Os Ofaié, a história e o
verbete no Aurélio.
Carlos Alberto dos Santos Dutra
No dia 8 de fevereiro de 2017, uma nota no
Facebook recordava: Eles estão lá, na página 1.497, da 5ª edição do
majestoso Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, publicada em parceria com a
Editora Positivo, na versão impressa e digital.
E logo
explicava: É o verbete ‘Ofaié’, que finalmente salta dos recônditos da
história e tem seu nome, agora, incluído entre as mais de cinco milhões de
palavras que compõem o léxico da escrita deste nosso pluriétnico Brasil. Ao
final a nota concedia: Parabéns Ofaié. Parabéns Brasilândia.
Nos
comentários que se seguiram e a repercussão das mais de 20 curtidas que
a postagem na época recebeu, um deles observava: Meus parabéns, acredito que nesta
história tem um dedo seu. Com o agradecimento à pessoa querida e pelo
reconhecimento ao trabalho realizado, aproveito o mote para contar um pouco dessa história.
É bom
lembrar inicialmente que o nome Ofaié só começou a ser ventilado nas esferas
jornalísticas a partir de 1976 com uma reportagem do Jornal O Estado de São
Paulo, quando a sucursal de Marilia/SP enviou o jornalista Luiz Carlos
Lopes à Brasilândia/MS e que realizou uma importante matéria sobre esse
povo em vias de extinção e em situação precaríssima de sobrevivência.
A reportagem
assumiu relevância em razão de que, dois anos após, os Ofaié acabaram sendo
transferidos de sua área tradicional e levados pela FUNAI para a Reserva do
Kadiwéu, no município de Porto Murtinho e que acabaram sendo usados como bucha
de canhão, como se noticiou na época, no epicentro de um conflito que
envolvia INCRA, FUNAI, fazendeiros, indígenas e arrendatários na Serra de
Bodoquena e região. O ex-Cacique Ataíde Xehitâ-ha foi testemunha ocular deste
conflito que resultou em muita violência e morte de indígenas e não indígenas
naquela região.
Tempos difíceis
para a chamada abertura política que dava seus primeiros passos nestes tempos bicudos. Na
FUNAI, as fileiras que a comandavam ainda eram verde-oliva e as poucas vozes
que se somavam ao grito dos indígenas – como Marçal de Souza Tupã-I, eram o
CIMI, o CTI, a OPAN, CEDI, CPT, GTME, entre outras entidades não governamentais
e confessionais que ousavam desafiar o regime para se solidarizar com a causa
indígena.
Os Ofaié,
povo minoritário – em Bodoquena viviam 27 pessoas – foram praticamente
redescobertos pelo indigenista Prof. Antônio Brand (in memoriam), que
reuniu, ao lado dos missionários Ivo Schroeder, Rogério, Carlito Dutra,
Orlando Zimmer, Hilário Paulus, Veronice Rossato, Nereu Schneider, Maucir Paulette,
Padre Odilo, Jorge Nei Correia, D. Teodardo Leitz, e outros que trabalhavam
na Regional do CIMI em Dourados-MS, a documentação do soerguimento Ofaié.
Registre-se
aqui a captação da voz do lamento Ofaié gravado por Antônio Brand, em
1981, quando ao lado da indígena Ozena (Eugênia) Ofaié, sentada no chão,
rodeada de crianças da diminuta aldeia, lá no Vazantão, região do Tarumã, fundões de
Morraria do Sul, Pantanal adentro, recolheu uma raridade, que se convencionou chamar de
O último canto dos Ofaié. Estava lançada no espaço impresso e virtual a
voz desse povo esquecido da história.
Logo deixam
de ser confundido com os Xavante. A literatura e os apontamentos dos
primeiros viajantes estrangeiros chamavam a todos os habitantes o cerrado, as ‘savanas’, de ‘shavantes’. Passam, então, este povo diferenciado dos
demais a ser ouvido e respeitado como Povo Ofaié ou “Äfäyé”, como grafam os linguistas. Foi, sem dúvida, na
contemporaneidade, que a ação missionária e acadêmica deu visibilidade à
história e ao grito de liberdade desse povo.
Não fossem
as campanhas nacionais e internacionais realizadas, com mais de cinco mil
assinaturas de entidades e pessoas engajadas em favor da luta intitulada Ofaié,
ainda estamos vivos, a história desse povo teria sido diferente.
Não fosse a
corajosa participação dos alunos da Escola Estadual Adilson Alves da Silva, com
a Profª Márcia Nakamura, em Brasilândia/MS, até o Alto Comissariado das
Nações Unidas e da Human Right que solidarizaram-se com a causa dos
Ofaié a partir de 1989, não saberíamos dizer a que as frentes agropastoris que
tomaram de assalto o MS teriam reduzido esse povo.
Move-se a
roda do tempo e novos reforços, novos agentes sociais e políticas públicas;
novos atores e metodologias, pesquisas e lutas reivindicatórias, cada vez mais
especializadas, mais exigentes e críticas, fazendo a sua parte, como um
corretivo à história. E lá estão eles, agora, indefectíveis, invadindo a
academia com suas lanças e jacá, na trilha de monografias de graduação, dissertações
de mestrado e teses de doutorado. Perambulam pelos estandes da economia, dando
seu nome à monumentos, carimbos oficiais dos Correios, e à Postos Fiscais
da Receita do Estado; na ciência agronômica chegam a imortalizar espécies de
cultivares de trigo, ora veja!
Cruzam a
linha do horizonte da linguística e da semântica que os mantiveram presos
durante séculos no domínio somente do saber de especialistas. O nome Ofaié com
o apoio solidário de parceiros, ingressa nos livros de história, desde a
universidade até a cartilha da escola municipal local. Em que pese as resistências.
Recentemente
uma coleção que pretendia falar dos indígenas do Estado de MS, deixou de falar
dos Ofaié. O próprio IHGMS ao republicar suas obras (que não dispunham de
ISBN) olvidou de incluir o livro Ofaié, morte e vida de um povo, que havia patrocinado em 1996. Enfim, um longo caminho de tolerância acadêmica ainda teve de ser trilhado.
E os Ofaié
da aldeia Anodhi, do município de Brasilândia/MS permaneceram. E estão
aí, com viva voz, para falar de sua história e seus sonhos e conquistas vividos
nos dias atuais. A inclusão de seu nome no Dicionário Aurélio Buarque de
Holanda, edição de 100 anos, sim é um marco a ser festejado. Ainda
que tardio. Quanto à autoria do verbete, como alguém perguntou, a história é
semelhante a uma outra vivida por este escrevinhador há mais tempo.
Quando ele foi convidado pelo CEDI, hoje ISA, para escrever sobre os Ofaié foi algo pioneiro. Os anos 1990 estavam apenas começando e o saber indígena só vinha à lume pelas mãos de uns poucos especialistas.
Hoje, esse saber, assim como todo o
cabedal do Aurelião (cada vez menos consultado em razão da dinâmica e as facilidades de acesso às redes sociais), todo o conhecimento é construído por muitas mãos, sobremaneira pelos próprios indígenas; saberes que na maioria das vezes não aparecem nos
créditos das obras. Mas quem liga, se o mérito está no conteúdo e não na forma?
Num tempo que já vai longe, quem ligava, se o olhar da filha de Knii Ofaié estava cabisbaixo, enquanto seu corpo descansava, sentada num barranco, sob a poeira da estrada – Rodovia MS 040, a 12 km da cidade? Quem liga, se ela ainda permanece aguardando o ônibus, que só depois de passar pelas fazendas da região, a levará para a Escola e uma Biblioteca que guarda tão pouco da memória de sua gente?
Redigido e
publicado originalmente em 08.Fev.2014.
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