NATAL NA PRAÇA SANTA MARIA
Com duas pequenas sacolas miseráveis seguras entre os dedos deformados da mão, um pobre infeliz marginalizado da sociedade humana e da vida, também chega à praça, em busca de um banco desocupado. Nos seus passos trôpegos, cansados, busca encontrar alívio e amenizar o calor do dia que vai se esgotando. A figura do infeliz não formava nenhum contraste com o ambiente insólito da praça, ao contrário, confundia-se com ele; por ali, outros mendigos e infelizes faziam o mesmo em busca de abrigo. Seus trapos, porém, não eram estranhos àquele ambiente.
Roupas surradas, sapatos cambaios, esburacados e uma camisa que já tivera cor um dia. O olho da rua, os desvãos das portas e embaixo das pontes, estes lugares sempre foram suas moradas ocasionais, prêmio da velhice desamparada e mendicante. Um dia, que já vai longe, ele teria exigido uma fatia do mundo para si, mas a sorte não o premiara jamais. Nem glórias e nem riqueza ou tudo o que tivera e se fora na voragem do tempo, exaurindo toda doçura ocasional da vida. Quem poderia dizer?
Assim arrastava sua miséria como quem não tinha sequer uma minguada aposentadoria de salário mínimo da vida, vivendo do que os fartos atiravam fora como inútil. Enfim, o pobre infeliz divisou logo adiante um banco desocupado, à sombra de uma árvore sete-copas, muito comum na região. Foi atirar-se sobre o banco e logo dormitava ronronante, o queixo enterrado no peito, as costas numa curvatura anatômica que serviria de prova da origem simiesca do homem. Era véspera de Natal, muitas crianças já corriam por ali saboreando o prazer dos presentes antecipados, como bicicletas, carrinhos de bonecas, reproduções de armas de guerra sofisticadas movidas à pilha e deitando um fogo vermelho como se fora metralha.
O infeliz pária social de nada se dava conta. Simplesmente dormia, talvez numa fuga feliz de tanto sofrimento. E sonhava... Sim, sonhava, porque disso a miséria não o privara. Sonhava que chegava ao Presépio, onde o menino Jesus se encontrava entre as palhas humildes de uma manjedoura rodeada de mansos animais. Três figuras imponentes ofereciam ao Deus-menino, presentes valiosíssimos. Eram os três reis magos. Ele chegou-se a Maria e disse-lhe:
--Senhora, nada tenho para dar ao menino pobrezinho que vai começar a vida e quem sabe lá que destino o espera... Talvez venha a ser muito feliz ou talvez termine igual ou pior do que eu. Nestas duas sacolas, apenas restos... Restos de roupas dos ricos e poderosos, restos de manjares dos felizes que têm uma mesa para sentar, com os seus a sua volta, opíparos manjares, depois migalhas lançadas ao lixo. É o que tenho para comer, para vestir; é toda minha riqueza. Mas eu a daria se não fosse ofendê-lo.
O rosto do menino era o de uma criança loira, de olhos azuis, mas logo se tornava um bebê negrinho, de cabelo encarapinhado, depois já se via nele uma carinha de índio... Para, por último, lhe parecer um pequeno menino asiático. O homem esfregou os olhos confusos, sem entender aquela metamorfose. Seria pura imaginação sua? Ou o menino era todos os meninos pobres e humildes do mundo encarnado em um só ser? Deixou suas sacolas ali e foi saindo, ainda confuso, não sem antes perceber um olhar sobre-humano de bondade no rosto da criança e de resignada compaixão e solidariedade no olhar de Maria e de José.
Acordou de sobressalto. O sino da Igreja Cristo Bom Pastor, não muito distante dali, começava a tocar. Logo uma música no alto-falante da matriz cantava o som de um carrilhão chamando para a Missa do Galo. Nesta hora todas as denominações religiosas e o povo em geral cantavam a alegria do Natal.
--Acorda, acorda velhinho, vamos andar!, dizia-lhe o jovem policial, ainda de todo não endurecido pelo ofício de proteger somente os vencedores na vida.
--Vamos andar que hoje é Natal e nessa praça não pode ficar. Nada de bebida e muito menos alguma briga. O infeliz olhou a sua volta à procura de seus pertences e ao apanhar as duas sacolas,estranhou:
--Ué, o que é isso? E ante seus olhos deslumbrados, avistou numa sacola ricos manjares, frutas, doces cristalizados, tudo que jamais pudera imaginar comer um dia na vida, além de garrafas de vinho estrangeiro. Voltou-se logo para a outra sacola e seus olhos se arregalaram ainda mais atônitos. --Que era aquilo? Roupas novas, camisas, meias, calçados, tudo que havia de mais fino.
--O que é isso?, perguntou o policial. --Você andou roubando?
--Não, não!, gaguejou o infeliz, --Na certa foi Ele que me mandou isso de presente, lá de cima... lá do Céu.
O policial, sem entender, coçou a cabeça e pensou um pouco se acreditava naquela estranha história contada por aquele trapo de gente.
--Tá bem, tá bem, velhinho. É dia de Natal, e dá para acreditar em tudo, até mesmo em milagres... Porque senão, eu teria que levá-lo até a Delegacia para explicar essa história direitinho pro dotô ...
--Foi Ele, foi Ele. O Menino!, gemia o infeliz seguindo pela avenida São José, embrenhando-se na escuridão da estrada rumo ao bairro João Paulo da Silva, saída para a vizinha cidade de Bataguassu. Em passos trôpegos e miúdos, levava no rosto, um raro, ainda que momentâneo sorriso de felicidade e encantamento. Caiu adormecido logo ali, na beira da estrada. Amanhã estaria de volta no banco da praça.
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Este artigo é uma adaptação do magnífico artigo de autoria de Mário Arias Perez (publicado no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre-RS, há mais de 30 anos), e que foi divulgado através do Informativo Chimarrão
nº 13, de Brasilândia-MS, em novembro de 1995, e depois, publicado no livro O
mendigo das estrelas: crônicas brasilandenses, de Carlos Alberto dos
Santos Dutra, São Paulo, Editora Scortecci, 2005. p. 13-16.
O desenho que ilustra o artigo atual é o retrato do mendigo onde o professor Carlito no ano de 1998 serviu de modelo ao artista e pesquisador professor Fábio L da Silva autor do desenho feito a lápis.
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