domingo, 19 de maio de 2024

 

O apito da locomotiva e o velho pescador

Carlos Alberto dos Santos Dutra


As águas mansas, quase paradas da lagoa, lembram o velho pescador. As palavras são arrancadas do coração e somente se acalmam com o apito da locomotiva que desde longe anuncia a chegada do trem. Diferente do caniço lançado e relançado à água pelo braço ainda firme daquele octogenário, o trem que chega, já não é mais o trem que parte.

O olhar na lagoa prateada nos leva de carona o pensamento e as lembranças do trem que partia para diversos e distantes caminhos... Sempre com a certeza de que no dia seguinte iria voltar. De Cacequi partiam trens da viação férrea lotados de passageiros para as cidades de Rio Grande, Livramento, Uruguaiana e Porto Alegre. Verdadeira rosa dos ventos ferroviária do Estado gaúcho.

O silêncio do campo e a bulha da água só é interrompido, ao longe, pelo apito do trem. Apito que brotava da força das locomotivas que lhe dava impulso e levava seus vagões para onde apontavam os trilhos. Máquinas poderosas, locomotivas movidas a diesel e elétricas. E com potência superior a dois mil agapês e mais de cem toneladas de peso. E eu lembro... que com elas eu conversava. 

Sim. O diálogo dava-se cada vez que meus pezinhos calçando alpercatas tropicavam pelos dormentes em direção ao depósito, antiga oficina de máquinas onde meu pai Vilson trabalhava.

A cada apito dessas máquinas meu coração tremia fazendo colar no peito a marmita embrulhada num pano de prato enquanto levava o almoço para aquele ferroviário anônimo, meu pai, motivo de minha felicidade. E lá estava ele em meio à graxa patente, debaixo de uma dessas possantes máquinas construída pela empresa fundada por Thomas Edson, a General Electric, dando-lhes manutenção, vida e segurança.

A especialidade de meu pai - lembro -, era os freios: freios dinâmicos, freios a ar comprimido ou freios a vácuo. E o tal de sistema homem morto - vim saber depois -, tratava-se de um dispositivo de segurança que envolvia o maquinista e um equipamento sofisticado para aquela época. 

Isso tornava meu pai, para mim, o homem mais importante daquele depósito, pois era ele o responsável pela segurança de todos os passageiros do trem rebocado por aquela locomotiva, bem como a carga que transportava.

Ainda debaixo da máquina, depois de me ver, dizia: --Ah, você está aí. Pronto. Era o suficiente para me encher de alegria ouvir aquelas palavras que conferiam a mim gratidão por, de certa forma, quem sabe, também poder participar daquela grandiosidade.

Ao seu redor eram sons de martelo, ferragens e máquinas, num ruído ensurdecedor. E ele sem qualquer proteção aos ouvidos. Por isso, talvez, queixava-se em casa exigindo silêncio durante o descanso. Depois, limpando as mãos numa bucha de pano, ele vinha ao meu encontro. Um gigante. De macacão estampando no peito RFFSA. Mãos grandes, unhas sujas de óleo, braços fortes e um sorriso nos lábios. Era tudo o que eu precisava: poder servir a quem eu mais admirava. O mundo se tornava pequeno naquele momento.

Hoje, o velho ferroviário aposentado, transformado em pescador, contempla o espelho das águas e vê que seus guris cresceram... viraram homens... e partiram. Levaram para longe os pequenos gestos de ternura que semeou, como aquele que o filho mais velho guardou. Depois de pegar a vianda e passar a mão sobre minha cabeça, descabelando-me de leve, dizia: -- Agora, vá para casa.... Ou algo assim, pois a memória nos golpeia sempre aos pedaços: Nacos de carne retirada aos poucos, qual churrasco, deixando vazios no prato principal de nossos sentimentos.

Voltava sempre cantarolando para casa. Desafiando o eco das locomotivas que por aquele verdadeiro lençol de vagões cobriam os trilhos e desvios espalhados pelo recinto ferroviário da rede. Algumas antigas marias-fumaças que nesta época tinham sido substituídas pelas vermelhas elétricas e alguns casarões antigos dos ferroviários, o clube Apolo e a minha escola Fernão Dias... A tudo, meus olhos contemplavam... E tudo ia ficando para trás. 

Hoje, morando distante de minha terra natal, não frequento as lagoas onde meu pai pescava. Mas ainda escuto o apito do trem, que tem outros nomes e outros propósitos. O rosto dos passageiros, entretanto, está cada vez mais esmaecido. 

Mas o caminho dos trilhos que me levavam ao velho depósito de máquinas e aos braços de meu pai, este, ainda o encontro... muito vivo... nas lembranças de um tempo que não volta mais.


Fonte:  Publicado originalmente em https://www.institutocisalpina.org/o-apito-da-locomotiva-e-o-velho-pescador.html, em 20.Mai.2017. Depois em DUTRA, C.A.S. Quando eu me chamar saudade. vol. 1. Brasilândia, 2021, pág. 196.

 

 




Um comentário:

  1. Bah mano
    A forma poética descrita nos emociona e traz-nos aos velhos tempos onde nosso pai estava entre nós. Ah que saudades...
    Obrigado mano.
    Bela homenagem ...

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