Vamos falar Ofayé?
Carlos Alberto dos Santos
Dutra
A pergunta pode parecer estranha para alguns. Não para os habitantes do município de Brasilândia, no Mato Grosso do Sul. Todos conhecem a saga desta, outrora vigorosa nação caçadora e coletora da margem direita do rio Paraná, sobrevivente que vive na Aldeia Anodi próxima ao ribeirão Boa Esperança berço de seu aparecimento na região. Porém poucos sabem que eles ainda falam o idioma Ofayé, língua única no mundo e que aos poucos começa a ser novamente falada pela comunidade indígena que não soçobrou.
A ideia de tornar esta língua, originalmente falada pelos primeiros habitantes da região, em língua cooficial não é um fato isolado na história. Em 2019, o então deputado pelo Mato Grosso do Sul, Dagoberto Nogueira já havia pensado algo semelhante, qual seja: tornar cooficial as línguas indígenas nos municípios brasileiros que possuem comunidades indígenas. Passava assim, cada município a ter como língua cooficial a língua indígena praticada no local.
Sem dúvida, em termos de Brasilândia, seria uma forma de prestar reconhecimento à língua Ofayé, secularmente falada na região. Mais que isso, seria uma forma de dar visibilidade e, consequentemente, garantia de direito aos seus falantes. Isso sem mencionar o alcance que este reconhecimento teria junto aos indígenas oportunizando ao Estado a prestação de serviços, como por exemplo, o fornecimento de documentos públicos na língua oficial (português) e na língua cooficial (indígena).
Tal iniciativa já é realidade em outros povos indígenas. Em 2002 o município de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, tornou-se o primeiro município brasileiro a cooficializar línguas indígenas. Uma lei municipal tornou o Tukano, o Baniwa e o Nheengatu línguas cooficiais. A cooficialização neste município fez irromper, em seguida, em diversas partes do País, reinvindicações de outros grupos étnicos para legalizar e legitimar suas línguas, que representam um aspecto essencial na construção de suas histórias.
Há quem possa dizer que o povo Ofaié, hoje reduzido a pouco mais de uma centena de indivíduos aculturados e miscigenados, não mereça tal esforço legislativo da edilidade local. Há de se dizer, entretanto, que antes de qualquer caucasiano aqui ter fincado sua bota, espada e cruz nesta terra, os Ofaié eram mais de dois mil indivíduos num país de 6 milhões. E hoje, com voz própria, ao reivindicar o uso de suas línguas em contextos oficiais e públicos, os indígenas reafirmam sua legitimidade linguística perante o Estado e buscam um novo padrão de relação política, no qual os grupos étnicos passam a ter um maior protagonismo e autonomia em suas relações.
A língua Ofayé aos poucos está sendo recuperada e revitalizada pelos jovens professores bilingues de hoje: José Koi, Elizângela e Silvano Hantarhec, ao lado dos falantes: Severino Haí, Neuza Tenghô, Ademir Hegraí, Cleonice Kníi, Joana Okuinrê, Luciana Chamiri, Rosalina Iorê, Eduardo Hauê, entre outros.
E, assim, eles se somam a todo o saber e
sons outrora pronunciados pela boca de Eugênia Pã, Alfredo Ekureifyg,
Dirce Ranhão, José Fuicxerêfuê, Eduardo Crií, Maria Tagoé,
Tomé Chião, Felipe Totê, Francisca Hegueí, João Canrê,
Arlindo Otichô, Gilmar Yacuinin, João He-í, Maria Hantogrê,
Marilda Xartâ, Cleuza Kairã, Ataide Xehitâha... que já partiram.
A diversidade linguística e cultural é uma riqueza que precisa ser melhor conhecida, documentada e preservada, todos sabemos e defendemos. Perder uma língua implica perder os conhecimentos incorporados àquela língua, inclusive conhecimentos culturais, ecológicos, elementos sobre a pré-história humana, informações sobre as estruturas e funções das línguas de modo geral. É uma preciosidade que temos nas mãos e não podemos deixar que se perca.
Sem dúvida, Brasilândia não é uma São Gabriel da Cachoeira, onde são falados 18 idiomas, sendo considerada aquela região do Alto Rio Negro como uma onde se encontra a maior diversidade étnica e linguística da Amazônia.
Mas até nesta cidade, onde todos os indígenas falam a sua língua, no começo foi difícil: há 20 anos, isso era impossível, porque as pessoas tinham vergonha de falar sua língua materna e preferiam falar o português. Hoje, não. Se você passar 15 minutos andando nas ruas, você vai ouvir quase todas as línguas faladas aqui no município, observa o prefeito de São Gabriel da Cachoeira.
No Mato Grosso do Sul, o município de Tacuru, em 2010, já havia oficializado o Guarani como língua cooficial. No estado de Tocantins, Tocantínia também tinha declarado cooficial a língua Xerente naquele município. Segundo o prefeito daquela cidade a Rede Municipal de Ensino estava se preparando para colocar em prática a lei aprovada há dois anos. A ideia era oferecer o ensino de Xerente para todas as crianças do município, mesmo para os não indígenas.
A Escola Municipal Ofaié E-Iniecheki instalada na Aldeia Anodi, no município de Brasilândia, através do ensino às séries iniciais, tem conseguido grande progresso junto aos alunos, no ensino da língua Ofayé, com o apoio e dedicação dos professores bilingues que atuam na Escola que é mantida pela Prefeitura.
Tranquilamente estes professores, jovens e anciões falantes da língua mãe deste povo poderiam contribuir de maneira decisiva para o caso do Município ou o Estado buscar qualificar o seu quadro docente propondo, inclusive, regras unificadas para a escrita do idioma Ofayé, uma vez que os professores desta etnia já possuem materiais didáticos e dicionários de sua autoria publicados, que serviriam, ao lado da mão de obra qualificada que representam, de subsídios para o ensino da língua em todas as escolas da Rede Municipal e Estadual de Ensino.
A aprovação de um Projeto de Lei pela Câmara Municipal de Brasilândia pode ser uma excelente oportunidade para o Poder Público demonstrar sua preocupação com a cultura e sua preservação notadamente da língua Ofayé. O reconhecimento desta língua como cooficial, com certeza, carrega em si um valor simbólico de alta relevância e incentivo para que as pessoas passem a usar a língua pátria desta terra no seu dia a dia.
Há alguns anos a Profª Floriana Débora de Souza Ladeia, então Secretária Municipal de Educação e Cultura, alimentava um sonho, também sonhado pelo imortal Hildebrando Campestrini (in memoriam) de colocar placas com a grafia indígena nos prédios e logradouros públicos de todo o Estado de Mato Grosso do Sul.
Aqui em Brasilândia, a ideia também era essa: instalar
placas com o respectivo nome Ofayé em pontes, margens dos rios, córregos,
praças, escolas, hospitais, comércio, ruas, fazendas, portal de entrada e saída da cidade; enfim, espalhar
palavras Ofayé pelos campos e cerrados, bairros e jardim desta nossa Cidade
Esperança.
Projeto de Lei nº
3.074-A, de 2019 (Do Sr. Dagoberto
Nogueira) Dispõe sobre a Cooficialização das Línguas indígenas nos municípios
brasileiros que possuem comunidades indígenas.
Foto: Eduardo Monteiro, Hauê Ofaié (1950 - ) Imagem recolhida pela Profª Marta Fonseca, 2019
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