A Ditadura, a Comissão da
Verdade e a Esperança Ofaié.
Carlos Alberto dos Santos Dutra
Há 10 anos, entre os dias 24 e 26 de abril de 2014 foi realizada na cidade de
Dourados/MS, a IIª Sessão de Audiência da Comissão Nacional da Verdade,
especialmente instalada para ouvir os relatos de violação dos direitos humanos
praticados por agentes públicos contra os povos indígenas no período em que o
Brasil viveu seus anos de chumbo, entre 1946 e 1988, sob o manto verde-oliva da
ditadura militar neste Estado.
Quando não, ao longo da história, e seguramente hoje, os povos indígenas do
Estado de Mato Grosso do Sul têm sido vítimas de toda sorte de violência:
remoção forçada, expulsão de seus territórios, suicídios, assassinatos,
agressões físicas, descaso e o preconceito, que representam nódoas no roteiro
de uma história do Brasil que ainda é espúria e não reconhecida.
A história dos Ofaié é um desses casos que retrata a exclusão de um povo que,
desde o período do Serviço de Proteção aos Índios-SPI, de 1913 até 1965, sofreu
com a omissão do órgão oficial do Estado em relação à demarcação de seu
território. Na cantilena dos anos que se seguiram, já sob a tutela da Fundação
Nacional do Índio-FUNAI, ainda assim continuou sofrendo com a indiferença e a
violação de seus direitos com a remoção forçada de seu território tradicional,
quando foram levados, sob violência e humilhação, para uma terra distante de
seus antepassados, lá permanecendo de 1978 a 1986.
Na ausência dos mais velhos, que já partiram, mas continuam enfeitando com
cruzes o caminho do desterro desta nação -- Zé Tá, Ozena, Felipe, Xião,
Alfredo, Sebastião, Francisca, He-í e outros --, coube na ocasião, ao
ex-cacique Ataíde Francisco Rodrigues, o Xehitâ-ha Ofaié, fazer voz
diante da Comissão Nacional da Verdade, e entoar-lhes o lamento desse povo de
hábitos suaves e feições gentis, neste dia de tristeza memorável, quando as
feridas voltaram a sangrar instigadas pela dor da lembrança.
Quanto a nós, cara pálida, cabe dizer que o caso Ofaié é a nossa
maior vergonha, nosso maior pecado. Fruto de uma sucessão de erros da parte do
Estado e sua política indigenista de apresamento e confinamento, resultou para
este povo quase sua extinção. Se na época do general Rondon e do SPI os Ofaié
chegavam a 2.000 pessoas, no período da FUNAI, em 1976, já estavam reduzidos a
apenas 27 indivíduos.
No período do SPI: Só para se ter uma ideia dos desencontros
governamentais e mentalidade da época, numa “Remessa” que recebeu o nº
237, de 19 de maio de 1949, o general Cândido Mariano Rondon, que
pessoalmente sempre foi um defensor do povo Ofaié e que nesta época era
presidente do Conselho Nacional do Serviço de Proteção aos Índios-CNSPI,
escreve ao diretor do SPI enviando-lhe um documento contendo “informações
sobre as terras dos índios Ofaiés” obtido do coronel Nicolau Bueno Horta
Barbosa, então ex-chefe da Inspetoria Regional de Campo Grande-IR-5.
Neste documento, por razões desconhecidas, o coronel Horta Barbosa argumenta
contra o profissional Pimentel Barbosa que “não teria podido fazer a
demarcação legalmente autorizada, por falta de título de habilitação
profissional”. Um ano após, em 8 de fevereiro de 1950, uma “relação dos
atos do Governo do Estado de Mato Grosso, pelos quais foram reservadas áreas
indígenas aos nossos índios” traz encartado o Decreto 683, de 8 de maio de
1924 reservando para os Ofaié 3.600 hectares (na região do córrego Samambaia),
porém, após o documento ter sido examinado pelo coronel da reserva do Exército,
Ramiro Noronha, e não ter emitido parecer algum, o dito documento tomou rumo
ignorado, caracterizando, assim, a omissão do Estado não garantindo a área
antes demarcada em favor dos Ofaié.
Como se não bastasse, o Governador do Estado de Mato Grosso, Fernando Correia
da Costa, em 8 de maio de 1952, através do Decreto nº 1.302, revogou o Decreto
683/24 acabando de vez com as esperanças do povo Ofaié em ver seu imemorial
território garantido. Não por acaso, dois meses antes da revogação do Decreto
683/24 e por uma estranha coincidência, o coronel Nicolau Bueno Horta Barbosa,
ex-chefe da IR-5 escreve ao Sr. Wilson Barbosa Martins, como que dando sinal verde
ao então, à época, candidato ao Senado Federal, que se mostrou interessado na
compra dessas terras.
Escreve ele: “As terras em questão, não interessam aos índios, que, aliás,
não se encontram mais nelas; são devolutas e por nenhum título a cargo do SPI (...)”.
Logo no início de sua correspondência o coronel expressa ao “amigo” o
desejo de limitar-se “ao essencial, que é não possuir a IR-5 nenhum
documento relativo às terras onde estiveram umas poucas famílias indígenas
(...) aqueles infelizes. E como constituirão um grupo caminhando para a
extinção (...), jamais fui impulsionado a visita-los, ocupado que me achava com
problemas bem mais urgentes (...)”.
Uma última referência do descaso e omissão do SPI em relação a este Decreto
consta no levantamento cadastral das terras indígenas do Estado de Mato Grosso,
apresentado em 27 de outubro de 1965 ao major-aviador, diretor do SPI em
Brasília-DF, e que encerra com a sintomática observação: “vide Wilson
Barbosa”.
O grupo sobrevivente de Ofaié que migraram da região Sul do Estado e se
juntaram a um grupo mais antigo que vivia ao longo das margens dos rios Pardo,
Taquaruçu e Verde, em 1952 foram expulsos no município de Três Lagoas-MT, por
um particular que adquiriu do Estado (através da Superintendência das Empresas
Incorporadas do Patrimônio Nacional-SEIPN), 600 mil hectares de terras
incluindo a área da aldeia Esperança habitada por cerca de 200 Ofaié, no atual
município de Brasilândia-MS.
Os Ofaié alojaram-se então nas margens do córrego Puladouro, afluente do rio
Verde, no então município de Três Lagoas-MT. O SPI, à época, tomou conhecimento
do fato, tendo inclusive prestado alguma assistência aos Ofaié pelo que se
depreende do Ofício nº 289, de 3 de novembro de 1953 quando a IR-5 propõe
construir “uma casinha em Rio Verde, na Aldeia dos Xavantes”. Tal
documento, entretanto, trazia no título: “Correspondência enviada pela IR-5
à Diretoria, desde há muito e que não tiveram resposta”, o que nos permite
avaliar o grau de (des)interesse que o assunto despertava no órgão indigenista
oficial.
Ali se encontravam 58 pessoas conforme relato do inspetor Francisco Ibiapina da
Fonseca, da IR-5, que visitou os Ofaié em Três Lagoas-MT, e confirmou a
expulsão, porém nada foi realizado para reconduzir os indígenas ao seu antigo
territórios nas margens do córrego Boa Esperança, conforme ouviu do relato dos
indígenas e descreveu em seu relatório.
Registre-se, entretanto, que o citado inspetor chegou a encaminhar ao chefe do
Executivo Municipal de Três Lagoas pedido de “valioso apoio” do Prefeito
daquela cidade “junto às autoridades do Estado para legalização de uma área
de terras” para os Ofaié. Foi a última (o)missão praticada pelo SPI, e que
determinou praticamente a extinção deste povo, pois ali, num lapso temporal de
menos de cinco anos, faleceram cerca de 40 indígenas, sendo que o restante,
dois anos depois, retornaram para a antiga região do ribeirão Boa Esperança e
Córrego Sete nos limites da fazenda que os havia expulsado.
No período da FUNAI: No período da administração da FUNAI, no Mato
Grosso do Sul, o relato de maior violência contra os Ofaié prende-se à
transferência forçada de seu território do município de Brasilândia para o
município de Porto Murtinho, na serra da Bodoquena, no interior da Reserva
Kadiwéu, ocorrido em 1978.
Episódio narrado e divulgado pelo próprio indígena Ofaié Ataíde Francisco
Rodrigues, Xehitâ-ha como “testemunha do massacre”, na primeira parte do livro
“Ofaié, morte e vida de um povo”, publicado em 1996 pelo Instituto
Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul-IHGMS, dá conta que o funcionário
Jamiro, da FUNAI, em 1977 fez a primeira visita à aldeia Esperança. O cacique
lembra muito bem de suas palavras: “dizendo que nós estávamos passando
necessidade, passando fome, vivendo junto das vacas e todos morrendo à mingua.
Que nós ‘precisava’ sair daqui e mudar para uma reserva onde só tinha índios,
doado pelo governo federal. Segundo Jamiro, na reserva já tinha terra
mecanizada, casas de materiais, cafezais, caça e pesca. E nós fiquemos animados
pra sair de lá”.
Sete meses depois, no último dia do mês de julho de 1978, “outro funcionário
da FUNAI, Dionísio Virgílio da Silva, chegou em nossa área e repetiu as
promessas do Sr. Jamiro. Ele estava coordenando a operação com outras pessoas
de Brasilândia”. Os índios acabaram sendo transportados de caminhão
acompanhados de outros carros pequenos, relata Xehitâ-ha. Muitos índios fugiram
e refugiaram-se nas fazendas do município. O delegado local teria realizado
buscas pelos sítios mais próximos. Na cidade todos evitam comentar o fato até
hoje. Enfim, em caminhão aberto (pau de arara), viajaram à noite chegando a
Campo Grande às 8 horas da manhã. Após rápida parada, seguiram viagem e, às 14
horas chegaram à cidade de Miranda; comem ali uns “pães secos” e seguem
viagem para “Campão” (como era conhecida Bodoquena).
Chegando ao destino, a Reserva Kadiwéu, nesta época em conflito com posseiros e
fazendeiros, com a anuência do INCRA, narra Ataíde: “de repente o Sr. Jamiro
veio nos receber. Nós ficamos revoltados. Aí perguntamos para o funcionário da
FUNAI: Onde estão as casas que vocês prometeram? Sem responder à pergunta o
funcionário disse: Vocês têm que se virar. Mas onde?, perguntamos: 'Vocês têm
que expulsar os brancos' disse ele". Em igual condição encontravam-se
também os indígenas Kaiowá que foram trazidos dias antes do Rancho Jacaré (de
Laguna Carapã) e Guaimbê (região de Dourados). O Sr. Jamiro, funcionário da
FUNAI, era o “terror dos posseiros, expulsando muita gente com suas táticas
de jagunço...” relata o CIMI, na época.
O delegado da FUNAI responsável por toda essa violência praticada contra os
Ofaié foi o Sr. Joel de Oliveira. Em meio à violência os Ofaié permaneceram ali
oito anos. “O desrespeito contra os Ofaié era revoltante. Até mesmo pelos
funcionários da FUNAI. Os mesmos traziam muita pinga para embriagar os Ofaié e
depois se aproveitar de suas mulheres. Foram estupradas três meninas Ofaié: uma
de nove anos, outra de onze anos e outra de quinze anos. Os estupradores foram
dois índios e um branco (...). Ele ameaçou a quem falasse desse estupro, que
mataria quem fosse". O jornal O Globo, de 25 de maio de 1983,
denunciou esse fato.
O depoente olha o rosto da Comissão da Verdade e busca encontrar ali franqueza
e sinceridade naquele olhar. Porque a "verdade", aliás, não repara
vidas, não reconstrói sonhos; quando muito devolve a sensação de justiça, ainda
que tardia e inócua. A lágrima que não corre mais no rosto do indígena – pois
já chorou todas as dores que a vida pode suportar --, de súbito, por uma fresta
do universo parece cair sobre a terra aplacando a ira e a poeira da estrada. É
uma réstia de esperança fazendo rebrotar a vida: seu depoimento pode não
reparar a história e os atos cometidos pelos agentes públicos, mas talvez possa
conduzir a palavra "verdade" pela senda de outra, carregada de luz e
que todo o ser humano alimenta: a Liberdade (2).
http://racismoambiental.net.br/2014/04/os-ofaie-a-comissao-da-verdade-e-a-esperanca/ (06/04/2014)
https://www.facebook.com/Kaiowas.direito.e.cultura?filter=3 (06/04/2014)
http://pib.socioambiental.org/pt/noticias?id=138224&id_pov=202 (06/04/2014)
http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=80142 (09/04/2014)
http://blogoosfero.cc/adital/adital-em-portugues/090414-os-ofaie-a-comissao-da-verdade-e-a-esperanca (09/04/2014)
http://www.douradosnews.com.br/cultura-lazer/comissao-da-verdade-fara-segunda-audiencia-indigena-na-ufgd (17/04/2014)
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