Carlos Alberto dos Santos Dutra
O sentimento é maior que a razão. Mas atenho-me a foto, tendo dela participado para impregná-la no tempo. Lá estavam dois embaixadores daquele povo-esperança. De um lado, o velho cacique Ofaié, Xehitâ-ha, batizado pela cultura portuguesa de Ataíde Francisco Rodrigues, e ao seu lado, um estudioso da língua Ofayé, Prof. Eduardo Rivail Ribeiro, que também se identifica com o povo Kariri e recebeu dos patrícios Karajá o nome de Kawina.
Depois de uma longa separação, o informante indígena Ofaié se reencontra com o amigo professor, mestre e doutor, de respeitável estudo e bibliografia etnolinguistica garimpada pelos recônditos meandros de campos e cerrados brasileiros, não sem antes superar os desafios da pesquisa e as exigências da cátedra do além mar.
E lá estavam aqueles dois intelectuais orgânicos com os pés muito firmes no chão, em meio aos escombros de uma nação, sobreviventes, vislumbrando horizontes possíveis para aquele povo ressurgido, cuja língua do tronco macro-Jê é falada hoje por apenas nove pessoas. Quem os observa é Hanto-grê que se encontra ao lado. E agachado, de mão dada a ela, Ancheirai, o outro pesquisador que acompanhou o ilustre professor até a Aldeia Enodi (nödji).
É impressionante como as ideias e os sentimentos unem as pessoas não importando sua origem ou raça. Pouco importa a cor de nossa pele ou a tinta de nossos cabelos. O que permanece é o olhar e o coração: “Eu sei quem é o senhor”, disse Ataíde, logo que avistou o visitante. Já faziam mais de 10 anos que eles não se viam, e olha que eles fisicamente mudaram com o tempo, mas uma coisa permaneceu e os identificava: o lugar social.
Para ser cientista social, pesquisador, professor ou servidor de órgão oficial ou ONG indigenista é preciso ter vocação. Para além do imanente e transcendente. É preciso ser transparente, zeloso sacerdote para lidar com a alteridade. Nessa condição somos atemporais, o relógio é o sol, e o estômago é que nos alerta para a primariedade da vida e a sobrevivência. Há de se ter paciência e sensibilidade para perceber o detalhe, o detalhe importante como observa Peter Burke (1).
Obsequioso e gentil lá está o anfitrião que tem o apelido de Kren-graí, de 56 anos, mostrando ao professor suas anotações e pesquisas. Numa pequena prateleira improvisada de tábua e tijolos, reúne materiais – livros surrados, revistas e jornais velhos --, a maioria deles recolhidos pelas bordas da civilização. “Esse livro achei no lixo”, confessa sem cerimônia, sorrindo, enquanto mostra a obra de Gabriel Garcia Marques, como se guardasse o último tesouro da terra.
Pelas paredes de seu quarto, desbotadas figuras do mundo contemporâneo, de luta e símbolos de resistência – como a foto de Ingrid Bitancurt, ex-refém da FARC recém-saída do cativeiro e a estampa do Padre Marcelo Rossi animando uma multidão de fiéis num concerto para a Paz. Mosteiro de portas abertas a luz adentra aquele claustro e o mundo que o cerca revelando o homem plural e de aspirações holísticas que se encontra a nossa frente.
No esplendor de suas potencialidades intelectuais, é uma pérola, uma joia rara que, depois de lutar contra o genocídio imposto sobre os Ofaié, depois de ajudá-los empunhar a bandeira do reconhecimento étnico frente à FUNAI e soerguer esse minúsculo povo das cinzas, hoje enfrenta a hanseníase, a discriminação e a indiferença. Vive isolado numa casinha, entre plantas e a literatura, num canto da aldeia Enodi, mas se revigora e alegra ao receber visitas que o despertam para a vida.
Quando sóbrio, dá gosto conversar com esse verdadeiro depositário do cabedal histórico do povo Ofaié. Ainda que seja jovem, o aspecto é de um idoso, tamanho o peso de suas desventuras pelas trilhas do abandono. Quantas vezes pela manhã saiu feliz de uma casa, onde havia ganhado alimento e roupas novas, para logo a noite ser encontrado escondido, somente de calção, tremendo de frio, depois de ter sido roubado, espancado e jogado no breu de uma rua qualquer, pelos descaminhos da solidariedade etílica que todos os dias ceifa a vida de dezenas de desvalidos, mesmo na pequena Brasilândia, cá num pontinho do Mato Grosso do Sul.
O rosto do grande líder se ilumina ao sintonizar as palavras do linguista com a frequência das intenções que pulsam no lado esquerdo do peito. Gesticula, sorri, faz planos. E ambos numa cumplicidade contagiante aspiram dias melhores para aquele povo. Desejam continuar, permanecer ali por mais tempo, realinhando rumos, como que trazendo o amanhã de projetos e felicidade futura para perto do tererê e a sombra que os acolhe no agã-chanagui daquela tarde que morre.
Hanto-grê, de olhos muito pequenos, chora a saudade de João Carlos Can-hê. Na casa ao lado, Neuza Teng-hô e Luciana Chamiri espreitam o amanhã de seus filhos que acabam de chegar da Escola Ofaié E-Iniecheki que funciona na aldeia. Da mesma sorte, o cacique José Kói e o professor Silvano Hang-tar-héc, partilham desta esperança. A Profª Marilda Char-tâ, segue redesenhando suas cartilhas sempre apoiando os pesquisadores que por lá aparecem, na espectativa de dar eco as palavras de Darcy Ribeiro: "A língua Ofaié está salva" (2). Seu esposo guarani-kaiowá, Roni Va-verá, em silêncio, na sua cadeira de rodas, tudo observa. Diz ao professor de longe que “lembra de tudo”. Sorri e continua falando.
Enquanto o carro se afasta levando Kawina e Ancheirai, levam eles também na mochila satisfação e uma sensação de saudade. No rasto, para os olhos de Xehitâ-ha e o restante da aldeia Enodi (nödji), fica por lá, quem sabe, a sensação de esperança.
(1) RIBEIRO, Renato Janine. Peter Burke. Entrevista a Renato Janine Ribeiro. Seção Textos. nº 20, pp. 112-8, dez/93-fev-1994.
(2) RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo, Companhia das Letras, 1997., p. 171.
Brasilândia-MS, 13 de dezembro de 2016.
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