sábado, 2 de novembro de 2024

 

Dona Maria Japonesa, a família, o trabalho e os sonhos.

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

 

Toshie Yahata Gonçalves era uma Nikkei, conhecida como dona Maria Japonesa. Era filha de japoneses e embora tenha nascido no Brasil, fora registrada no Koseki Tohn (Registro Familiar Japonês) onde consta ela ter nascido no dia 27 de outubro de 1921, data original de sua certidão de descendência japonesa. Seu registro no Brasil, entretanto, deu-se seis anos depois ao ser registrada no distrito de Glicério, comarca de Penápolis/SP, com a data de 4 de novembro de 1927, divergindo do documento original apresentado ao escrivão à época.

Casada com o servente de pedreiro Alguinel Ferreira Gonçalves, com quem teve oito filhos, viveu na barranca do rio Paraná, no município de Brasilândia/MS, ao lado do esposo e da família praticamente por toda a vida, dedicando-se à agricultura e a atividade oleira.

Sua história começa pelas lembranças que guardava da região de Cafelândia/SP, de forte presença japonesa, onde ela passou a infância e contava para seus filhos e netos a trajetória de sua vida. Morava numa colônia agrícola formada por japoneses que haviam se instalado desde o tempo da imigração, onde milhares deles desembarcaram no Brasil dedicando-se ao plantio e colheita do café.

Tempos difíceis, recorda, nos anos que antecederam a segunda guerra mundial, quando seus pais, Taro Yahata e Mitsu Yahata vieram para o Brasil fugidos do confronto e se dedicaram à agricultura. Montaro Yahata e Umeno Yahata eram seus bisavôs paternos, e Kiochi Ymai e Niuko Ymai, seus bisavôs maternos.

No distrito de Glicério/SP, estudou até a segunda série. Seu pai era um homem rigoroso e queria que a jovem Toshie aprendesse a língua ancestral que era ensinada nessa colônia pelos próprios moradores, contou ela certa vez. Neste período existiam nas colônias agrícolas muitas escolas primárias destinadas a atender os filhos dos imigrantes japoneses. Com a proximidade da guerra, tais escolas foram fechadas pelo governo, com severas restrições ao uso da língua, inclusive com o confisco de bens de estrangeiros.

Dona Toshie conheceu aquele que viria a ser seu esposo, Alguinel Ferreira Gonçalves, no dia em que ele foi prestar serviço para o japonês Taro Yahata, pai da moça, lembra a neta Sandra Ferreira Gonçalves: Após uma semana de trabalho ele pediu minha avó em namoro, mas o pai dela não consentiu, pois japonês só podia se relacionar com japonês. Foi quando meu avô fugiu, como se diz, ‘roubando’ a noiva, minha avó.

E sumiram no mundo, passando de cidade em cidade até chegar em Três Lagoas no ano de 1969, seguindo para olaria dos Viana. Depois, chegaram na barranca do rio Paraná, isso lá pelos anos 1977 e 1978, onde ali permaneceram por 20 anos vivendo da terra, até a chegada da CESP e fazer ‘aquilo’ que ela fez, lamenta a neta. Foi nesta época que seu Alguinel, esposo de dona Toshie veio a falecer, no dia 27 de junho de 1999, deixando os filhos Nelson, Clarice, Vera Lúcia, Wilson, Mauro (†1985), Celso, Sérgio e Tiane.

Com a inundação das terras, olarias e casas da barranca, pelas águas da Hidrelétrica de Porto Primavera, os oleiros, agricultores e pescadores foram todos transferidos para reassentamentos rurais, de mão de obra atingida e dos que praticavam atividade ceramista. Deslocada para o Reassentamento Novo Porto João André, lá se instalou a viúva Toshie e seus filhos que um a um já haviam partido, tomando rumo na vida, deixando-a cada vez mais só. Ela ali permaneceu na rua 21, lote 18, onde administrou por longo período a sua Cerâmica Yahata.

Sobre os seus sonhos, sempre guardou segredo. Recorda a neta Sandra em uma de suas conversas, pois sempre falou muito pouco sobre sua intimidade. Mas o que mais lhe importava era a família, valor que ela sempre preservou: herança cultivada desde o tempo de seus pais e avós lá do Japão. Só que a vida nem sempre corresponde aos nossos sonhos e ela teve de amargar a saudade e a distância de seus irmãos e irmãs, quando não o preconceito que os separou pelo fato de ter sido a única da família que se uniu e casou com alguém diferente de sua cultura e ascendência oriental.

Este sonho, entretanto, persistia, e jamais pode esconder de quem a conhecia mais de perto: reencontrar a família que um dia foi sua e que hoje vivia na capital paulista. Todos haviam progredido e se encontravam bem estruturados na vida, e isso a deixava feliz.

Um dia ela arrumou-se toda e viajou até eles, chegando a visitar um de seus irmãos. Mas infelizmente, recorda a neta com tristeza, depois de mais de 20 anos sem ver esse irmão querido, não se sentiu bem-vinda e voltou para casa decepcionada. Mesmo assim, nunca parou de falar no restante dos irmãos e na irmã caridosa que a visitava com frequência, o que foi sempre grata.

Já em idade avançada, quando as forças começaram a lhe faltar para tocar o seu negócio, arrendou sua olaria para seu Antônio, um comerciante de quem obteve muitos dissabores no cumprimento do que fora acordado, tendo que recorrer à Justiça para obter o imóvel de volta.

Nos últimos anos dedicava-se com paciência e alegria a lidar com umas poucas cabeças de vacas que ela mesma cuidava e ordenhava todos os dias. Pessoa de fino trato, simples, educada e de uma honestidade nunca vista, ao lado do carinho e humanidade que irradiava; todo isso a tornava querida e admirada por todos que a conheciam.

Silenciosa e gentil, ao estilo oriental, nas suas relações e negócios seus gestos inspiravam em todos sempre confiança e respeito. Uma mulher de honra e fé pública, guerreira, praticamente anônima, mas que causava orgulho e encantamento àquele que se dispusesse dialogar com ela alguns minutos. Mulher que nunca desistiu da vida e do trabalho. Enquanto teve forças viveu e fez brotar vida à sua volta. Só parou quando as dificuldades financeiras chegaram: foi quando adoeceu.

Dona Maria Japonesa, como era carinhosamente chamada, faleceu no dia 1º de novembro de 2016, aos 95 anos de idade, segundo seu registro original do Japão, deixando 8 filhos, 28 netos, 38 bisnetos e 4 tataranetos; e uma dezena de amigos que ainda hoje nutrem por essa vovó eterna saudade daquele sorriso meigo, encabulado, algo como se um anjo tivesse passado por aqui.

 

Brasilândia/MS, 1º de novembro de 2024.

Fonte: A expressão Nikkei significa descendentes nascidos fora do Japão; japoneses que vivem no exterior ou, ainda, simpatizantes da cultura japonesa. 

Este artigo foi escrito em parceria com a neta Sandra Ferreira Gonçalves e publicado inicialmente em 03.Dez.2019, em https://www.institutocisalpina.org/dona-maria-japonesa-a-familia-o-trabalho-e-os-sonhos.html, e em DUTRA, C.A.S. Quando eu me chamar saudade. Vol. 1, 2ª Ed. Brasilândia, Edição do Autor, 2023, pág. 132-134.

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