sábado, 28 de janeiro de 2023

 

O dia que a ponte do Rio Verde caiu

Carlos Alberto dos Santos Dutra



 


Contar a história deste episódio que marcou a vida dos brasilandenses que têm mais de 50 anos requer que façamos uma pequena digressão histórica. Os anos eram mil novecentos e sessenta e o transporte coletivo entre Brasilândia e o vizinho estado paulista acontecia através da empresa de ônibus Viação São Paulo-Mato Grosso Ltda que mantinha uma linha entre a sede da empresa, em Tupi Paulista até Três Lagoas. Depois de passar por diversas cidades do interior paulista até chegar a Panorama, explica o escritor de Panorama/SP, João Batista Marques, o desafio para os ônibus era a travessia do rio Paraná pela balsa, o que encarecia o preço da passagem por causa do seguro que era cobrado.

 

Neste trajeto, se, por um lado, havia pouco trânsito entre Porto João André e Brasilândia, a partir dali, até Três Lagoas, o ônibus vivia sempre cheio. Sem dúvida o maior desafio era a travessia da balsa que era sempre arriscada. Tanto que num dia desses, no tempo em que a empresa fazia esta travessia de Panorama a Três Lagoas, um ônibus de sua frota, ao sair da balsa do Porto João André caiu, e por muito pouco não foi levado pelas águas. O mesmo ônibus que posteriormente haveria de causar a maior tragédia vivida pela comunidade de Brasilândia e que acabou por determinar o encerramento das atividades dessa empresa no lado sul-mato-grossense.

 

Corria o dia 6 de fevereiro de 1966 quando os habitantes de Brasilândia, recém-emancipada, viram passar naquela tarde, pela última vez, o ônibus que regularmente saia da rodoviária, sempre lotado, vindo do Porto João André rumo à cidade de Três Lagoas. Ângelo Fabrício (ou Angelino, como era conhecido), o motorista, naquele dia teve de assistir o rompimento das estruturas da ponte de madeira que transpunha o rio Verde e que provocou a queda do ônibus causando a morte de 33 pessoas, 29 adultos e quatro crianças.

 

O jornal paulista Notícias Populares, no dia 11 de fevereiro de 1966 noticiou: Viajavam ao todo 39 pessoas e por verdadeiro milagre nove conseguiram salvar-se. Contam os mais antigos, diversas versões para esta história, porém todos são unânimes em dizer que foi sem dúvida, a maior tragédia acontecida nesta região.

O memorialista João Batista Marques, em seu livro Tempo heroicos. Resumo histórico da cidade de Panorama lançado em 2010, menciona que o acidente ocorreu em 6 de janeiro de 1966, porém, na verdade, jornais da época confirmam o fato ter ocorrido em 6 de fevereiro de 1966.

 

Seu Tarcisio Fonseca é uma das testemunhas ocular deste desastre. É ele que nos conta valendo-se da memória, os detalhes desta tragédia da qual também é um dos personagens: Na beira da ponte tinha um botequinho E tinha um paraguaio veio. Ele tinha cinco filhas que vinha dentro do ônibus, com neto e tudo. Aí passou um caminhão pesado de Três Lagoas pra cá. Estalou a ponte. Ponte de madeira, ponte velha. Aí ele falou: --Seu Angelino, não toca o ônibus não. Estalou a ponte aí no meio, o homem avisou.

 

–Ah, o quê, rapaz. Você tá bêbado, e fica aí enchendo o saco. E tocou o ônibus. Quando foi uns 50 metros pra diante a ponte estalou e quebrou pra trás. O ônibus veio de marcha à ré.

Aí, eu e mais um irmão meu que estava parando rodeio do gado na invernada, escutei: --Me acode. Ô, me acode. Ele falou: --Vou correr lá, que a mulher vai morrer afogada. Aí, chegando, o tanto de chegar lá, eu escutando: --Me acode. E aí, tudo saindo correndo para lá. Aí cheguei lá, já tava o ônibus dentro d’água, e cheio de mulher encima, e os meninos, tinha até uma mudinha que tava gritando: –Me acode. Aí, o ônibus foi afundando e eles rodando tudo.

 

Aí nós, --Vamos descer aí para baixo, caçando alguma coisa, nós vê. Descemos lá pra baixo, e já encontremos o bote e já subiram, e eu subi, puxando os cavalos, e ele subiu dentro do bote. Já acharam uma menina num ponto, essa mudinha, e umas malas. Aí eles vêm trazendo tudo para cima, o que achavam, mala, bolsa. Aí ficamos a noite inteira lá. O rio era correntoso e tava cheio, tava quase relando na pontezinha lá.

E aí já foram encostando, encostando. Daqui a pouco já tinha cem barcos lá e avião por cima, já veio, soube da notícia e já veio.

 

Seu Tarcisio relembra: O ônibus estava saindo de Brasilândia para Três Lagoas. Era de tarde, lá pelas 5 horas da tarde. Não lembro o nome da empresa, mas era de um português, o seu Antônio (Antônio Bigode). Sobre o nome da empresa lembra que parece que era Ouro Velho, já faz muito tempo.

 

O ônibus tava cheio. Morreram 27, mas saiu um punhado: saiu o Borges, saiu outro, o Dinarte, Ardil, um irmão meu, então, um punhado de homens. Meu irmão tava lá e saiu tudo nadando. Ele sabia nadar. E aí os homens que tinha filharada lá dentro do ônibus, a família, voltou no ônibus, arrancou a roupa e foi embora [jogando-se no rio], chegou lá no ônibus eles puseram um povo em cima [sobre o teto do veículo], esperando socorro, mas não tinha socorro nenhum ali. E o finado Angelino, motorista do ônibus, morreu enroscado numa vigota, foi um prego. O cobrador era o Arlindo. Esse não morreu porque eu lacei ele.

 

--Ah, foi esse que o senhor laçou, pergunto. Foi sim. Ele vinha rolando nas pedras. O ônibus ora estava pra cima outra hora ele afundava. E numa passada lacei ele. E aí arrastei ele para fora. Saiu a água de dentro da barriga dele, muita água e ele, ele levantou e veio parar aqui, assustado, correndo pela estrada, assustado, muito. O Arlindo, o cobrador, nunca mais eu vi. Agora, o motorista não, morreu lá mesmo, enroscado. E aí só foi enterrar gente, a noite inteira, baldeando gente para cá. Cada um trazia e assim ia.

 

Outro personagem desta história é Vicente Borges dos Reis, um dos sobreviventes da tragédia e que na época do acidente era policial militar do Estado de Mato Grosso sediado na cidade de Três Lagoas, mas que prestava serviço no Distrito de Xavantina, hoje município de Santa Rita do Pardo, e no Posto Policial do Porto João André. O cidadão Vicente Borges dos Reis também conta a mesma história narrada acima, porém com muito mais emoção, tendo vivido na pele todo aquele tormento, pois se encontrava dentro do ônibus no momento do desastre.

 

No primeiro instante o ônibus caiu em pé, com as rodas no fundo do rio. E o povão no maior sufoco conseguiu aglomerar-se sobre o teto do veículo que ainda se encontrava uns sessenta centímetros fora d’água.

 

Porém, com o ajuntamento do povo e o movimento sobre o teto, o ônibus rodou, levando de roldão grande parte dos passageiros, conforme disse o senhor Borges. Para se manter sobre o teto do ônibus, os sobreviventes iam se agarrando uns aos outros, e a tragédia só foi aumentando, consumando-se poucos minutos após. Das 41 pessoas que viajavam neste ônibus, lembra que 33 delas morreram, restando apenas oito sobreviventes.

 

O senhor Borges sobre o episódio lembra-se ainda de um fato curioso: tratava-se do cobrador do ônibus, de nome Arlindo [lembrado também pelo senhor Tarcisio Fonseca na entrevista acima], que foi salvo por um cavaleiro que chegou a toda brida e conseguiu jogar uma corda e salvou o cobrador, conforme relatos da época. Poucos cadáveres chegaram ao rio Paraná, pois devido às cheias, o rio Verde [local do acidente] havia transbordado e os corpos espalham-se pelos varjões, vindo a boiar nas invernadas periféricas.

 

Essas e outras lembranças este policial guarda até hoje (2015), desde quando chegou ao Porto João André e conheceu a jovem Niderci Marina, filha dos pioneiros  senhor Elpídio e dona Dolores, popular mamãe Dolores, proprietários de um bar restaurante, ali mesmo, naquele local, as margens do rio Paraná, num tempo onde a vida tocava os dias com a suavidade dos remos de uma canoa ao cair da tarde.

 

A imprensa nacional, na época, também deu destaque ao desastre em suas páginas. O jornal O Estado de São Paulo, através dos correspondentes de Dracena e Marilia, foi o primeiro a publicar três dias após o acidente, no dia 9 de fevereiro de 1966, com a manchete: Ônibus cai em rio: cerca de 20 mortos. Segundo o jornal, o peso do coletivo fez ruir a frágil ponte sobre o rio, precipitando-se nas águas e indo ao fundo imediatamente.

 

Ainda segundo o jornal Estadão, de acordo com informações prestadas pela delegacia de polícia de Dracena, uma viatura do Corpo de Bombeiros de São Paulo chegou àquela cidade e imediatamente se dirigiu para o local do acidente. Todavia, em virtude da violenta correnteza do rio Verde, até às últimas horas da tarde de ontem (ou seja, dois dias após o acidente), os bombeiros não tinham podido mergulhar para retirar os corpos do interior do veículo que se encontra no fundo do rio.

 

Passados 35 anos deste lamentável acidente, no ano de 2001, eis que nos chega a notícia de que o vereador Jaime Assis Alencar, popular Jaime Doce, havia apresentado na Câmara Municipal de Brasilândia uma Indicação solicitando ao Executivo a construção de um monumento na ponte do rio Verde em memória às 26 pessoas mortas no trágico acidente que deixou Brasilândia de luto. Embora a proposição tenha sido aprovada por unanimidade pelos seus pares em julho de 2001, cinquenta e seis anos passados, o monumento aprovado ainda não havia sido construído.

 

Mais detalhes e o restante desta história o leitor encontra no volume 1-Pioneiros, da coleção História e Memória de Brasilândia/MS, que se encontra na Biblioteca Pública de Brasilândia Profª Abadia dos Santos.




2 comentários:

  1. Maria Inês Anselmo Costa29 de janeiro de 2023 às 01:49

    Parabéns professor pela narrativa. Muito triste o que aconteceu. Infelizmente até hj ainda falta cuidados em pontes seja de madeira ou concreto. A nossa hj de Brasilândia ,necessita urgente de reparos 🙏🏻🙏🏻🙏🏻Deus nos proteja que usamos muito este trajeto 🙏🏻🙏🏻🙏🏻

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  2. Olá Carlito parabéns.sou Paulo Fonseca Filho do sr.Jose Fonseca e Eunice Fonseca estou morando na Bélgica

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