quarta-feira, 14 de agosto de 2024

 

Era uma vez um pirilampo encantado

Carlos Alberto dos Santos Dutra (Carlito)

 









--Mamãe, estou com frio. A voz, em tom de murmúrio, parecia falar com a silhueta das mãos estendidas que era projetada na parede, ao fundo daquela placa de trânsito na beira da estrada.

Tal qual uma criança perdida de seus pais, enquanto a tarde declinava, sonhava ainda vê-los vindo em seu socorro para aquecê-la do frio e da solidão que sentia.

Só que as luzes dos faróis dos veículos, cada vez mais velozes, já não lhe permitia ver imagens familiares, a exemplo daquelas que sua mãe lhe ensinara com as mãos desenhando figuras imaginárias sob a luz da lua, num tempo que já vai longe.

De súbito, desperta de seu esquecimento e não se vê mais uma criança entre fraldas e cueiros, aquecida e querida por um par de olhos maternal. O que sente é uma espada de dor que a transpassa pelas costas provocada pelo frio que lhe invade o corpo e a alma.

Não. Não mais se encontra entre os seus e seus afetos. Olha ao seu redor e não encontra mais nada, somente o silêncio da noite e o rumor dos veículos e sua pressa. Percebe, então, que está terrivelmente só e perdida naquele lugar.

Leva a mãos à cabeça comprimindo com os dedos a fronte, e busca lembrar: --Lembrar o que?, se pergunta. --Quem sou eu? --Como vim parar aqui? --Para onde vouQual será o meu fim? Angústia e medo lhe tomam de assalto sufocando-lhe o peito e impedindo-a de respirar.

Tem vontade de gritar, mas já não tem forças. Levantar e acenar, no meio da noite, também lhe é tarefa impossível pois seu corpo todo dói, sobretudo os braços e a ponta dos dedos encarangados de frio. Assim, só lhe resta olhar para o Céu.

A noite avança e o ruído dos carros dão lugar ao canto dos pássaros noturnos, a bulha das águas do rio que adiante corre, o som dos grilos, os pirilampos e o coaxar das rãs que habitam as áreas úmidas do lugar que integram a sinfonia rural própria da noite, e que são audíveis somente quando o silêncio que habita em nós e ao redor se cala.

Seu corpo está gelado. Ainda assim, acomoda-se em meio a vegetação rasteira e viçosa que circunda a placa de trânsito que lhe dá abrigo. Se recosta ali e, sentindo o calor da mãe terra, e quiçá o rumor de asas celestes, adormece.

Adormece e sonha. Sim, sonha. Porque sonhar não é proibido a nós humanos, à semelhança dos pássaros quando se veem libertos de suas gaiolas e prisões, dos maus tratos e do esquecimento dos seus.

Sim, ela sonha com aquele vestido floreado, cheio de rosas vermelhas e fundo verde que usou no dia do aniversário de uma de suas filhas. Num outro momento já se encontra  correndo pelos campos floridos cheios de cachos de pompons brancos como o algodão que seus pais colhiam em sua faina diária.

E assim, a noite ruma em direção à aurora. É quando o frio já não lhe paralisa mais o corpo e uma sensação de conforto lhe faz companhia. O sol já havia nascido e lhe iluminava a face tornando-a brilhante e com o rubor radiante de uma juventude que já foi sua. 

A estrada, em todo o seu percurso estava coberta de rosas, da mesma cor do vestido que usara um dia. E toda enfeitada de flocos brancos de algodão que a transformava numa espécie de anjo.

Sentindo-se menina novamente, levanta-se e sai trilhando aquela estrada, colhendo uma rosa aqui outra acolá. Saltitante, sorri, parecendo uma criança que voltava para casa para abraçar a família depois de uma travessura realizada por aí.

E assim o fez. Entrou correndo em casa e diante daqueles olhares aflitos, dos pais e dos irmãos maiores, correu ao seu encontro de braços aberto e disse a todos: --Eu estou aqui. Eu estou bem e feliz. E entregou a eles um ramalhete de rosas pedindo que fizessem o mesmo, um dia, a seus filhos e netos, desculpando-se.

--O nome desta mulher? Cada um de nós hoje pode pronunciá-lo em segredo em suas orações: Elvira, com saudade e emoção... Mas, como saber se este pirilampo encantado não anda por aí saltitante e feliz dentro de nossas próprias casas e dentro de nossos corações?

 

Brasilândia/MS, 14 de agosto de 2024.

Foto: Um menino correndo em uma estrada de terra com os braços estendidos. | Foto Premium (freepik.com)

Cf. https://carlitodutra.blogspot.com/2022/07/homenagema-dona-elvira-e-sua-nova.html

 

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