sexta-feira, 31 de março de 2023

 

Edilson Fernandes Lopes, meu amigo Fera, adeus.

Carlos Alberto dos Santos Dutra


 


A história do nosso país é construída de migrantes que cruzam o Brasil, de Norte a Sul, e do Centro Oeste ao Sudeste. Homens e mulheres  que deixam sua terra natal para buscar a sorte, emprego e felicidade.

Aquela família era uma delas. Foi quando os olhos do pequeno Edilson Fernandes Lopes se abriram lá na distante Caetité, no alto sertão do estado da Bahia, no dia 8 de maio de 1960.

Tinha a honra de nascer na mesma terra que sua mãe -- dona Yeda Dolores Fernandes Lopes --, havia nascido e para onde voltara, depois de ter casado com Ataíde Lopes na vizinha Panorama/SP, cinco anos antes. Para a alegria dos avós maternos, Amphilóphio Fernandes da Silva e Laudemira Gomes Moraes Fernandes, o menino e seus irmãos cresciam fortes e saudáveis.

Para quem vem do Nordeste, parada obrigatória, quando não definitiva, é São Paulo. E lá se encontrava o jovem Edilson em sua adolescência e juventude, bebendo e provando os apelos luminosos e perigos de uma metrópole, verdadeira terra das oportunidades. A procura do sucesso, entretanto, nem sempre é igual e acessível a todos, exigindo esforço sobre-humano para vencer os desafios e exigências do cotidiano de uma grande cidade.

É, mas a história do menino Adilson estava apenas começando. Envolvido com certas amizades da noite paulistana, no ano de 1986, uma fatalidade o joga no rol dos proscritos sendo obrigado a deixar sua São Paulo passando a ser hóspede temporário de um estabelecimento prisional.

Sentença injusta, um mês após, resiliente, intenta fuga, passando desde então a viver na clandestinidade. Com o passar dos anos, estabelecido em Brasilândia, revelou-se exímio mecânico, depois funileiro. 

Homem irreverente e que sempre disse o que pensava a todos; não era de bajular engravatados, tendo também um bom coração. Era capaz de tirar a roupa do corpo para ajudar um irmão que lhe cruzasse o caminho.

Avizinhei-me dele no antigo bairro Cohab, hoje Tomaz de Almeida, nascendo uma amizade sólida e verdadeira. Sempre visitados por clientes e amigos, nunca deixou de colocar sobre a brasa um pedaço de carne ou um peixe que estava sempre à espera do recém-chegado ao lado da cerveja. E para aqueles que o conheciam-na essência e intimidade também lhes era ofertado graciosamente o que também procuravam.

Por seus predicados e humanidade, convidei-o para ser meu padrinho de casamento religioso em cerimônia reservada que ocorreu na igreja matriz da Paróquia Cristo Bom Pastor sacramento presidido pelo Pe. Lauri Vital Bósio.

Consolidou-se, assim, uma amizade e sintonia que me permitiu no ano 2008, já como advogado, depois de várias tentativas promovidas por terceiros, de conseguir, via judicial, liberá-lo do pesado encargo que o impediu por 22 anos de poder exercer sua cidadania plena, tirar documentos e não ter que se esquivar todas às vezes de blitz policial nas estradas.

Decisão que desde 2003 já existia e que o amigo Fera desconhecia que rezava: --Declarada extinta a pena imposta ao réu, por ter o Estado decaído do direito de executá-la (Prescrição). E, assim, foi possível entregar tal carta de alforria em mãos para que sua alegria fosse perfeita e abrisse as portas de seu coração para o seu futuro.

Pouco tempo depois, lá estava ele em Campo Grande, com sua empresa aberta, com CNPJ e tudo, prestando serviços de artesanato, o que fez por vários anos. Depois, estabelecendo-se no estado do Paraná, abre uma empresa de modulados de madeira onde revela todo o seu lado criativo e artístico, despontando ali um futuro promissor.

Sim, deixava para trás o amigo Fera, os velhos tempos de isolamento social, do refúgio nas músicas de Janis Joplin e Raul Seixas, eternos, onde o enfrentamento ao preconceito sempre falava mais alto e alimentou sua autoestima por anos. 

Quantas vezes apresentou-se no portão de minha casa, com uma trouxa de roupa nas costas dizendo que ia embora e que não dava mais para aguentar a pressão. Depois de uma longa conversa e um abraço, conseguíamos dissuadi-lo de tal ideia e recomeçar.

Foi neste tempo, no ano de 2000, que a poesia “Eis o Homem” foi redigida em sua homenagem tendo sido publicada em jornais e livros. Sua reprodução aqui, na data de seu passamento, é uma singela lembrança que perpassa também o coração das filhas Daniele e Eliene, irmãos, mãe, sobrinhos, e todos os amigos que nutriam estima e amor por ele:

"O rosto ainda traz o brilho da juventude que não o deixou de todo. Irreverente e símbolo de 'problema', arrebata as angústias e sensibiliza-se com a flor.

Poeta excluído, bebe as dores e contradições intestinas do mundo. 

Dedicado ao trabalho, curte as sobras que a vida lhe proporcionou. 

Transforma-se em “fera” para sobreviver. Pisam-lhe o rosto com ares de caridade. Roubam-lhe os sonhos e o sustento da família. Hostilizam sua fé e debocham de sua sorte. 

Consciente e sereno, entretanto, rompe com a vida normal e se lança ao espaço. Em asas de liberdade, voa mais longe que a morte e saboreia resignado fragrâncias de cumplicidade.

Causa admiração este homem que há tempo já devia ter deixado de ser, o resto que lhes permitiram. 

Causa admiração este homem que não sendo pária, junta-se à massa e a pinta em cores de horizonte, para além de muitas noites. 

Causa admiração sua coragem de sorrir e acreditar no amanhã. 

Mesmo que lhe não lhe estendam a mão, mesmo que lhe neguem o pão. Mesmo que lhe digam não!"

Descanse em paz amigo, irmão e compadre, nosso guerreiro Fera.

Brasilândia/MS, 31 de março de 2023.



2 comentários:

  1. Descansa em paz meu primo, cumpriu sua missão.
    Me emocionei com essa homenagem de um grade amigo .

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  2. Linda homenagem merecida Parabéns Dr Carlito pelo trabalho e dedicação

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