terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O Povo Ofaié



Os Ofaié e a Universidade: Encontro de Saberes.
Carlos Alberto dos Santos Dutra

A jovem menina Ofaié, com um sorriso nos lábios, empunhava nas mãos algo que lhe figurava mais que um troféu. Era como se carregasse nos braços o peso de um século de história. E olha que não era uma história qualquer. Tratava-se de fruto de suór e lágrimas: Um produto da cultura material de seu povo, de seus ancestrais não tão distantes.

Motivo de tanta emoção plasmava o ambiente de admiração e espanto ao ver aqueles estudantes buscando reter na lente do celular fotos antigas e documentos que marcaram a vida e a trajetória de seus parentes e que naquele momento se encontravam preservados e valorizados.

E tudo isso acontecendo dentro de uma universidade pública. No palco de um evento memorável de lançamento de uma página do Núcleo de Documentação Histórica Honório de Souza Carneiro que naquela noite contemplava a academia com o fundo documental dedicado ao indígena Ataíde Francisco Rodrigues da Silva, o Xehitâ-ha Ofaié.

E lá estavam duas dezenas de pares de olhinhos muito atentos de estudantes indígenas e não-indígenas percorrendo os corredores e prateleiras, caixas-box de recortes de imprensa e documentos, gavetas de mapas e acervo de som e imagem daquele centro de documentação, que instigava a todos.

Estimulados pelos mestres Profª Marciana Santiago e Prof. Weslen Manari, que oportunizaram aos alunos de Brasilândia participar desta visita à universidade, a iniciativa se tornou mais significativa ainda ao contar com a participação da liderança do cacique da aldeia Ofaié e sua filha Tainá, neta do homenageado Ataide Francisco Rodrigues Xehitâ-ha Ofaié, além do representante da Funai, o amigo Olivar Brasil Moreira, popular Bili, que se uniu ao grupo marcando também presença no evento.

Já no anfiteatro, após a abertura dos trabalhos pelo Prof. Dr. Vitor Wagner Neto de Oliveira, a platéia que preenchia todos os espaços do ambiente escolhido para o evento, pode ouvir a manifestação deste escrevinhador acompanhado da liderança Ofaié, Marcelo da Silva Lins, numa troca de informações e saberes que culminou com o lançamento da segunda edição do livro “O território Ofaié pelos caminhos da história”, lançado este ano pela Editora da UFMS dentro do Projeto Saberes Indígenas na Escola.

Em meio a juventude estudantil do ensino fundamental da Escola Antonio Henrique Filho e os acadêmicos do curso de história e outras áreas afins, foi gratificante reencontrar velhos militantes da causa indígena e campesina: Miesceslau Kudlavicz, Adriana LofegoEduardo Nakamura, entre outros professores mestres e doutores ali presentes.

Maravilhoso saber que o acervo relacionado aos Ofaié está preservado e será disponibilizado a todos pesquisadores do mundo, através da página Ataíde Xehitâ-ha Ofaié, que, por intermédio do Núcleo de Documentação Histórica, se transformava agora numa ferramenta importante de divulgação da memória indígena, contribuindo assim para a democratização da informação e forte motivação para a continuidade da pesquisa.

Sim, foi um momento histórico e de suma importância para a trajetória do povo Ofaié. Depois de 30 anos de pesquisa e vivência lado a lado a uma geração de indígenas que aos poucos foi se apartando de nós, temos a sensação de que estamos semeando novamente esperança para aqueles que sobreviveram.

Pois bem. Na linha da história, a presença da Universidade junto aos Ofaié, havia começado 30 anos antes. Estávamos nós lá no final dos anos 80 e eis que os Ofaié -- ainda acampados, praticamente sem terra, nas barrancas do rio Paraná --, eles eram surpreendidos com uma visita de dois ilustres professores da UFMS-CPTL: Prof. Honório de Souza Carneiro e Prof. Nazareth dos Reis.

A universidade local desde 1986, a partir do momento que os Ofaié retornaram a sua terra natal, de onde tinham sido expulsos em 1978, passou a ser instigada pelo CIMI, CPT, CDDH, CEBI e Pastorais Sociais da Diocese de Três Lagoas, tendo a frente o um extraordinário e combativo bispo, D. Izidoro Kosinski, a voltar os olhos para essa etnia ressurgida.

A Profª Terezinha Bazé, à frente da CPTL, nesta época, foi a pioneira ao elaborar um projeto de pesquisa, documentação esta que hoje se encontra preservada no Centro de Documentação Histórica Honório de Souza Carneiro. Depois surgiram outros projetos, como o da Escola Ofaié E-Iniecheki, que contou com o apoio da Profª. Edima Aranha, entre outros profissionais e acadêmicos que aos poucos foram desvelando a realidade étnica do entorno da Universidade.

Pois bem, e lá estava o Prof. Honório e seu filho Marcelo com uma filmadora fazendo um dos primeiros registros dos Ofaié nesta região e também colhendo uma entrevista com o indigenista na época. Lembro que o áudio do VHS não captou o som perfeitamente e o documentário foi salvo graças ao pequeno gravador do filho do Prof. Honório que acompanhava a equipe. Ele, na época, cursava Jornalismo  e conseguiu gravar paralelamente as entrevistas, o que depois pode ser juntado ao vídeo, com uma pequena diacronia, e aproveitado na sua edição.

Além deste material histórico que ainda precisa ser resgatado pelo Núcleo de Documentação Histórico, existe outra entrevista desta mesma época, concedida na barranca do rio Paraná pelos Ofaié e pelo indigenista na época, ao então apresentador de programa, o cantor Renato Teixeira, para a TV Educativa ou Canal Futura, não recordo bem. Trata-se de uma entrevista também de valor histórico que deverá ser recuperada para o acervo Ofaié que nesta noite é lançado.

Após a exposição do pesquisador, foi a vez dos presentes ouvirem a voz do indígena Ofaié que falou pausadamente sobre a história de seu povo até onde a memória alcançava. Apesar da pouca idade, a história oral praticada na aldeia fê-lo experienciar como nos velhos tempos os eventos ocorridos. Falou firme, confessando seu pouco estudo e vontade de crescer, fazer valer seus direitos, pisar numa universidade...

A noite já ia longe e o cacique Ofaié, Marcelo da Silva Lins, como que recuperando  o passado sob a luz das lembranças transparecia empunhar aquela arco e flecha talhado pelo velho Alfredo e Eduardinho, como os antigos caçadores e coletores da margem direita do Rio Paraná, encerrou suas palavras sendo aplaudido por todos: uma forma de reconhecimento da academia que se rendia ao saber milenar das populações indígenas devotando-lhe quiçá respeito e compromisso.


Brasilândia-MS, 13 de setembro de 2017.





























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