sábado, 22 de junho de 2024

 

A confiança de Jó e os desafios que nos rodeiam

Carlos Alberto dos Santos Dutra



A vida pode ter momentos assustadores, momentos de inquietação e de crise em que perdemos o pé e sentimos que nos afundamos. É nesta hora que podemos nos perguntar: Onde está Deus, nesses momentos? Ele “importa-se” conosco?

A liturgia deste 12.º Domingo Comum garante-nos: Deus não abandona nem ignora os filhos e filhas que criou; Ele ampara-os com amor fiel, vigilante e criador. Ele vai sempre ao nosso lado, cuidando de nós, em cada passo da viagem da vida.

Na primeira leitura Deus revela-se a um crente chamado Jó como o Senhor que domina o mar e conhece os segredos do universo e da vida. Nada na criação lhe é indiferente: Ele cuida de todos os seres criados com amor de pai e de mãe. Ao homem resta entregar-se nas mãos desse Deus omnipotente e cheio de amor, com humildade e com total confiança.

A reflexão dos Dehonianos (1) que aqui reproduzimos é inspiradora e digna de uma aula sobre as virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade.

O Livro de Jó é um clássico da literatura universal, não só pela sua extraordinária beleza literária, mas também pelas questões que aborda e que tocam o âmago da existência humana. A história de Jó serve de pretexto para refletir sobre alguns dos grandes desafios que se colocam aos homens de todas as épocas, nomeadamente a questão do sofrimento do justo inocente, a situação do homem diante de Deus e a atitude de Deus face ao homem.

Apresenta-nos a história de um homem bom e justo (Jó), repentinamente atingido por um vendaval de desgraças que lhe rouba a riqueza, a família e a própria saúde. No corpo central do livro (cf. Jó 3,1-37,24), Jó interroga-se acerca da origem do sofrimento que o atingiu e do papel de Deus no seu drama pessoal.

Alguns dos amigos de Jó procuram responder às suas questões, apresentando as explicações dadas pela teologia oficial: o sofrimento é sempre o resultado do pecado do homem; assim, se Jó está a sofrer, é porque pecou…

Com a veemência que vem de uma consciência em paz, Jó, entretanto, recusa conclusões tão simplistas e demonstra a falência da doutrina oficial para explicar o seu drama pessoal. Com um apurado sentido crítico, Jó vai desmontando os dogmas fundamentais da fé de Israel e recusando esse Deus “contabilista” que Se limita a registar as ações boas e más do homem para lhe pagar em conformidade. Deus não pode ser isso; e o caso concreto de Jó prova-o.

Rejeitada a explicação tradicional para o drama do sofrimento, Jó dirige-se diretamente àquele que lhe pode fornecer as respostas: o próprio Deus. No seu discurso, muito crítico, cruzam-se a animosidade, a violência, as queixas, o inconformismo, a dúvida, a revolta, com a esperança, a fé e a confiança em Deus.

Quando, finalmente, Deus enfrenta Jó, recorda-lhe o seu lugar de criatura, limitada e finita; mostra-lhe como só Ele conhece as leis que regem o universo e a vida, mostra-lhe a sua preocupação e o seu amor com cada ser criado; convida-o a não se mostrar orgulhoso, a ocupar o seu lugar de criatura e a não pôr em causa os desígnios de Deus para o mundo, já que esses desígnios ultrapassam infinitamente a capacidade de compreensão e de entendimento de qualquer criatura.

Deus tem uma lógica, um plano, um projeto que ultrapassa infinitamente aquilo que cada homem (também Jó) poderá entender. A história termina com Jó percebendo o seu lugar, reconhecendo a transcendência de Deus e a incompreensibilidade dos seus projetos. E, assim, entrega-se nas mãos de Deus com humildade e confiança.

O texto que nos é proposto faz parte do discurso com que Deus responde a Jó (cf. Jó 38,1-40,2). Nesse discurso, Deus coloca a Jó uma série de questões sobre a terra, o mar, os grandes mistérios da natureza e da vida; a finalidade não é obter respostas de Jó, mas levá-lo a perceber os seus limites, a sua ignorância, a sua incapacidade para entender o mistério insondável de Deus e os projetos que Deus tem para o mundo e para os homens.

O nosso texto começa por apresentar Javé a responder a Jó “do meio da tempestade” (vers. 1). É o quadro habitual das teofanias (cf. Ex 19,16). Serve para emoldurar a manifestação aos homens do Deus todo-poderoso, o soberano de toda a terra. É esse o ponto de partida: Jó deve estar ciente de que Aquele que lhe vai falar é o Deus omnipotente, o Senhor do universo e da História, cuja grandeza e mistério ultrapassa infinitamente a capacidade de compreensão do homem.

Portanto, Deus manifesta-se a Jó e fala com ele. O objetivo dessa manifestação, mais do que responder às questões de Jó, é fazê-lo perceber a insensatez das suas críticas. Depois de se apresentar como o grande arquiteto que construiu a terra (cf. Jó 38,4-7), Javé descreve aquilo que fez em relação ao mar.

As antigas lendas mesopotâmicas sobre a criação apresentavam as “águas salgadas” (representadas pela deusa Tiamat) como um monstro criador do caos e da desordem; na sua luta para organizar o cosmos, Marduk, o deus mesopotâmico da ordem, lutou contra o mar e, com muito esforço, venceu-o e pôs-lhe limites.

O Povo bíblico foi, naturalmente, influenciado pelos mitos de criação mesopotâmicos; por isso, sempre viu no mar uma realidade assustadora, indomável, orgulhosa, desordenada, onde residiam os poderes caóticos que o homem não conseguia controlar… Mas aqui Deus descreve, de forma muito pacífica e muito bela, a forma como lidou com essa força ameaçadora que Marduk teve tanta dificuldade em controlar: logo que o mar saiu “do seio materno” (“irrompeu do seio do abismo” – vers. 8), Deus tratou-o como um recém-nascido, com cuidados e carícias, vestindo-o de neblina e colocando-lhe uma faixa de nuvens (vers. 9); depois, para que ele ao crescer não se tornasse força indomável, “encerrou-o entre dois batentes” (vers. 8) e “fixou-lhe os limites” (vers. 10).

O mar, controlado e tratado com amor, é um testemunho do poder supremo de Deus; mostra o domínio perfeito de Deus sobre toda a criação. Ao recordar a Jó a sua ação criadora sobre o mar, Javé apresenta-Se, antes de mais, intocável na sua transcendência e majestade; e mostra, depois, que tem para a criação um plano estável, amadurecido, consolidado, irrevogável…

Quem é Jó para pôr em causa os desígnios desse Deus criador que, com a sua Palavra, controlou o mar? Jó é convidado a aceitar que um Deus de quem depende toda a criação, que até submete o mar, que cuida da criação com cuidados de mãe, sabe o que está a fazer e tem uma solução para os problemas e dramas do homem…

O homem, na sua situação de criatura finita e limitada, é que nem sempre consegue ver e perceber o alcance e o sentido último do projeto de Deus. Só Deus tem todas as respostas, só Deus conhece os segredos do universo e da vida. Ao homem, finito e limitado, resta entregar-se nas mãos desse Deus omnipotente e cheio de amor, adorá-l’O e louvá-l’O, confiar na sua sabedoria, ver n’Ele a sua esperança e a sua salvação.

Quanto a nós, nos dias atuais, que convivemos diariamente com realidades que são fonte de inquietação: a ganância, a guerra, o ódio, a violência que nos mergulham num clima de ansiedade e de medo; as doenças, novas e velhas, geram angústia e sofrimento; as catástrofes naturais obrigam-nos a tomar consciência da nossa fragilidade e impotência diante das forças da natureza; as injustiças e arbitrariedades provocam revolta e descontentamento social; o desmoronamento de velhas estruturas políticas e sociais trazem insegurança e desordem…

E nós, movendo-nos neste cenário, sentimo-nos confusos e desorientados. Porque não existe ordem e harmonia no nosso mundo? Então, viramo-nos para Deus e atiramos-Lhe as nossas perguntas ou lançamos-Lhe à cara as nossas certezas. Por vezes, criticamos a sua indiferença face aos dramas do mundo; outras vezes, sentimos a tentação de Lhe mostrar, de forma clara e lógica, como é que Ele devia atuar para que o mundo fosse mais ordenado e harmonioso…

Orgulhosos, cá estamos, mesmo nos templos, como se quiséssemos nos colocar no lugar de Deus e dar-Lhe lições. Estamos conscientes da omnipotência de Deus e dos nossos limites, enquanto seres humanos frágeis e limitados? Assumimos com humildade o nosso lugar de criaturas que não conseguem abarcar a grandeza e o sentido pleno dos projetos que Deus tem para o mundo e para os homens?

Na verdade, o Deus que criou tudo o que existe, que estabeleceu as leis que regem o universo, que conhece os segredos de cada uma das suas criaturas, que cuida de cada ser com cuidados de pai e de mãe, que mil vezes manifestou na história o seu amor e a sua bondade, não pode ignorar os problemas do homem, ou deixar que a humanidade chegue a um beco sem saída. Ele tem um projeto coerente, maduro, estável, irrevogável para o mundo e para os homens; Ele conduz-nos, através das armadilhas da história, ao encontro da realização plena, da Vida definitiva.

Esta certeza deve colorir o nosso caminho de todos os dias com as cores da esperança. Mas será que somos ainda homens e mulheres de esperança? Mergulhados no mistério insondável desse Deus omnipotente, por vezes desconcertante e incompreensível, resta-nos entregarmo-nos nas suas mãos com humildade e confiança.

Porque há desafios que Deus nos coloca e que parecem não fazer sentido à luz de uma lógica puramente humana; há caminhos que Deus nos aponta que subvertem absolutamente as nossas certezas e os nossos projetos pessoais ou comunitários; há situações da nossa vida para as quais não encontramos respostas nem sentido… Mas será que ainda podemos ter o atrevimento de saltar confiadamente para os braços de Deus, acreditando que Ele não nos deixa cair? É assim a nossa fé?

 

Fonte: (1) unidos pela palavra de Deus
proposta para escutar, partilhar, viver e anunciar a palavra. Grupo Dinamizador: José Ornelas, Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, Ricardo Freire, António Monteiro. Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos). Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal. www.dehonianos.org. Liturgia - Dehonianos. 23.Jun.2024. Foto: Quem foi Jó: 10 Lições do homem paciente na provação (bibliotecadopregador.com.br)

 

 

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