sábado, 10 de julho de 2021

 

Amós, Amós, por onde andas? Como precisamos de ti...

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 

Amós, o profeta da justiça social, exerceu o seu ministério profético no reino do Norte (Israel) em meados do séc. VIII a.C., possivelmente, por volta de 762 a. C., durante o reinado de Jeroboão II.

 

Um dia, Amasias, sacerdote de Betel, disse a Amós: Vai-te daqui, vidente. Foge para a terra de Judá. Aí ganharás o pão com as tuas profecias. Mas não continues a profetizar aqui em Betel, que é o santuário real, o templo do reino.

 

Nesta época havia prosperidade econômica e tranquilidade política na região. As conquistas de Jeroboão II alargavam consideravelmente os limites do reino e permitiam a entrada de tributos cobrados dos povos vencidos; o comércio e a indústria mineira e têxtil desenvolviam-se significativamente.

 

As construções da burguesia urbana atingiram um luxo e magnificência até então desconhecidos. A prosperidade e bem-estar das classes favorecidas contrastavam, porém, com a miséria das classes baixas. O sistema de distribuição estava nas mãos de comerciantes sem escrúpulos que, aproveitando o bem-estar econômico, especulavam com os preços.

 

Desta forma, com o aumento dos preços dos bens essenciais, as famílias de menores recursos endividavam-se e acabavam por se ver espoliadas das suas terras em favor dos grandes latifundiários. A classe dirigente, rica e poderosa, dominava os tribunais e subornava os juízes, impedindo que o tribunal fizesse justiça aos mais pobres e defendesse os direitos dos menos poderosos.


Entretanto, a religião florescia num esplendor ritual nunca visto. Magníficas festas, abundantes sacrifícios de animais, um culto esplendoroso, marcavam a vida religiosa dos israelitas...

 

O problema é que esse culto não tinha nada a ver com a vida: no dia a dia, os mesmos que participavam nesses ritos cultuais majestosos praticavam injustiças contra o pobre e cometiam toda a espécie de atropelos ao direito. Ainda mais: os ricos ofereciam a Deus abundantes ofertas, a fim de serenar as suas consciências culpadas e a fim de assegurar a cumplicidade de Deus para os seus negócios escuros...

 

Além disso, a influência da religião cananeia estava a levar os israelitas para o sincretismo religioso: o culto a Jahwéh misturava-se com rituais pagãos provenientes dos cultos a Baal e Astarte. Essa confusão religiosa punha em sérios riscos a pureza da fé jahwista.


É neste contexto que aparece o profeta leigo chamado Amós e sua resposta dura ao sacerdote Amasias: Eu não era profeta, nem filho de profeta. Era pastor de gado e cultivava sicómoros. Foi o Senhor que me tirou da guarda do rebanho e me disse: 'Vai profetizar ao meu povo de Israel'.

 

Natural de Técua, uma pequena aldeia situada no deserto de Judá, Amós não era um profeta profissional, mas, fora chamado por Deus. Deixou a sua terra e partiu para o reino vizinho para gritar à classe dirigente a sua denúncia profética. A rudeza do seu discurso, aliada à integridade e afoiteza da sua fé, traz algo do ambiente duro do deserto e contrasta com a indolência e o luxo da sociedade israelita da época.


O episódio leva-nos até ao santuário de Betel, no centro da Palestina. Trata-se de um lugar considerado sagrado, desde tempos imemoriais. De acordo com Gn 35,1-8, Jacob construiu aí um altar e dedicou-o a Jahwéh. Mais tarde, Betel aparece como o local onde se reúne a assembleia de todo o Israel para consultar Deus (cf. Jz 20,18), para chorar diante de Deus a sua infelicidade (cf. Jz 20,26) e para se encontrar com Deus (cf. Jz 21,2).

 

Tudo isto reflete a importância cultual do lugar. Quando o Povo de Deus se dividiu em dois reinos, após a morte de Salomão (932 a.C.), os reis do Norte (Israel) potenciaram o culto em Betel, para impedir que os seus súbditos tivessem de deslocar-se a Jerusalém, situado no reino inimigo do Sul (Judá). Então, Betel transformou-se numa espécie de santuário oficial do regime, onde o culto era financiado, em grande parte, pelo próprio rei.

 

O sacerdote que presidia ao culto era uma espécie de funcionário real, encarregado de zelar para que os interesses do rei fossem defendidos, nesse local por onde passava uma parte significativa dos fiéis de Israel. Na época em que Amós exerce o seu ministério profético em Betel, o sacerdote encarregado do santuário era um tal Amasias. Alguns elementos que chegaram até nós parecem indiciar também a existência em Betel de uma imagem de um bezerro, que representava Jahwéh e que era adorado pelos fiéis (cf. Os 10,5).


Betel é um dos lugares onde ecoa a denúncia profética de Amós. Provavelmente, Amós criticou as injustiças cometidas pelo rei e pela classe dirigente; e, certamente, denunciou, nesse lugar, um culto que era aliado da injustiça e que procurava comprometer Deus com os esquemas corruptos dos poderosos.

 

Em síntese, o nosso texto descreve o confronto entre o sacerdote Amasias e o profeta Amós. É um texto fundamental para entendermos a missão do profeta, a sua liberdade face aos interesses do mundo e dos poderes instituídos (...).


Nesta perspectiva, a denúncia de Amós soa como uma rebelião contra os interesses enlaçados do poder e da religião, a doutrina subversiva que põe em causa as estruturas e que abala os fundamentos da ordem estabelecida. Por isso, há que usar toda a força do sistema para calar a voz incomoda do profeta. Amós é, portanto, denunciado, convidado a deixar o santuário e a voltar à sua terra para ganhar aí o seu pão.


A resposta de Amós deixa claro que o profeta é um homem livre, que não atua por interesses humanos, próprios ou alheios, mas por mandato de Deus. A iniciativa de ser profeta não foi sua... Deus é que veio ao seu encontro, interrompeu a normalidade da sua vida e convocou-o para a missão. De resto, a profecia não é, para ele, uma ocupação profissional, ou uma forma de realizar interesses pessoais.

 

Amós é profeta porque Deus irrompeu na sua vida com uma força irresistível, tomou conta dele e enviou-o a Israel. O profeta não está, portanto, preocupado com os interesses do rei ou com os interesses do sacerdote Amasias, ou com a perpetuação de uma ordem social injusta e opressora... Ele foi convocado para ser a voz de Deus e só lhe interessa cumprir a missão que Deus lhe confiou. Doa a quem doer, é isso que Amós procurará fazer. Ele não pode, nem quer ficar calado...

 

A lição que Amós nos deixa é: 1º) a de que Deus está na origem da vocação profética e que ela só faz sentido se tiver como objetivo apresentar aos homens as propostas de Deus. Nenhum profeta o é por sua iniciativa pessoal, ou para anunciar propostas pessoais; mas é Deus que nos chama, que nos envia e que está na base desse testemunho que somos chamados a dar no meio dos homens.

 

2º) o profeta não se amedronta, não se cala, nem se dobra face aos interesses dos poderosos; não pode deixar de denunciar: a injustiça que vê, a opressão, a exploração, e tudo o que rouba a vida e impede a realização plena do homem.

 

3º) o profeta, ao contrário de Amasias, não se compromete com a ordem estabelecida contrário ao projeto de Deus, que vende sua consciência para manter o lugar e que transige com a injustiça para não incomodar os poderosos.

 

4º) o verdadeiro profeta, a exemplo de Amós, não se vende; está disposto a arriscar tudo, inclusive a própria vida, para defender os pequenos e os fracos e que não hesita em propor os projetos de Deus para o homem e para o mundo.

 

Se Amasias é o homem comodamente instalado nos seus privilégios, benesses, que cala a voz da própria consciência porque tem muito a perder e não quer arriscar; Amós, ao contrário, é o profeta livre da preocupação com os bens materiais, que não está preocupado com a defesa dos próprios interesses, mas sim com a defesa intransigente dos interesses dos pobres e marginalizados, que são os interesses de Deus.

 

A diferença entre os dois é a diferença entre aquele para quem os valores materiais são a prioridade fundamental e aquele para quem os valores de Deus são a prioridade fundamental. O verdadeiro profeta não pode colocar os bens materiais como a sua prioridade fundamental; se isso acontecer, perderá a sua liberdade profética e tornar-se-á um escravo de quem lhe paga.


Brasilândia/MS, 10 de Julho de 2021.

 

Fonte: Amós, 7,12-15 Reflexão elaborada pelos padres Joaquim Garrido, Manuel Barbosa, José Ornelas Carvalho. Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos).
Foto: Amós el profeta. Figuras da Bíblia, Blogspot.com, In Amós, o profeta leigo. Luan Santos. http://figurasdabiblia.blogspot.com/2015/09/amos-o-profeta-leigo.html 

 

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