Antônio
Pitanga, os Ofaié e o Ivinhema
Carlos
Alberto dos Santos Dutra (Carlito)
A simpatia é
sempre uma porta por onde a alma e a percepção transitam. Expressa o que somos
em essência e como vemos as coisas em si, em imanência. Confesso que foi por aquela
porta, aparentemente frágil, que me vi transportado ao deparar-me diante de tanta empatia que aqueles olhos e sorriso inspiravam.
E cá
estávamos naquele Galpão das Artes, transformado na catedral do cinema e da
cultura do lugar, diante de um evento de extraordinária importância para o
Estado de Mato Grosso do Sul e que reunia ali renomados artistas, produtores
culturais e significativas obras audiovisuais produzidas no País.
Sim,
tratava-se do Festival de Cinema do Vale do Ivinhema que neste ano celebrou sua
18ª edição promovendo a divulgação dos 25 anos do Parque Estadual das Várzeas
do Rio Ivinhema, uma área de preservação ambiental de 72 mil hectares,
verdadeiro santuário da natureza localizado na confluência das águas do rio Ivinhema
com o rio Paraná num cenário paradisíaco.
Em meio a um
roteiro de múltiplas atrações e atividades culturais que reuniu desde show do
cantor Chico César, MC Guarani Anarandá, Celito Espindola e
Paulo Simões, o recital de Eduardo Martinelli e Brener Gonzales que
homenageou o flautista Potápio Silva, entre outros, projetou mais de 25
filmes recentes, curtas e longas metragens, premiados nos principais festivais
nacionais e internacionais, amostra sob a curadoria do cineasta Joel Pizzini.
O festival
também exibiu em avant-première o filme documentário de Ricardo
Câmara e Maurício Copetti, "Inventário das Várzeas do Ivinhema", com a
participação do Prof. José de Souza Kói e do cacique Marcelo da Silva
Lins, ambos Ofaié, que mostrou um tríplice olhar, na visão arqueológica, antropológica e
histórica desta várzea contando com a poesia cosmogônico dos últimos representantes
do povo Ofaié, cujos ancestrais ali
viveram fazendo um contraponto entre a ciência e a narrativa oral deste povo,
antigos habitantes do lugar.
O festival
também fez uma homenagem ao centenário da violeira Helena Meirelles (in
memoriam) e ao ator Antônio Pitanga que celebrou 85 anos no dia 13
de junho último, carregando nos ombros os louros de ter realizado mais de 70
filmes, 50 participações na televisão e uma dezena de peças teatrais que lhe
conferiram inúmeros prêmios.
E ele estava lá, sentado em meio a plateia assistindo o lançamento do filme
sobre as várzeas do Ivinhema. De chapeuzinho na cabeça e um largo sorriso que
lhe iluminavam os olhos, era um pontinho negro naquele plenário branco formado
por artistas, intelectuais, profissionais das artes, e comunidade local.
Enquanto os protagonistas
e a equipe técnica de produção era convidada para compor a mesa dos debates, ao
final da projeção que foi aplaudida de pé, a música acalanto “O Povo do Mel”, trilha
do filme, composta por Celito Espindola e Paulo Simões, ainda embalava os
ouvidos e o coração de todos.
Foi neste
momento que a atenção da plateia deitou o olhar mais acurado sobre o ilustre
visitante, Antônio Pitanga ali presente. Não despertada, talvez, pela
aura que o envolvia, nutrida pelo senso comum e o currículo invejável deste
ator protagonista de uma vasta lista de obras audiovisuais consagradas; mas pela percepção sentida mais amiúde das palavras que brotavam de sua alma: --Ela sangra,
disse ele.
As margens
frias e alagadiças daquela várzea, num dado momento, sentiram o calor e a força
destas palavras. Sob nossos pés, era como se voltássemos a pisar sob um vasto
sitio arqueológico, num reencontro cheio de vida e morte dos que ali viveram e ainda
insistem em viver pelas dobras da memória. –Este filme faz a nossa alma
sangrar, continuou.
Não sangue
de dor, mas de reverência, reconhecimento, confiança, lembrança, e esperança,
parecia dizer quando associou a luta pela
autodeterminação dos povos originários, os povos indígenas, com a luta pela
igualdade racial do povo negro no Brasil.
--O negro
e o índio, eles são os pilares da formação histórica deste país, disse com voz firme e corajosa diante de um aparente
silêncio da verdade encartada nos livros, no mais das vezes negada e soterrada pela pá de
cal do esquecimento e do embranquecimento da pele que pintou em falsete as cores oficiais desta
pindorama, terra brasili.
O diálogo
entre o indígena Ofaié, José Koi e o ator Antônio Pitanga, aos
poucos, foi contagiando o ambiente rompendo com a fleuma de alguns, movidos pelo rumo das palavras de um discurso amoroso, diria Roland Barthes, cheio
de vida e sabor, que nos arrebatavam a uma visão holística do que representava para todos os sobreviventes do desterro e preconceito aquele momento singular.
A história e o testemunho dos Ofaié, através das imagens daquele filme lançaram sementes de um sentimento de pertença até então adormecido na história de Ivinhema, mas que ainda se encontrava sob as folhas daquele chão.
O sopro de vida, ao som do
chocalho Ofaié e Guarani do passado, e as palavras de fé e esperança de Antônio Pitanga, hoje, faziam soerguer em nós as palavras 'tamoias' de Gonçalves Dias: Não
chores meu filho; não chores, que a vida é luta renhida: viver é lutar, a
vida é combate...
Os créditos
do filme, aos poucos, vão esmaecendo na tela e os espectadores vão deixando o
lugar também. O murmúrio das vozes e os flashes das câmeras rodeiam o ilustre
convidado, quando todos desejam eternizar aquele momento: uma foto e um abraço com aquele cidadão
especial e diferenciado.
Ao longe, o barco das palavras de Antônio Pitanga permanecem ecoando no coração do lugar, educando e evocando chamas sempre vivas, batendo no casco de nossas vidas, conclamando pelo respeito e os direitos dos povos negros e indígenas deste País.
Voz que se confunde com a bulha das águas do antigo Igaray, nome dados pelos primeiros viajantes ao Ivinhema, que prossegue o seu curso pelas várzeas, desafiando a ordem e o tempo, e recolhendo de suas margens as lembranças da erva-mate, o som das vozes Guarani, e o acalanto dos Ofaié, o doce e gentil povo do mel...
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