O profeta Jonas e nossa resposta ao chamado de
Deus.
Carlos Alberto dos Santos Dutra
A liturgia deste 3.º Domingo do Tempo
Comum nos fala, na primeira leitura, do profeta Jonas (Jonas,
3,1-5.10). Aquele, mais conhecido por ter sido engolido pela baleia, do que sua
luta pela conversão aos habitantes de Nínive. Assim procedendo, Jonas, mesmo
contra a vontade, se transforma em instrumento de um Deus que ama todos
os homens e a todos chama à salvação. Concede, assim, a graça aos ninivitas
de poder repensar o caminho que estão a seguir e deem um novo
sentido às suas vidas. O mesmo pode ocorrer com nossas vidas.
São as palavras dos discípulos de Leão Dehon[1] que nos inspiram a refletir sobre essa instigante passagem do Antigo Testamento que reproduzimos aqui in verbis.
Inicialmente é preciso contextualizar
o Livro de Jonas. Ele foi, muito provavelmente, escrito na segunda
metade do séc. V a.C., entre 440 e 410 a.C. E conta-nos uma história bonita e
edificante, mas que provavelmente não seja real. Trata-se de um texto que
poderíamos classificar no gênero ficção didática. Dito de outra
forma: o Livro de Jonas não é uma coleção de oráculos
proféticos proferidos por um homem chamado Jonas, nem sequer um relato
de caráter histórico; mas é uma obra escrita com a finalidade de ensinar
e educar.
Estamos nos anos posteriores ao Exílio na
Babilónia. A política dos líderes judaicos – especialmente Esdras e Neemias –
favorecia o nacionalismo e o fechamento do Povo de Deus aos outros povos. Por
um lado, sublinhava-se o fato de Judá ser o Povo Eleito de Deus, o povo
preferido de Deus, um povo diferente de todos os outros; por outro,
considerava-se que todos os outros povos eram inimigos de Deus, odiados por
Deus, que deviam ser inapelavelmente condenados e destruídos por Deus.
Reagindo contra a ideologia dominante, o autor
do Livro de Jonas apresenta Javé como um Deus universal, cuja
bondade e misericórdia se estendem a todos os povos, sem exceção. A escolha de
Nínive como a cidade destinatária da ação salvadora de Deus não é casual:
Nínive, situada na margem oriental do rio Tigre, capital do império assírio a
partir de Senaquerib, tinha ficado na consciência dos habitantes de Judá como
símbolo do imperialismo e da mais cruel agressividade contra o Povo de Deus
(cf. Isaías 10,5-15; Sofonias 2,13-15).
É precisamente esta cidade que Javé quer salvar.
Por isso, chama Jonas e convida-o a ir a Nínive pregar a conversão. No entanto,
Jonas, como os outros seus contemporâneos, não está interessado em que Javé
perdoe aos opressores do Povo de Deus e recusa-se a cumprir o mandato divino.
Em lugar de se dirigir para Nínive, no Oriente, toma o barco para Társis, no
Ocidente. Na sequência de uma tempestade, Jonas é atirado ao mar e engolido por
um peixe. Mais tarde, o peixe vai depositá-lo em terra firme. E assim, Jonas é,
de novo, chamado por Deus para a missão em Nínive.
Que história! Mas qual seria a mensagem?
Senão vejamos. O texto começa com Jonas
recebendo o segundo mandato de Javé para ir a Nínive. Jonas aceita, desta vez,
a missão, vai a Nínive e anuncia aos ninivitas a destruição da sua cidade.
Contra todas as expectativas, os ninivitas escutam-no e fazem penitência.
Constatando a boa vontade dos ninivitas e a forma como eles acolhem o convite à
conversão, Deus desiste do castigo.
A primeira lição desta parábola é
a da universalidade do amor de Deus. Deus ama todos os homens, sem
exceção, e sobre todos quer derramar a sua bondade e a sua misericórdia. Mais:
Deus ama mesmo os maus, os injustos e opressores e até a esses oferece a
possibilidade de salvação. Deus não ama o pecado, mas ama os pecadores. Ele não
quer a morte do pecador, mas que este se converta e viva.
A segunda lição da nossa parábola brota da resposta dada pelos ninivitas ao desafio de Deus. Ao descrever a forma imediata e radical como os ninivitas acreditaram em Deus e se converteram do seu mau caminho (ao contrário do que, tantas vezes, acontecia com o próprio Povo de Deus), o autor sugere, com alguma ironia, que esses pagãos, considerados como maus, prepotentes, injustos e opressores são capazes de estar mais atentos aos desafios de Deus do que o próprio Povo eleito.
Desta forma, o autor desta história denuncia uma certa visão nacionalista,
particularista, exclusivista e xenófoba, que estava em moda na sua época entre
os seus contemporâneos. Desafia o seu Povo a aceitar que Javé seja um Deus
misericordioso, que oferece o seu amor e a sua salvação a todos os homens, até
aos maus. Desafia, ainda, os habitantes de Judá a assumirem a mesma lógica de
Deus – lógica de bondade, de misericórdia, de perdão, de amor sem limites – e a
não verem nos outros homens inimigos que merecem ser destruídos, mas irmãos que
é preciso amar.
Uma terceira lição resulta do chamamento de Jonas e da forma como o profeta responde ao apelo de Deus. Lembra-nos que Deus, para intervir no mundo, conta conosco. Por isso, Ele chama-nos e envia-nos. É através de nós, seus profetas, que Ele fala aos homens e lhes aponta os caminhos que conduzem à Vida. Se nós não aceitarmos a missão, estaremos a defraudar o projeto de Deus e a impedir que a salvação de Deus chegue aos homens e mulheres que caminham ao nosso lado.
O profeta –
aquele que Deus chama a ser sua voz no mundo – não tem o direito de se
esconder, de se demitir, de se afastar quando Deus precisa dele. Quando o
profeta ousa vencer os seus medos e resolve comprometer-se na missão, Deus fará
coisas extraordinários, apesar da fragilidade e da debilidade do mensageiro.
E para nós, o que isso representa? O que nos interpela o ‘Livro de Jonas’?
Em
síntese, nesta catequese que nos é oferecida pelo autor, Deus ama todos
os homens e mulheres, sem exceção e de forma incondicional. Ele ama até os
maus e os opressores; no seu coração de Pai, todos têm lugar. Esta lógica
exclui, naturalmente, a eliminação do pecador: Deus não quer a morte de
nenhum dos seus filhos; o que quer é que eles se convertam e
percorram, de mãos dadas com Ele, o caminho que conduz à Vida plena, à
felicidade sem fim. É este Deus que somos chamados a descobrir, a aceitar e a
amar. O nosso caminho é mais leve e mais feliz quando sabemos que, seja qual
for a amplitude dos nossos fracassos, o nosso Deus nunca nos descartará.
Nós temos, por vezes, alguma dificuldade
em aceitar esta lógica de Deus. Em certas circunstâncias, preferíamos
um Deus mais duro e exigente, que se impusesse decisivamente aos maus, que
frustrasse os seus projetos de violência e de injustiça, que não desse qualquer
hipótese àqueles que ameaçam o nosso bem-estar e a nossa segurança, que
condenasse ostensivamente aqueles que não partilham a nossa visão da fé…
A Palavra de Deus que hoje nos é servida
apresenta-nos um Deus de coração misericordioso, que
escancara as portas a todos e que ama até aqueles que consideramos maus. Deus
deve converter-se à nossa lógica, ou seremos nós que devemos converter-nos à
lógica de Deus? Diante desse Deus que nunca fecha a porta a ninguém, fará algum
sentido olharmos para o mundo que está para além das portas das nossas igrejas
como um mundo que nos ameaça e diante do qual temos de assumir uma atitude
defensiva e condenatória?
O texto sugere também que aqueles que
consideramos maus estão, por vezes, mais disponíveis para
acolher os desafios de Deus e para escutar o seu chamamento, do que os bons.
Muitas vezes, aqueles que têm comportamentos certinhos,
religiosamente corretos, podem estar de tal forma instalados nas suas certezas
absolutas, que já não tenham espaço para se deixarem questionar por Deus.
Teremos disponibilidade para pôr em causa as nossas seguranças e as nossas
certezas inabaláveis para nos deixarmos desafiar pela contínua novidade de Deus
e pelo seu sempre renovado convite à conversão?
Há também neste texto uma severa
denúncia do racismo, da exclusão, da marginalização, da xenofobia.
A Palavra de Deus alerta-nos para a necessidade de ver em cada pessoa que
caminha ao nosso lado um irmão, independentemente da sua raça, da cor da sua
pele, da sua cultura, das suas diferenças, ou até da sua bondade ou maldade.
Como vemos e como acolhemos os nossos irmãos imigrantes que a vida trouxe até
nós e que colaboram conosco na construção do mundo? Os vemos como inimigos,
culpados por todos os males do universo, ou como irmãos por quem somos responsáveis
e que Deus nos convida a acolher e a amar? Como nos situamos face aos nossos
irmãos diferentes – pela raça, pela cultura, pelos valores, pelos hábitos de
vida: como gente que nos incomoda e que temos de afastar para o mais longe
possível, ou como irmãos que nos podem ajudar a questionar as nossas cómodas
certezas, as nossas seguranças absolutas, os nossos preconceitos inabaláveis?
Jonas, o homem que Deus chamou, mas que procurou evitar comprometer-se na missão, convida-nos a refletir sobre a resposta que temos dado ao chamamento de Deus. O nosso comodismo, o nosso bem-estar, os nossos medos, o nosso egoísmo, a nossa miopia, alguma vez nos impediram de acolher o chamamento de Deus e de abraçar a missão que Deus nos entregou? Temos consciência de que ignorar os desafios de Deus é, em boa parte, falhar o sentido da nossa vida?
Pensem nisso enquanto rogamos a Deus que nos abençoe e nos guarde. E que todos tenham um ótimo domingo.[2].
Brasilândia/MS, 21 de janeiro de 2024. Diácono Carlito. 3º Domingo do Tempo Comum. Paróquia Cristo Bom Pastor. Celebração das 6:45 horas (Comunidade São Vicente de Paulo) e 19:00 horas (Igreja Matriz).
Muito bom. Remete a reflexão. Parabéns mano véio.
ResponderExcluirValeu mano
ResponderExcluirMuito didático, inspirador e necessário no momento global onde Israel põe em curso mais um genocídio, totalmente indiferente aos pedidos de cessar fogo por parte do mundo e dos próprios agressores.
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