Carlos Alberto dos Santos Dutra
O evento aconteceu na Fundação Nelito Câmara. Autoridades municipais, acadêmicos, professores e população interessada na cultura e etnohistória indígena reuniram-se na noite de 18 de maio de 2012 para receber um ilustre visitante. Nas paredes da entidade expoente da cultura local estampas fotográficas em tamanho gigante transportavam os presentes a um distante passado captado pela ocular de Darcy Ribeiro ainda em 1948, lá pelos sertões do ribeirão Samambaia onde ele se avizinha do córrego Baile e o colar de baías da foz do Ivinhema.
O cidadão em trajes civilizados observa atentamente os painéis. No seu imaginário aquelas pessoas lhe pareciam bastante familiar. Patrícios de outras épocas, sentados no chão, tomando chimarrão, segurando pesadas chaleiras de ferro; homens agachados, tirando farpas do taquari e pau preto, na confecção de flechas, e uma paisagem de cerrados e campos, ainda inóspitos e pouco habitados. A sensação é de liberdade, segurança e bem estar. Era como se ali, o inimigo ainda não ousasse adentrar.
Minutos antes, ao chegar na cidade, enquanto percorria a Avenida Reynaldo Massi, fundador do município, era como se a brisa do passado lhe despertasse o espírito. Algo como estar pisando num candente sitio arqueológico. Algo que não saberia explicar. Porém seu coração jamais lhe enganara, e seguiu seus instintos: Aquele solo havia sido habitado por seus antepassados, rememorou. Dia desses havia lido em algum lugar que seu povo Ofaié habitara a margem esquerda do rio Ivinhema. Foi há muito tempo, quando esta urbe ainda nem era distrito de Bataguassu, e o ano era 1911.
O rapaz observa atentamente o cabelo amarrado na nuca de Xehitâ-ha, sua pele cor de chocolate queimada pelo sol e o corpo levemente curvado pelas andanças, apesar da pouca idade. Não resiste e pergunta: --o senhor é índio? Aquela pergunta pareceu o badalo de um sino capuchinho lá do ribeirão das Marrecas, ecoando rio Verde adentro, na cabeça do ex-cacique Ofaié. Foi como se um estalo o fizesse despertar em seus pensamentos e sonhos. E por um momento fugaz de nostalgia vê o menino de outrora correndo e acenando pela margem, tentando comunicar-se com a outra banda do rio.
O pai do menino aproxima-se e explica quem era aquele povo que vivia na outra borda por onde subiam embarcações até o porto Angelina, pertencente a empresa Matte Laranjeira. Na margem direita do Ivinhema, em frente à foz do córrego Santa Bárbara, próximo ao atual distrito de Amandina, no curso das fazendas Guarani e Gato Preto, o povo guarani Kaiowá que ali habitava o retiro do SPI ergue os olhos e responde o aceno infantil da outra margem. Na língua guarani, aquele outro povo, Ofaié, era chamado de Yviva, que quer dizer na tradução singular de Nimuendajú apenas pessoas. Para o natural etnocentrismo Guarani, os Ofaié eram, na verdade, apenas pessoas e nada mais. E não ofereciam perigo algum a seu povo.
A presença Guarani na margem direita do Ivynhema, entre o Piravevê e o Guiraý é pouco mencionada na literatura. À exceção do registro dos desbravadores Teotônio José Juzarte e Joaquim Francisco Lopes, em terras então de Espanha, no século XVIII e seguinte, em tempo recente é Curt Nimuendajú que em seu relatório de 1913 identifica a presença de Guarani fugitivos no córrego Santa Bárbara, quando alerta que eles só podiam ser colocados ali provisoriamente (..) mas não convém absolutamente eles tratarem disto na vizinhança dos Ofaié com os quais eles não se entendem e nem querem confraternizar (...). O mais conveniente seria talvez de tratar logo de uma reserva aos Guarani e Kaiuá na margem direita do rio Ivynhema.
Maior atenção à presença Guarani que habitava essa região nunca foi dada, depreende-se, em razão da divisão geográfica imposta pelo SPI que reservou para a Inspetoria de São Paulo as terras localizadas na margem esquerda do Ivynhema até o Sucuryú e que foram inspecionadas bem mais amiúde. O mesmo não ocorreu com a Inspetoria do Sul de Mato Grosso, responsável pelo restante do extenso território que compreendia o rio Paraná, da barra do Ivynhema pela margem direita até a direita paraguaia, numa área avaliada por Nimuendajú em 40 e tantos mil quilômetros quadrados com mais de mil índios para supervisionar, sendo que muitos de seus trechos nunca chegaram ser visitados.
A claridade de um escasso flash faz despertar Xehitâ-ha de sua aula magistral. Os olhos dos alunos e a platéia atenta à sua frente, entretanto, o enche de esperança. As perguntas das autoridades e a preocupação de todos com a preservação da história regional lhe dão certeza que valeu à pena estar ali e participar daquele momento histórico. Suas palavras, pautadas na experiência e na vida eram sementes lançadas no coração da juventude.
Autografa alguns exemplares do livro O território Ofaié pelos caminhos da história, do Prof. Carlito, e sorri para si mesmo vendo soerguer das cinzas o interesse de jovens estudantes de história em revisitar antigas moradas e identificar pegadas, símbolos e saberes Guarani e Ofaié que por ali, um dia, cruzaram e deixaram sua marca: córrego Fumaça, córrego da Bugra, córrego Batalha, córrego do Engano, ribeirão Combate, córrego da Aldeia, fazenda Cacique, fazenda Guarani, fazenda Gato Preto...
Agradecido pela oportunidade do encontro, Ataíde Francisco Rodrigues, o Xehitâ-ha na língua Ofaié, recosta-se no banco do carro que retorna sereno à aldeia Enodi, em Brasilândia, última fronteira que restou para o seu povo. Em silêncio faz uma prece a Agachô, seu Deus criador. Agradece pela memória, a última guardiã do que ocorreu no tempo. Graças a encontros como estes, reflete, a história dos historiadores pode se encontrar com a memória dos testemunhos, ocasião onde a vigilância crítica dos primeiros, se encontra com a fidelidade ao passado, dos segundos...
Fonte:
DUTRA, C.A.S. Ofaié, morte e vida de um povo, Campo Grande: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 1996, 340 p.
DUTRA, C.A.S. O território Ofaié pelos caminhos da história. Campo Grande: Editora Life, 2011, 416 p.
Publicado em 21 de maio de 2012 e republicado em 25 de dezembro de 2017
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