sábado, 24 de agosto de 2024

 

Dona Laura, a internet e a poesia

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

Noite fria, 15 de agosto de 2010, e cá estou com dona Laura. É tão bom ter a mãe por perto. Especialmente quando ela, já na casa dos 70 anos, se mostra lúcida e participativa. É isso que a move neste momento. Olhos firmes na tela, o dedo cantarolando de leve sobre a mesa, enquanto o cursor desliza pelo Google em direção ao site “blog dos poetas” [1]. 

Há muito ela me falava deste poeta e das poesias que ela declamava em sua juventude. Decidimos, então nesta noite, navegar pela internet, visitando e revisitando o passado. Era surpreendente que aquela senhora, mãe de oito filhos, e que dedicou sua vida inteira à família e a filantropia, pois sempre foi engajada nas causas sociais e religiosas de sua comunidade, reservasse tempo ainda para a poesia. 

Aliás, confessou-me, dias atrás, que foi a poesia de grande ajuda para embalar os sonhos transformados, a cada ano, num novo nenê que chegava na casa, para a alegria da mãe e preocupação do pai. Pois foi com essa motivação e ouvindo as palavras ditas, tão doce por minha mãe, que adentramos o mundo virtual, tornando-o presente, cá neste cantinho do mundo, no interior de nossa casa, na tela do computador. 

O primeiro poeta pesquisado foi Manuel Bastos Tigre e logo descobrimos que ele nasceu em Recife em 12 de março de 1882 e faleceu no Rio de Janeiro em 1º de agosto de 1957. Nova surpresa acolhe nossos sentimentos: Dona Laura, aos 15 anos de idade (em 1948) já estava declamando poesias de um poeta de 66 anos de idade. E não era para menos, Bastos Tigre era um prodígio: Foi bibliotecário, jornalista, poeta, compositor, humorista, e destacado publicitário brasileiro. 

Estudou no Colégio Diocesano de Olinda, onde compôs os primeiros versos e criou o jornalzinho humorístico “O Vigia”. Diplomou-se pela Escola Politécnica, em 1906. Trabalhou como engenheiro da General Electric e depois foi ajudante de geólogo nas Obras Contra as Secas, no Ceará. Homem de múltiplos talentos foi também teatrólogo. E em todas as áreas obteve sucesso, especialmente como publicitário. 

"É dele, por exemplo, o slogan da Bayer que correu o mundo, garantindo a qualidade dos produtos daquela empresa: "Se é Bayer é bom". Foi ele ainda quem fez a letra para Ary Barroso musicar e Orlando Silva cantar, em 1934, o "Chopp em Garrafa", inspirado no produto que a Brahma passou a engarrafar naquele ano, e veio a constituir-se no primeiro jingle publicitário, entre nós."[2]. 

Os olhos de dona Laura percorrem a tela do computador onde as letras parecem saltar para fora do ambiente virtual. É como se saber quem foi o poeta, autor das poesias que seus lábios proclamaram, a sintonizasse, de novo, com o mundo, em tempo real. Ali descobre que um de seus poetas preferidos durante sua vida prestou concurso para Bibliotecário do Museu Nacional (1915) com tese sobre a Classificação Decimal, ora veja. Mais tarde, transferiu-se para a Biblioteca Central da Universidade do Brasil, onde serviu por mais de 20 anos. Bastos Tigre ainda exerceu a profissão de bibliotecário por 40 anos, e é considerado o primeiro bibliotecário por concurso, no Brasil. No dia 12 de março é comemorado o Dia do Bibliotecário, que foi instituído em sua homenagem. 

Depois de viajarmos pela biografia do autor, somos convidados a adentrar a sua obra. A setuagenária Laura, de imediato, me convida para clicar sobre uma poesia em especial. E por estranho que pareça, não é uma poesia do seu tempo de infância e juventude. Tem muito a ver com o seu tempo de hoje. O filho a observa em silêncio, encantado, vendo a mãe declamá-la com sotaque firme e vigor, pensando também que logo chegará o seu dia. 

Envelhecer, de Bastos Tigre: 

“Entra pela velhice com cuidado / Pé ante pé, sem provocar rumores. / Que despertem lembranças do passado, / Sonhos de glória, ilusões de amores. / Do que tiveres no pomar plantado, / Apanha os frutos e recolhe as flores. / Mas lavra ainda e planta o teu eirado. / Que outros virão colher quando te fores. / Não te seja a velhice enfermidade! / Alimenta no espírito a saúde! / Luta contra as tibiezas da vontade! / Que a neve caia! o teu ardor não mude! / Mantém-te jovem, pouco importa a idade! / Tem cada idade a sua juventude”. 

Outro poeta que dona Laura cantarolou durante sua juventude foi Alceu Wamosy, nascido em Uruguaiana-RS, em 1895, tendo falecido em Santana do Livramento-RS, em 1923. Alceu Wamosy publicou seu primeiro livro de poesia, “Flâmulas”, em 1913. Na época já trabalhava como colaborador no jornal “A Cidade”, fundado por seu pai, em Alegrete-RS. A partir de 1917 tornou-se proprietário do jornal “O Republicano”, apoiando o Partido Republicano. Continuou colaborando para diversos periódicos, como os jornais “A Notícia”, “A Federação”, “O Diário” e a revista “A Máscara”. Publicou as obras poéticas “Na Terra Virgem” (1914) e “Coroa de Sonho” (1923). Postumamente foram publicados “Poesias Completas” (1925) e “Poesia Completa” (1994). Simbolista, este poeta escreveu poemas cheios de desencanto, em uma produção que se destacou no sul do país [3]. Uma de suas poesias, senão a mais famosa, cresci vendo aquela senhora, minha mãe, declamar, cuja letra jamais esqueceu: 

Duas Almas, de Alceu Wamosy [4] (A Coelho da Costa): 

“Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada. / Entra, e, sob este teto encontrarás carinho: / Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho, / vives sozinha sempre, e nunca foste amada... / A neve anda a branquear, lividamente, a estrada, / e a minha alcova tem a tepidez de um ninho. / Entra, ao menos até que as curvas do caminho / se banhem no esplendor nascente da alvorada. / E amanhã, quando a luz do sol dourar, / radiosa, essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua, / podes partir de novo, ó nômade formosa! / Já não serei tão só, nem irás tão sozinha: / Há de ficar comigo uma saudade tua... / Hás de levar contigo uma saudade minha...”. 

A terra que dona Laura adotou, logo depois de casar, em 1955, para construir sua família e história, para sua felicidade, anos mais tarde viria prestar uma justa homenagem a um desses poetas prediletos do seu tempo. A biblioteca Cacequi-RS, recebeu o nome de “Biblioteca Municipal Alceu Wamosy” [5] para a alegria dos poetas e escritores, onde dona Laura, modestamente, se insere [6].

 

Fonte: Publicado em Dutra. C.A.S. Homenagens, Brasilândia, Ed. Do Autor, 2011, pág. 179. Disponível para aquisição em: Homenagens, por Carlos Alberto dos Santos Dutra - Clube de Autores 



[1] - Disponível em http://blogdospoetas.com.br/poetas/bastos-tigre/, acesso em 15.08.2010.

[2] - As vidas de Bastos Tigre, 1882-1982. Catálogo da exposição comemorativa do centenário de nascimento. Rio de janeiro: ABI FUNARTE, Centro de Documentação. Companhia de Cigarros Souza Cruz, 1982. 32 p. Il., p. 16.

[4] - In: WAMOSY, Alceu. Poesia completa. Introd. Cícero Lopes. Porto Alegre: Alves Ed.: IEL: EDIPUCRS, 1994. p.14.

[6] - Dona Laura publicou seu primeiro livro aos 70 anos, em 2003, pela Editora Aberta, do Rio de Janeiro: “História de um amor comum”. Nesta obra, história de vida e ficção se misturam com poesia e profundidade. Oito anos depois, em 2011, brinda-nos com uma narrativa ousada e madura, de pura ficção: “Os estranhos amores de Lili”, onde os fatos da vida e da emoção caminham juntas. Publicou ainda: "A fonte da felicidade", em 2018; e "A menina e as curvas do trem", em 2019. Dona Laura faleceu em 21 de agosto de 2022.

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