período do SPI: Só para se ter uma ideia dos desencontros governamentais e mentalidade da época, numa “Remessa” que recebeu o nº 237, de 19 de maio de 1949, o general Cândido Mariano Rondon, que pessoalmente sempre foi um defensor do povo Ofaié e que nesta época era presidente do Conselho Nacional do Serviço de Proteção aos Índios-CNSPI, escreve ao diretor do SPI enviando-lhe um documento contendo “informações sobre as terras dos índios Ofaiés” obtido do coronel Nicolau Bueno Horta Barbosa, então ex-chefe da Inspetoria Regional de Campo Grande-IR-5.

Neste documento, por razões desconhecidas, o coronel Horta Barbosa argumenta contra o profissional Pimentel Barbosa que “não teria podido fazer a demarcação legalmente autorizada, por falta de título de habilitação profissional”. Um ano após, em 8 de fevereiro de 1950, uma “relação dos atos do Governo do Estado de Mato Grosso, pelos quais foram reservadas áreas indígenas aos nossos índios” traz encartado o Decreto 683, de 8 de maio de 1924 reservando para os Ofaié 3.600 hectares (na região do córrego Samambaia), porém, após o documento ter sido examinado pelo coronel da reserva do Exército, Ramiro Noronha, e não ter emitido parecer algum, o dito documento tomou rumo ignorado, caracterizando, assim, a omissão do Estado não garantindo a área antes demarcada em favor dos Ofaié.

Como se não bastasse, o Governador do Estado de Mato Grosso, Fernando Correia da Costa, em 8 de maio de 1952, através do Decreto nº 1.302, revogou o Decreto 683/24 acabando de vez com as esperanças do povo Ofaié em ver seu imemorial território garantido. Não por acaso, dois meses antes da revogação do Decreto 683/24 e por uma estranha coincidência, o coronel Nicolau Bueno Horta Barbosa, ex-chefe da IR-5 escreve ao Sr. Wilson Barbosa Martins, como que dando sinal verde ao então, à época, candidato ao Senado Federal, que se mostrou interessado na compra dessas terras.

Escreve ele: “As terras em questão, não interessam aos índios, que, aliás, não se encontram mais nelas; são devolutas e por nenhum título a cargo do SPI (...)”. Logo no início de sua correspondência o coronel expressa ao “amigo” o desejo de limitar-se “ao essencial, que é não possuir a IR-5 nenhum documento relativo às terras onde estiveram umas poucas famílias indígenas (...) aqueles infelizes. E como constituirão um grupo caminhando para a extinção (...), jamais fui impulsionado a visita-los, ocupado que me achava com problemas bem mais urgentes (...)”.

Uma última referência do descaso e omissão do SPI em relação a este Decreto consta no levantamento cadastral das terras indígenas do Estado de Mato Grosso, apresentado em 27 de outubro de 1965 ao major-aviador, diretor do SPI em Brasília-DF, e que encerra com a sintomática observação: “vide Wilson Barbosa”.

O grupo sobrevivente de Ofaié que migraram da região Sul do Estado e se juntaram a um grupo mais antigo que vivia ao longo das margens dos rios Pardo, Taquaruçu e Verde, em 1952 foram expulsos no município de Três Lagoas-MT, por um particular que adquiriu do Estado (através da Superintendência das Empresas Incorporadas do Patrimônio Nacional-SEIPN), 600 mil hectares de terras incluindo a área da aldeia Esperança habitada por cerca de 200 Ofaié, no atual município de Brasilândia-MS.

Os Ofaié alojaram-se então nas margens do córrego Puladouro, afluente do rio Verde, no então município de Três Lagoas-MT. O SPI, à época, tomou conhecimento do fato, tendo inclusive prestado alguma assistência aos Ofaié pelo que se depreende do Ofício nº 289, de 3 de novembro de 1953 quando a IR-5 propõe construir “uma casinha em Rio Verde, na Aldeia dos Xavantes”. Tal documento, entretanto, trazia no título: “Correspondência enviada pela IR-5 à Diretoria, desde há muito e que não tiveram resposta”, o que nos permite avaliar o grau de (des)interesse que o assunto despertava no órgão indigenista oficial.

Ali se encontravam 58 pessoas conforme relato do inspetor Francisco Ibiapina da Fonseca, da IR-5, que visitou os Ofaié em Três Lagoas-MT, e confirmou a expulsão, porém nada foi realizado para reconduzir os indígenas ao seu antigo territórios nas margens do córrego Boa Esperança, conforme ouviu do relato dos indígenas e descreveu em seu relatório.

Registre-se, entretanto, que o citado inspetor chegou a encaminhar ao chefe do Executivo Municipal de Três Lagoas pedido de “valioso apoio” do Prefeito daquela cidade “junto às autoridades do Estado para legalização de uma área de terras” para os Ofaié. Foi a última (o)missão praticada pelo SPI, e que determinou praticamente a extinção deste povo, pois ali, num lapso temporal de menos de cinco anos, faleceram cerca de 40 indígenas, sendo que o restante, dois anos depois, retornaram para a antiga região do ribeirão Boa Esperança e Córrego Sete nos limites da fazenda que os havia expulsado.

No período da FUNAI: No período da administração da FUNAI, no Mato Grosso do Sul, o relato de maior violência contra os Ofaié prende-se à transferência forçada de seu território do município de Brasilândia para o município de Porto Murtinho, na serra da Bodoquena, no interior da Reserva Kadiwéu, ocorrido em 1978.

Episódio narrado e divulgado pelo próprio indígena Ofaié Ataíde Francisco Rodrigues, Xehitâ-ha como “testemunha do massacre”, na primeira parte do livro “Ofaié, morte e vida de um povo”, publicado em 1996 pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul-IHGMS, dá conta que o funcionário Jamiro, da FUNAI, em 1977 fez a primeira visita à aldeia Esperança. O cacique lembra muito bem de suas palavras: “dizendo que nós estávamos passando necessidade, passando fome, vivendo junto das vacas e todos morrendo à mingua. Que nós ‘precisava’ sair daqui e mudar para uma reserva onde só tinha índios, doado pelo governo federal. Segundo Jamiro, na reserva já tinha terra mecanizada, casas de materiais, cafezais, caça e pesca. E nós fiquemos animados pra sair de lá”.

Sete meses depois, no último dia do mês de julho de 1978, “outro funcionário da FUNAI, Dionísio Virgílio da Silva, chegou em nossa área e repetiu as promessas do Sr. Jamiro. Ele estava coordenando a operação com outras pessoas de Brasilândia”. Os índios acabaram sendo transportados de caminhão acompanhados de outros carros pequenos, relata Xehitâ-ha. Muitos índios fugiram e refugiaram-se nas fazendas do município. O delegado local teria realizado buscas pelos sítios mais próximos. Na cidade todos evitam comentar o fato até hoje. Enfim, em caminhão aberto (pau de arara), viajaram à noite chegando a Campo Grande às 8 horas da manhã. Após rápida parada, seguiram viagem e, às 14 horas chegaram à cidade de Miranda; comem ali uns “pães secos” e seguem viagem para “Campão” (como era conhecida Bodoquena).

Chegando ao destino, a Reserva Kadiwéu, nesta época em conflito com posseiros e fazendeiros, com a anuência do INCRA, narra Ataíde: “de repente o Sr. Jamiro veio nos receber. Nós ficamos revoltados. Aí perguntamos para o funcionário da FUNAI: Onde estão as casas que vocês prometeram? Sem responder à pergunta o funcionário disse: Vocês têm que se virar. Mas onde?, perguntamos: 'Vocês têm que expulsar os brancos' disse ele". Em igual condição encontravam-se também os indígenas Kaiowá que foram trazidos dias antes do Rancho Jacaré (de Laguna Carapã) e Guaimbê (região de Dourados). O Sr. Jamiro, funcionário da FUNAI, era o “terror dos posseiros, expulsando muita gente com suas táticas de jagunço...” relata o CIMI, na época.

O delegado da FUNAI responsável por toda essa violência praticada contra os Ofaié foi o Sr. Joel de Oliveira. Em meio à violência os Ofaié permaneceram ali oito anos. “O desrespeito contra os Ofaié era revoltante. Até mesmo pelos funcionários da FUNAI. Os mesmos traziam muita pinga para embriagar os Ofaié e depois se aproveitar de suas mulheres. Foram estupradas três meninas Ofaié: uma de nove anos, outra de onze anos e outra de quinze anos. Os estupradores foram dois índios e um branco (...). Ele ameaçou a quem falasse desse estupro, que mataria quem fosse". O jornal O Globo, de 25 de maio de 1983, denunciou esse fato.

O depoente olha o rosto da Comissão da Verdade e busca encontrar ali franqueza e sinceridade naquele olhar. Porque a "verdade", aliás, não repara vidas, não reconstrói sonhos; quando muito devolve a sensação de justiça, ainda que tardia e inócua. A lágrima que não corre mais no rosto do indígena – pois já chorou todas as dores que a vida pode suportar --, de súbito, por uma fresta do universo parece cair sobre a terra aplacando a ira e a poeira da estrada. É uma réstia de esperança fazendo rebrotar a vida: seu depoimento pode não reparar a história e os atos cometidos pelos agentes públicos, mas talvez possa conduzir a palavra "verdade" pela senda de outra, carregada de luz e que todo o ser humano alimenta: a Liberdade (2).

Fonte: (1) Dutra, C.A.S. Ofaié, morte e vida de um povo. Campo Grande: IHGMS, 1996,  p. 122, nota 137. (2) "Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém  que não entenda" (Cecília Meireles). Confira também os artigos: O território Ofaié e o conceito de poder e violência em Mato Grosso do SulO território Ofaié pelos caminhos da história. 
Fotos: Prof. Levi Marques, 2014.