O cocar da gratidão e a homenagem Ofaié
Carlos Alberto dos Santos
Dutra
O revigoramento da luta dos
povos indígenas nos dias atuais, mais do que nunca, está consolidado. Os
avanços e garantias constitucionais deram às populações indígenas, sem dúvida,
o empoderamento há muito reivindicado e por fim conquistado.
Sobretudo no resgate da
autoestima, antes sufocada, e da liberdade, outrora negada, de falar e ser
ouvido, propor e reivindicar o que lhe é devido e necessário.
Reconhecidos como sujeitos
da própria história caminham hoje de cabeça erguida, conscientes de serem parte
integrante, se não fundante, desta grande e pluriétnica nação brasileira.
O que os olhos não-indígenas viram e seus corações sentiram no dia 26 de janeiro de 2024 na Aldeia Anodhi, do Povo Ofaié, no município de Brasilândia/MS, foi mais que a presença de uma comunidade indígena que naquele dia dava posse a seu Cacique Marcelo Lins e sua Vice Cacique, Ramona Coimbra.
Naquele dia autoridades civis,
políticas, militares e religiosas, puderam observar de perto o modus operandi
das lideranças locais na condução dos trabalhos, nas falas de improviso e no
anúncio do nome daqueles que foram homenageados pela comunidade.
Na mesa de autoridades foram
chamados para compô-la, depois do Prefeito Municipal, Dr. Antônio de Pádua
Thiago; a Presidente da Câmara Municipal, Patrícia Jardim; as Secretárias
Municipais, Adeliza Abrame, da Saúde, e Juliane Rodrigues, da
Mulher; e representantes da Polícia Militar, Alexandre Bueno, e do
SEBRAE de Três Lagoas e de Campo Grande.
Entretanto, a mesa somente
ficou completa, minutos depois, com a presença da Secretária de Estado da Cidadania,
de Mato Grosso do Sul, Viviane Luiza da Silva que, numa aterrisagem
cinematográfica chegou de helicóptero que pousou em pleno campo de futebol da
aldeia, causando muita euforia entre os presentes, sobretudo entre as crianças
indígenas que correram, junto com as autoridades, para acolher a representante
do Governador do Estado entre eles.
Ouvir a saudação às cerca de cem pessoas que ali se encontravam acomodadas sob a sombra de altas árvores que
circundam o núcleo central da aldeia, foi um aprendizado para todos. Para quem
já estava acostumado a ouvir lideranças indígenas falar, não foi novidade. Mas
para quem os ouvia pela primeira vez, sim, foi um fato marcante, quando não
inspirador.
A professora não-indígena
que se encontra ao nosso lado confessa que estava emocionada e não conteve as
lágrimas ao ver o indígena Ofaié, Professor Silvano Moraes Hangtar-hec,
falar no discurso de abertura dos trabalhos e saudação inicial aos presentes. –Ele
fala com o coração, disse ela. E prosseguiu: --Suas palavras são ditas
sob medida, com endereço certo, ao coração e à mente. Elas voam,
completou.
Sim, os professores Ofaié Silvano,
Elisangela e José Koi que hoje lecionam na Escola Estadual Ofaié
E-Iniecheki, localizada no coração da Aldeia Anodhi, a 10 km do centro de
Brasilândia, são verdadeiras pérolas do saber e aprendizado para o soerguimento
deste povo, ministrando-lhes o ensino bilíngue, intercultural e libertador que precisam para garantir a autonomia e autodeterminação dos que ali vivem.
Juntos e Misturados, como festejam todos os anos num evento promovido
pela Escola, as etnias Ofaié, Guarani (Kaiowá e Nhandeva) e não indígenas que
vivem na aldeia, inauguraram um novo tempo de resistência e esperança para esta
comunidade multiétnica.
A dimensão holística das
falas indígenas naquela manhã se completou com as palavras do Cacique e sua
Vice, Marcelo Lins e Ramona Coimbra. Ali os presentes puderam ter
a certeza e confirmar que o verbo naquela manhã havia ganho o coração dos que
ali se encontravam.
Marcelo falava de vida. Não a vida idealizada e desenhada bonita pelas letras numa folha de papel. Sua fala tinha cor do amanhã com o sabor ressurgido da dor de um passado, ao mesmo tempo que apontava para um futuro de progresso que espera.
Relatando um pedaço de sua história pessoal -- quando criança,
doente e desenganado, foi salvo pelas mãos de um jovem médico, na época, Dr. Antônio de Pádua Thiago,
presente naquele evento --, aquele jovem Ofaié abriu seu coração para mostrar a todos que o
mundo dá muitas voltas e que hoje, essas duas pessoas, pela ação do
tempo transformadas em lideranças
eleitas pelo voto democrático, se encontravam, frisou sorrindo em seu
pronunciamento.
Depois, deitou o olhar de
agradecimento àqueles que, a exemplo dos mais antigos que muito lutaram pela
comunidade, e que já haviam partido para Agachô, tratou de homenagear
três pessoas ainda vivas, e que, no entender da comunidade mereciam tal honraria.
A primeira homenageada foi a
senhora Lídia Manari, não-indígena, esposa do Ofaié Juraci da Silva
que se manteve unida à aldeia por mais de 30 anos, mesmo na doença de um e de
outro, venceram o tempo e os desafios, ajudando-se mutuamente, sem nunca
desistir ou apartar-se dos costumes locais tornando-se parte deste povo.
O segundo homenageado foi o não
indígena Osmar Pereira, Cha-taí em Ofaié, que há quase 40 anos
acompanha a trajetória desta comunidade ao lado da Ofaié Joana Coimbra Okuin-rê.
Dedicado e trabalhador braçal criou Ramona e os filhos Carlos,
Patrícia e Jorge, que teve com Joana. Hoje ele é o avô da
aldeia e permanece junto de sua família como exemplo de dedicação, esteio da
comunidade na agricultura e na pecuária.
E o terceiro homenageado, foi este escrevinhador, Carlito Dutra, que vos escreve. Também não-indígena, ele se sentiu muito feliz com a placa e o lindo cocar que recebeu de mãos tão especiais daquela comunidade. Pessoas aparentemente anônimas que um dia, há 40 anos, acolheu e batizou com o nome de Axayray aquele forasteiro vindo do Sul e que a partir daquela data, deste povo nunca mais se apartou.
E lá estavam dona Joana Coimbra
Okuin-rê e dona Neuza da Silva Teng-rô, as mais antigas da aldeia, verdadeiras
relíquias, portadoras das joias da coroa do saber, da língua e dos costumes
deste povo, único no mundo. Ao vê-las – como se diz --, passou um filme na cabeça
do indigenista. E já não foi mais possível vislumbrar entre as lágrimas o rosto
daquelas batalhadoras senhoras cuja lembrança ainda povoa o coração do
indigenista.
E lá estavam elas agora em nossas lembranças, com o indigenista que caminha
com elas, todas ainda muito jovens, colhendo guaviras pelas margens do Córrego Sete. De mãos
dadas com Aparecida Hanto-grê, Maria Tá-gué, Dirce Rinh-ão, Ozena Pã, Arê Francisca
Hegue-í, Cleuza Kai-rã, Marilda Char-tã, entre outras, lá iam elas, mulheres vigorosas, todas sorrisos e felizes
pelos campos do Senhor.
Os olhos dos presentes
percorrem agora os painéis de fotografias – como bem lembrou o Prefeito
Municipal em suas palavras: --elas mostram a trajetória registrada por Carlito
nos seus escritos e fotografias. E lá se encontravam os seus rostos eternizados nos banners espalhados pelo ambiente: pais e filhos
pelas trilhas da sorte em busca da terra sem males, diriam os patrícios Guarani.
Se hoje seus filhos e netos Ofaié pisam este solo ancestral de seus pais e avós, é uma demonstração que estes pioneiros nunca deixaram de caminhar e de buscar aquilo que lhes pertencia por direito. O coração Ofaié e o coração de Axayray neste ponto se encontram e caminham juntos: agora eles experimentam a paz. Obrigado, Hegreífuara, Povo Ofaié pela homenagem.
Após a entrega da última comenda, deu-se a posse do Cacique Marcelo e sua Vice, Ramona, seguido das palavras do Professor Silvano que saudou a liderança empossada enfatizando: Assim como todos os seres humanos, todos têm seus desejos, anseios, vontades, erros e acertos. Mas acima de tudo, os mesmos têm a humildade para reconhecer e buscar na sua existência as melhorias para cada dia e assim fazendo, não somente eles e para eles, mas para e pelo seu povo, ao qual nunca abandona, independente de toda e qualquer situação.
Após o pronunciamento do Cacique Marcelo e a Vice Cacique Ramona, as demais autoridades também fizeram o uso da palavra. Em especial a convidada de honra, Viviane Luiza, Secretária de Estado da Cidadania que fez o anúncio da implantação pioneira no Brasil do 1º Empretec Indígena, o que foi saudado por todos.
Depois houve
a entrega de livros, as fotografias de praxe, e ao final foi servido um churrasco aos
presentes preparado pela própria comunidade que contou com o apoio da
Prefeitura Municipal de Brasilândia, Fundação Nacional dos Povos
Indígenas-Funai, através do Técnico Local, Elder Paulo da Silva, e a Secretaria
Especial de Saúde Indígena-Sesai, através da Enfermeira Joyce Tomé e o médico Dr. Emerson Bandeira.
A tarde prenunciava declinar
e os convidados aos poucos foram se retirando, retornando para suas localidades -- lideranças
indígenas Terena, Guarani e Kiniknau que se fizeram presentes; o
Delegado de Polícia de Brasilândia, Dr. Avelino Mantovani e seus
agentes; vereador José Quintino e Nivaldo Nunes, professores,
alunos, servidores públicos, pastores, fazendeiros e comunidade em geral.
Ao final do evento, os indígenas Ofaié e Guarani recolhiam em silêncio as
toalhas, magnificamente bordadas e pintadas que foram colocadas sobre as mesas.
Recolhiam uma a uma as peças de artesanato, --pouco se vende nestes eventos,
conformavam-se. Consolava-os o fato de que uma de suas produções, uma toalha
pintada pela dona Neuza, uma Ofaié cadeirante, havia há pouco ganhado as
telas da telenovela global Terra e Paixão, e o mundo. Uma glória para um povo por
tanto tempo esquecido.
Sobre a pena azul maior do
cocar branco que foi doado ao indigenista Axayray, eis que uma rajada de
vento, de súbito, sopra forte sobre ele buscando desprende-la e leva-la para
longe desfigurando o conjunto da obra prima criada. Mas o cocar resiste. Estão
firmes costuradas as penas que unidas umas às outras o mantém forte e
invencível apontando para a soberania e autodeterminação do Povo Ofaié.
Salve a comunidade Ofaié! Hegreífuara
comunidade Ofaié!
Brasilândia/MS, 26 de
janeiro de 2024.
Sobre a nova Secretária de Estado da Cidadania, confira: Viviane Luiza da Silva: Primeira Secretária de Cidadania do Brasil – BLINK102 – CAMPO GRANDE- MS
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