sábado, 6 de abril de 2024

 

O diálogo dos Ofaié com Aílton Krenak
Carlos Alberto dos Santos Dutra




Tratava-se de um diálogo sobre relações e resultados sustentáveis. Os atores, representantes dos mais diversos segmentos organizados das comunidades de Três Lagoas, Selviria, Brasilândia, Água Clara e Ribas do Rio Pardo, no Mato Grosso do Sul,  em condição de igualdade sentaram-se com a empresa Fibria e seus mais altos dirigentes. E assim, de forma franca e aberta, se propuseram a falar e escutar, convencida essa última, de que o diálogo é o melhor caminho.

E lá também estavam eles, aqueles representantes de um povo miúdo e de cor escura, misturado a outras tribos urbanas e rurais, de gênero e propósitos econômicos e sociais diversos naquele encontro memorável. Perceberam logo que o objetivo dos tais diálogos construtivos era o de aprimorar as operações e relações da empresa anfitriã, mas também perceberam o alcance e a humanidade deste gesto que lhes permitia colocar a pequena comunidade Ofaié, na pauta dos empreendimentos e preocupações futuras desta grande empresa.

Bem acolhidos e respeitados por todos, o cacique José de Souza, o Kói Ofaié, ouviu atentamente as palavras do Sr. José Luciano Penido, presidente do Conselho gestor da empresa. Também teve a oportunidade de lhe falar reservadamente um pouco de sua história, suas lutas e o sonho do seu povo. Sentiu-se valorizado em poder expressar sua opinião sobre o que os povos indígenas entendem por biodiversidade, tema de estudo no encontro.

Além do cacique, lá estava também Silvano de MoraesHantar-hec Ofaié, jovem professor da aldeia Anodhi, que falou na plenária revelando os principais anseios dos estudantes indígenas dos dias atuais, que navega entre o acesso à tecnologia e os valores da modernidade, sem contudo, descuidar da história, dos costumes e dos valores que os identificam como etnia diversa da comunidade nacional.

Todo aquele universo de pessoas e informações, neologismos e vocabulário especializado responsável pela quebra de paradigmas e dos modelos mentais cada vez mais exigentes e transformadores da realidade através da construção coletiva de novas ideias e aplicação de práticas sustentáveis, tudo isso foi de um valor inestimável: --aprendi demais! confessou-me Kói.

Mas a aula só ficou completa quando um parente distante do povo indígena ergueu a voz no decorrer do encontro. Tratava-se de Aílton Krenak, tido como embaixador dos índios entre os brancos brasileiros. Nascido em Minas Gerais, em 1954, esse líder indígena é jornalista e produtor cultural. Alfabetizou-se aos 18 anos e na década de 80, passou a se dedicar exclusivamente à articulação do movimento indígena. Em 1985, fundou a ONG Núcleo de Cultura Indígena (NCI) e em 1987, em meio às discussões da Assembléia Constituinte, foi autor de um gesto que comoveu a opinião pública: pintou o rosto de preto com pasta de jenipapo enquanto discursava no plenário do Congresso Nacional, em sinal de luto pelo retrocesso na tramitação dos direitos indígenas.

Pois foi essa figura rebelde que participou da fundação da União das Nações Indígenas (UNI), do movimento Aliança dos Povos da Floresta e da criação da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço e hoje é um dos mais conhecidos líderes indígenas do Brasil, atuando como assessor para assuntos indígenas de governos e empresas, que brindou a todos com uma bela e profunda reflexão sobre o permanente diálogo construtivo que é travado no dia-a-dia. E falou como um legítimo pensador do mundo contemporâneo desafiador que vivemos.

Para os Ofaié foi um momento especial, sobretudo quando tiveram a oportunidade de entregar ao indígena Krenak, o livro O território Ofaié pelos caminhos da história, que descreve a saga vivida por este povo ressurgido. No contorno do principal ponto turístico de Três Lagoas, a Lagoa Maior, lá estava o autor do livro, o Prof. Carlito, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasilândia, João Brito de Souza, o ilustre visitante Ailton Krenak e José de Souza, cacique Ofaié autografando e narrando a história de seu povo àquele patrício mineiro.

Na paisagem de fundo, a imagem não captava as palavras, somente a beleza plástica colada na lente da objetiva, quando muito registrou o gesto impregnado na digital que viajou célere pela internet informando e comunicando o evento ocorrido. O que permaneceu, entretanto, foi o som das aves, os olhares, a aproximação, o paieiro furtivo montado ao som do vento e trocado de mão, o sorriso, a lembrança e a presença daquele totem imponente de braços abertos expressando liberdade. E acima de tudo, a certeza, numa frase lapidar de Aílton, perfeitamente aplicável ao encontro, dita como se fosse um velho paí Ofaié de outros tempos: No dia em que não houver lugar para o índio no mundo, não haverá lugar para ninguém.

O menino da família Krenak observa as fotos antigas dos Ofaié e a memória corre livre de volta a sua aldeia, lá no Vale do Rio Doce, quando não há muito tempo ela beirava umas 100 famílias. O número contrasta com a realidade dos Ofaié que hoje reúne apenas 25 famílias. Não contrasta, contudo, a esperança redobrada que os une, como povos indígenas que há séculos vêm buscando dialogar e fazer frente ao etnocídio praticado ao longo da história desde os tempos colombianos.

E, assim, pacientes, lá estavam eles, na margem dos rios Sucuriú, Paraná, Verde, Taquaruçu e Pardo, correndo nus pelo cerrado, praticando suas danças e rezas, manejando arcos e cajás, caçando e coletando frutas e o mel silvestre que tanto apreciam. Demonstrando, hankrägani, que desde há muito dialogam com agã-chanagui, e persistem praticando o melhoramento genético de plantas e domesticando bichos, até os dias de hoje, em permanente diálogo com o meio ambiente e seu entorno, como fizeram seus pais e avós.

Diálogo --hoje descobrimos--, cada vez mais necessário para a sobrevivência de todos. Diálogo que ensina e aprende a construir relações de respeito e resultados sustentáveis para o homem e a natureza. Dinâmica, aliás, onde os Ofaié e Krenak, e mais de uma centena de povos indígenas, se sentem todos sábios professores.

  

Redigido originalmente em 29 de agosto de 2012 e publicado em http://www.agorams.com.br/jornal/2012/09/o-dialogo-dos-ofaie-com-ailton-krenak/  (1º/09/2012)
Fotos: Simone Prati, 2012.








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