segunda-feira, 1 de abril de 2024

 

A Ditadura, a Comissão da Verdade e a Esperança Ofaié.
Carlos Alberto dos Santos Dutra





Há 10 anos, entre os dias 24 e 26 de abril de 2014 foi realizada na cidade de Dourados/MS, a IIª Sessão de Audiência da Comissão Nacional da Verdade, especialmente instalada para ouvir os relatos de violação dos direitos humanos praticados por agentes públicos contra os povos indígenas no período em que o Brasil viveu seus anos de chumbo, entre 1946 e 1988, sob o manto verde-oliva da ditadura militar neste Estado.

Quando não, ao longo da história, e seguramente hoje, os povos indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul têm sido vítimas de toda sorte de violência: remoção forçada, expulsão de seus territórios, suicídios, assassinatos, agressões físicas, descaso e o preconceito, que representam nódoas no roteiro de uma história do Brasil que ainda é espúria e não reconhecida.

A história dos Ofaié é um desses casos que retrata a exclusão de um povo que, desde o período do Serviço de Proteção aos Índios-SPI, de 1913 até 1965, sofreu com a omissão do órgão oficial do Estado em relação à demarcação de seu território. Na cantilena dos anos que se seguiram, já sob a tutela da Fundação Nacional do Índio-FUNAI, ainda assim continuou sofrendo com a indiferença e a violação de seus direitos com a remoção forçada de seu território tradicional, quando foram levados, sob violência e humilhação, para uma terra distante de seus antepassados, lá permanecendo de 1978 a 1986.

Na ausência dos mais velhos, que já partiram, mas continuam enfeitando com cruzes o caminho do desterro desta nação -- Zé Tá, Ozena, Felipe, Xião, Alfredo, Sebastião, Francisca, He-í e outros --, coube na ocasião, ao ex-cacique Ataíde Francisco Rodrigues, o Xehitâ-ha Ofaié, fazer voz diante da Comissão Nacional da Verdade, e entoar-lhes o lamento desse povo de hábitos suaves e feições gentis, neste dia de tristeza memorável, quando as feridas voltaram a sangrar instigadas pela dor da lembrança.

Quanto a nós, cara pálida, cabe dizer que o caso Ofaié é a nossa maior vergonha, nosso maior pecado. Fruto de uma sucessão de erros da parte do Estado e sua política indigenista de apresamento e confinamento, resultou para este povo quase sua extinção. Se na época do general Rondon e do SPI os Ofaié chegavam a 2.000 pessoas, no período da FUNAI, em 1976, já estavam reduzidos a apenas 27 indivíduos.

No período do SPI: Só para se ter uma ideia dos desencontros governamentais e mentalidade da época, numa “Remessa” que recebeu o nº 237, de 19 de maio de 1949, o general Cândido Mariano Rondon, que pessoalmente sempre foi um defensor do povo Ofaié e que nesta época era presidente do Conselho Nacional do Serviço de Proteção aos Índios-CNSPI, escreve ao diretor do SPI enviando-lhe um documento contendo “informações sobre as terras dos índios Ofaiés” obtido do coronel Nicolau Bueno Horta Barbosa, então ex-chefe da Inspetoria Regional de Campo Grande-IR-5.

Neste documento, por razões desconhecidas, o coronel Horta Barbosa argumenta contra o profissional Pimentel Barbosa que “não teria podido fazer a demarcação legalmente autorizada, por falta de título de habilitação profissional”. Um ano após, em 8 de fevereiro de 1950, uma “relação dos atos do Governo do Estado de Mato Grosso, pelos quais foram reservadas áreas indígenas aos nossos índios” traz encartado o Decreto 683, de 8 de maio de 1924 reservando para os Ofaié 3.600 hectares (na região do córrego Samambaia), porém, após o documento ter sido examinado pelo coronel da reserva do Exército, Ramiro Noronha, e não ter emitido parecer algum, o dito documento tomou rumo ignorado, caracterizando, assim, a omissão do Estado não garantindo a área antes demarcada em favor dos Ofaié.

Como se não bastasse, o Governador do Estado de Mato Grosso, Fernando Correia da Costa, em 8 de maio de 1952, através do Decreto nº 1.302, revogou o Decreto 683/24 acabando de vez com as esperanças do povo Ofaié em ver seu imemorial território garantido. Não por acaso, dois meses antes da revogação do Decreto 683/24 e por uma estranha coincidência, o coronel Nicolau Bueno Horta Barbosa, ex-chefe da IR-5 escreve ao Sr. Wilson Barbosa Martins, como que dando sinal verde ao então, à época, candidato ao Senado Federal, que se mostrou interessado na compra dessas terras.

Escreve ele: “As terras em questão, não interessam aos índios, que, aliás, não se encontram mais nelas; são devolutas e por nenhum título a cargo do SPI (...)”. Logo no início de sua correspondência o coronel expressa ao “amigo” o desejo de limitar-se “ao essencial, que é não possuir a IR-5 nenhum documento relativo às terras onde estiveram umas poucas famílias indígenas (...) aqueles infelizes. E como constituirão um grupo caminhando para a extinção (...), jamais fui impulsionado a visita-los, ocupado que me achava com problemas bem mais urgentes (...)”.

Uma última referência do descaso e omissão do SPI em relação a este Decreto consta no levantamento cadastral das terras indígenas do Estado de Mato Grosso, apresentado em 27 de outubro de 1965 ao major-aviador, diretor do SPI em Brasília-DF, e que encerra com a sintomática observação: “vide Wilson Barbosa”.

O grupo sobrevivente de Ofaié que migraram da região Sul do Estado e se juntaram a um grupo mais antigo que vivia ao longo das margens dos rios Pardo, Taquaruçu e Verde, em 1952 foram expulsos no município de Três Lagoas-MT, por um particular que adquiriu do Estado (através da Superintendência das Empresas Incorporadas do Patrimônio Nacional-SEIPN), 600 mil hectares de terras incluindo a área da aldeia Esperança habitada por cerca de 200 Ofaié, no atual município de Brasilândia-MS.

Os Ofaié alojaram-se então nas margens do córrego Puladouro, afluente do rio Verde, no então município de Três Lagoas-MT. O SPI, à época, tomou conhecimento do fato, tendo inclusive prestado alguma assistência aos Ofaié pelo que se depreende do Ofício nº 289, de 3 de novembro de 1953 quando a IR-5 propõe construir “uma casinha em Rio Verde, na Aldeia dos Xavantes”. Tal documento, entretanto, trazia no título: “Correspondência enviada pela IR-5 à Diretoria, desde há muito e que não tiveram resposta”, o que nos permite avaliar o grau de (des)interesse que o assunto despertava no órgão indigenista oficial.

Ali se encontravam 58 pessoas conforme relato do inspetor Francisco Ibiapina da Fonseca, da IR-5, que visitou os Ofaié em Três Lagoas-MT, e confirmou a expulsão, porém nada foi realizado para reconduzir os indígenas ao seu antigo territórios nas margens do córrego Boa Esperança, conforme ouviu do relato dos indígenas e descreveu em seu relatório.

Registre-se, entretanto, que o citado inspetor chegou a encaminhar ao chefe do Executivo Municipal de Três Lagoas pedido de “valioso apoio” do Prefeito daquela cidade “junto às autoridades do Estado para legalização de uma área de terras” para os Ofaié. Foi a última (o)missão praticada pelo SPI, e que determinou praticamente a extinção deste povo, pois ali, num lapso temporal de menos de cinco anos, faleceram cerca de 40 indígenas, sendo que o restante, dois anos depois, retornaram para a antiga região do ribeirão Boa Esperança e Córrego Sete nos limites da fazenda que os havia expulsado.

No período da FUNAI: No período da administração da FUNAI, no Mato Grosso do Sul, o relato de maior violência contra os Ofaié prende-se à transferência forçada de seu território do município de Brasilândia para o município de Porto Murtinho, na serra da Bodoquena, no interior da Reserva Kadiwéu, ocorrido em 1978.

Episódio narrado e divulgado pelo próprio indígena Ofaié Ataíde Francisco Rodrigues, Xehitâ-ha como “testemunha do massacre”, na primeira parte do livro “Ofaié, morte e vida de um povo”, publicado em 1996 pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul-IHGMS, dá conta que o funcionário Jamiro, da FUNAI, em 1977 fez a primeira visita à aldeia Esperança. O cacique lembra muito bem de suas palavras: “dizendo que nós estávamos passando necessidade, passando fome, vivendo junto das vacas e todos morrendo à mingua. Que nós ‘precisava’ sair daqui e mudar para uma reserva onde só tinha índios, doado pelo governo federal. Segundo Jamiro, na reserva já tinha terra mecanizada, casas de materiais, cafezais, caça e pesca. E nós fiquemos animados pra sair de lá”.

Sete meses depois, no último dia do mês de julho de 1978, “outro funcionário da FUNAI, Dionísio Virgílio da Silva, chegou em nossa área e repetiu as promessas do Sr. Jamiro. Ele estava coordenando a operação com outras pessoas de Brasilândia”. Os índios acabaram sendo transportados de caminhão acompanhados de outros carros pequenos, relata Xehitâ-ha. Muitos índios fugiram e refugiaram-se nas fazendas do município. O delegado local teria realizado buscas pelos sítios mais próximos. Na cidade todos evitam comentar o fato até hoje. Enfim, em caminhão aberto (pau de arara), viajaram à noite chegando a Campo Grande às 8 horas da manhã. Após rápida parada, seguiram viagem e, às 14 horas chegaram à cidade de Miranda; comem ali uns “pães secos” e seguem viagem para “Campão” (como era conhecida Bodoquena).

Chegando ao destino, a Reserva Kadiwéu, nesta época em conflito com posseiros e fazendeiros, com a anuência do INCRA, narra Ataíde: “de repente o Sr. Jamiro veio nos receber. Nós ficamos revoltados. Aí perguntamos para o funcionário da FUNAI: Onde estão as casas que vocês prometeram? Sem responder à pergunta o funcionário disse: Vocês têm que se virar. Mas onde?, perguntamos: 'Vocês têm que expulsar os brancos' disse ele". Em igual condição encontravam-se também os indígenas Kaiowá que foram trazidos dias antes do Rancho Jacaré (de Laguna Carapã) e Guaimbê (região de Dourados). O Sr. Jamiro, funcionário da FUNAI, era o “terror dos posseiros, expulsando muita gente com suas táticas de jagunço...” relata o CIMI, na época.

O delegado da FUNAI responsável por toda essa violência praticada contra os Ofaié foi o Sr. Joel de Oliveira. Em meio à violência os Ofaié permaneceram ali oito anos. “O desrespeito contra os Ofaié era revoltante. Até mesmo pelos funcionários da FUNAI. Os mesmos traziam muita pinga para embriagar os Ofaié e depois se aproveitar de suas mulheres. Foram estupradas três meninas Ofaié: uma de nove anos, outra de onze anos e outra de quinze anos. Os estupradores foram dois índios e um branco (...). Ele ameaçou a quem falasse desse estupro, que mataria quem fosse". O jornal O Globo, de 25 de maio de 1983, denunciou esse fato.

O depoente olha o rosto da Comissão da Verdade e busca encontrar ali franqueza e sinceridade naquele olhar. Porque a "verdade", aliás, não repara vidas, não reconstrói sonhos; quando muito devolve a sensação de justiça, ainda que tardia e inócua. A lágrima que não corre mais no rosto do indígena – pois já chorou todas as dores que a vida pode suportar --, de súbito, por uma fresta do universo parece cair sobre a terra aplacando a ira e a poeira da estrada. É uma réstia de esperança fazendo rebrotar a vida: seu depoimento pode não reparar a história e os atos cometidos pelos agentes públicos, mas talvez possa conduzir a palavra "verdade" pela senda de outra, carregada de luz e que todo o ser humano alimenta: a Liberdade (2).

Fonte: (1) Dutra, C.A.S. Ofaié, morte e vida de um povo. Campo Grande: IHGMS, 1996,  p. 122, nota 137. (2) "Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém  que não entenda" (Cecília Meireles). Confira também os artigos: O território Ofaié e o conceito de poder e violência em Mato Grosso do SulO território Ofaié pelos caminhos da história. 
Fotos: Prof. Levi Marques, 2014.


Nenhum comentário:

Postar um comentário