sábado, 21 de novembro de 2020

 

Canga Zumba do Cabelo Bom.

Carlos Alberto dos Santos Dutra



Ontem foi o Dia da Consciência Negra e, para não passar em branco, revivo as palavras que escrevi há 14 anos. É um tema que permanece sempre atual e, a julgar pelos acontecimentos dos últimos dias e que se repetem o ano inteiro, republicá-lo se reveste de importância capital para cutucar a nódoa do racismo e preconceito que assombra a todos nós.

O texto de Jamile Chequer, sobre o cabelo ruim, publicado no antigo site do Ibase, em 17.Nov.2006 foi na veia. Impossível não comentar o texto que ilustra as comemorações do Dia da Consciência Negra que lembram Zumbi, aquele negro que teve a cabeça decepada e exposta nas ruas do Recife, em 20 de novembro de 1695, depois de comandar a maior rebelião contra o regime escravista no Brasil inspirado por seu tio Canga Zumba, o primeiro líder do Quilombo dos Palmares que o governou de 1670 a 1678.

Trezentos anos depois, a música fala de chapinha e o cantor MC Franc reforça no refrão: Ih, choveu, cabelo encolheu. A letra cantada não é só uma preferência musical. Faz parte de um ideal. A onda é ser mulher magra e homem sarado, escreve a jornalista. O cidadão se olha no espelho e pergunta: O que há de errado comigo? Mas será que adianta dizer: Não há nada errado com você?

Acontece que o mundo global vive uma corrida louca em busca da perfeição. A tal da qualidade. E aí, quando o cidadão não se encaixa no perfil perfeito, ainda tem que ouvir que seu cabelo não é bom. A cultura do tal cabelo bom tomou conta da sociedade de tal forma que o ideal, no imaginário, são melenas compridas, impecavelmente lisas e que deve balançar ao vento igual à moça da TV.

Uma remexida no baú da história de Canga Zumba, e logo percebemos que essa visão de beleza tem origem no passado escravista e nas relações de dominação que imperaram no decorrer dos séculos após o arrojo de Jorge Velho lá pelo distrito de Porto Calvo. O cabelo do negro, visto como ruim tornou-se a expressão velada do racismo e da desigualdade racial que recai todos os dias sobre os herdeiros de Palmares. É expressão do conflito racial vivido por negros e brancos que se digladiam na busca pelo ideal.

E entopem os salões de beleza; empanzinam-se de produtos químicos, expondo na vitrine do shopping, nas palavras da professora Nilma Lino Gomes, da UFMG, o suporte simbólico da identidade negra brasileira: o cabelo crespo cada vez mais longe do corpo da pele morena, por forma de um patrulhamento estético.

A chamada beleza negra é expressão que nasceu de uma construção social, cultural, política e ideológica criada no seio de uma comunidade. E para que se compreenda o que as pessoas negras pensam e sentem quando mudam os seus cabelos, é preciso conhecê-las e entender como se dá o processo de construção dessa identidade negra no Brasil.

Por outro lado, não se pode dizer que uma pessoa embranqueceu ou que tem consciência política só pelo fato de usar esse ou aquele tipo de penteado. Ainda mais quando se sabe que os efeitos do racismo recaem pesados sobre as mulheres, exigindo-lhe primor na aparência. Dificilmente negros e negras conseguem se expressar esteticamente livres do olhar severo e do julgamento intestino da sociedade que os cercam.

Por isso, mudar o cabelo pode ser entendido como uma tentativa de sair do lugar de inferioridade imposto pelo racismo, um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas de usar o cabelo e a presença de uma identidade negra positiva, independente, alternativa.

Ângela Maria dos Santos, professora da UFMT, citada pela articulista, observa que nesse quadro, a escola tem sido outro palco de reprodução de racismo. A referência negativa ao cabelo afro é a marca fenotípica mais explicitamente mencionada nas situações de ofensas raciais nos corredores escolares, explica.

A reprodução da expressão cabelo ruim, em qualquer meio – mas, sobretudo no ambiente escolar das séries iniciais --, tem trazido graves consequências para o futuro dos jovens. Porque nessa faixa etária existe uma forma naturalizada do racismo se apresentar. E a naturalização do preconceito racial alimenta relações de poder desigual entre alunos brancos e negros, afirma.

A cor, portanto, deixou de ser, em primeiro plano, a marca perceptível da aparência física utilizada pela pessoa que discrimina. Para a professora acima, o que aparece como uma característica física mais funcional para se discriminar racialmente passou, agora, a ser o cabelo. E tudo isso pelo fato de que no imaginário, desde pequenos, ouvimos dizer que alguém em nossa família tinha o cabelo ruim.

Isso demonstra que estereotipamos e fazemos comentários negativos acerca do cabelo, e achamos isso normal. Fazer menção ao cabelo parece não constituir uma forma aberta de racismo, nos desculpamos, diferentemente de quando nos referimos à cor da pele. Quando não nos referimos à cor, julgamos ficar isentos de um comportamento racista. É como se as pessoas ficassem mais à vontade, justifica a autora.

Outro dado assustador é que facilmente fazemos ligação entre negro e coisas. Quando você faz referência ao cabelo do negro comparando-o a uma planta espinhosa, por exemplo, está tirando a sua feição humana. O negro é coisa, e coisa feia. Para se ter uma ideia da força do racismo, observemos que hoje não encontramos facilmente teorias coisificando os negros, mas, no entanto, no discurso e nas falas de nosso cotidiano, elas estão presentes, principalmente na fala de crianças e adolescentes.

Portanto, é na escola que a criança negra sofre a maior carga do preconceito racial. Os apelidos, as comparações com animais (principalmente o macaco) e as referências ao cabelo crespo, como Bombril e outros nomes pejorativos, são comuns no ambiente escolar. No íntimo, muitas negras confessam que só foram usar tranças rastafári, depois de muito relutar consigo mesmo. Um antigo sonho que eu nunca tinha conseguido realizar, explica. E olha que isso, -- confessa uma adolescente--, causou em minha uma transformação autoimagem: um dia, resolvi usá-lo natural. Foi um momento de intenso crescimento pessoal.

Enquanto alguns professores preferem evitar o assunto, outros encaram a situação e estão dispostos a refletir com os estudantes sobre essas brincadeiras nada inocentes. Porque isso precisa ser desmascarado. Não basta a intervenção do tipo: não diga isso. A intervenção pela censura dificilmente leva o educando a refletir. É preciso aproveitar a situação para fazer uma boa discussão de conteúdo, recomendam os pedagogos.

E aí, rebentos de quilombos e palenques? Que tal, cantarolar para nossos filhos e alunos, a música do Max de Castro? Muita gente implica com meu pixaim. Mas o que me implica é que o cabelo é bom. E quando isso me irrita vai ter briga sim. Porque não aceito discriminação. Alisa ele não, você é meu nego do cabelo bom. 

 

Foto: Monica Cardim, 2018. Disponível em https://www.santos.sp.gov.br/?q=noticia/miss-recebe-a-exposicao-mulheres-negras-na-danca, acesso em 21.Nov.2020.

Texto: Publicada originalmente pelo jornal a Tribuna, de Três Lagoas na edição de 26 de novembro de 2006.


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